Soneto Oxidado

 

O céu sob o qual nasci há vinte e oito anos
Começa agora a oxidar nos ângulos
E nas horas em que não estou atento
Uma mão surripia uma ave e desloca o vento
Arranca árvores onde os olhos perdem luz
A mulher despida entre os limoeiros já pouco me seduz
E a boca febril vai abatendo o gado
Um fio de baba faz leito no prado
A mão volta puxando as cabeças velhas à janela
Para as decepar e jorrar muita aguarela
Sobre crianças que começavam a perder o gosto
À luz que sobe de um fogo posto
E que queima os touros de papel quebrado
Num céu cabalmente oxidado
 

Caderno 5

Caderno 5

os pastéis de nata ali não valem uma beata [antologia de 2017]

Enfermaria 6, Lisboa, maio de 2018, 220 pp.

Editado por João Coles, José Pedro Moreira, Paulo Rodrigues Ferreira e Tatiana Faia

Capa de Gustavo Domingues

12€

Autores

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Tudo isto para dizer que o Caderno 5 da Enfermaria 6 é uma antologia dos textos que mais agradaram ao quinteto editorial da Enfermaria publicados no site durante 2017. Que o objectivo deste caderno talvez seja agarrar e perder, e não lamentar perder, essa coisa fugidia implícita na longa corrida de personagens arquetípicas do romance português do século XIX: mais do que deixar uma imagem da literatura a acontecer, ou um cânone lusófono em formação (nunca teríamos a isso pretensão), ou gabarmo-nos de publicar o melhor poeta do nosso bairro, simplesmente queríamos deixar aqui um quadro vivo das coisas que aconteceram na Enfermaria 6 durante um ano, aberto para um impulso de olhar para a frente. Esta é uma recolha de ensaios, poemas, contos, notas, breves apontamentos. A sua função pode bem ser vista como a nossa tentativa de mapear os gestos de alguns autores que, generosamente, connosco, tentaram a sua corrida e tentaram registar o significado de determinados momentos, no seu peso histórico, filosófico, político, poético. No seu peso jogando contra eles ou a favor deles. A favor da beleza do quotidiano, contra o lado reles da burocrática rotina cívica. Enquanto blog, a Enfermaria 6 é actualizada quase diariamente, com textos sobre coisas que ferem e sobre coisas que nos fazem pulsar, de autores maioritariamente oriundos de Portugal e do Brasil. Acreditamos que muitos destes textos merecem um registo menos efémero do que o tempo entre uma actualização e outra do nosso blog. Deixamos aqui então esta nossa proposta de anuário. E comprometemo-nos a tentar voltar para o próximo ano.

"Uma espécie de Editorial", Cassandra Jordão & Victor Gonçalves

 

Três poemas de Maria Celiza

Três Ovos

Águas profundas são as palavras de um homem (Pr 18, 4) 
 

Deixo os ovos a cozer, corto a salada. 
Pousada no balcão, a bíblia aberta deixa-me entrever certas palavras: 
‘águas’ ‘casa’ ‘resvalar’ ‘morte’. 
Vou lavando a alface coberta de terra, olho os ovos, 
Penso nas palavras como poços que vão dar às entranhas dos homens, 
Penso em suas águas sujas de tantas flores, de tanto cuspo – 
A sua profundidade deixa-me assombrada, mas só por um momento. 
Quebro a casca dos ovos e corto-os para dentro da salada, 
Olho à minha volta e percebo que toda a minha vida está submersa, 
Como um navio cuja rota ficou marcada no rosto de homens longínquos, 
Perdido no manto luminoso daquele que tudo fez para ser esquecido. 
Sento-me à mesa e como com a violência de uma criança

A Carpa

Às vezes vejo o teu rosto na janela
Como o de uma criança embaciando os vidros.
Procuro não olhar.
Eu estrebuchei tanto para nao ser tua filha,
Arrancada dos teus sonhos tenebrosos
Como uma carpa que quer morrer.
Não posso olhar o teu corpo cravado de anzóis,
Os teus olhos abertos como dois prédios vazios.
Não posso
E tenho o jantar para fazer.
Aqui vivemos segundo as tábuas da tua lei,
Mas já ninguém consegue olhar o teu rosto de cão pontapeado,
O teu cabelo desfeito pelos teus milenários tiques nervosos.
Comemos com os olhos no prato –
Desviá-los seria a morte de tudo.
À noite oiço os teus urros e danças solitárias no meio da neve.
Mas é tarde.
Fecho os olhos e, como os primeiros homens, aqueles
que ainda não conheciam a tua belíssima voz,
procuro não sonhar.

Junho 2017

As Flores de Hopper
 

Felizmente não te posso ver.
Se o teu rosto caísse sobre o mundo,
Teria a futilidade das flores -
Seria o campo de camélias e o dilúvio.
É melhor imaginar-te assim, terrível,
Espantando as aves nos Aliados,
Assustando os bêbados que descem o Carvalhido
Com a serpente revolvendo no intestino.
É sempre melhor imaginar que és tu que os aterras,
Que eles cambaleiam pelas ruas porque juram que te entreviram
Entre os urinóis do café.
É sempre melhor não te ver,
Pois só a tua voz transparente como os tigres de Borges
Nos pode dilacerar de tanta beleza.

Julho 2017