o osso invisível

Tribunal invoca “sedução mútua” e “mediana ilicitude” em caso de jovem violada quando inconsciente.[1]

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For women, then, poetry is not a luxury. (…) It forms the quality of the light within which we predicate our hopes and dreams towards survival and change, first made into language, then into idea, then into more tangible action.
(Audre Lorde, The master’s tools will never dismantle the master’s house)



maria & manel
casal anónimo
tão português
almoçam no tasco
ao lado do tribunal

a culpa do arguido
(ouvia-se)
situa-se na mediania

a ilicitude
(dizia-se)
não é elevada

maria & manel
comentam
enquanto comem
que a carne não é tenra
que a carne
podia defender-se melhor
do carniceiro
que a carne não devia
custar-lhes tanto a mastigar
e que a carne tem culpa
de ser mastigada
se não acorda
enquanto é engolida

maria & manel
estão então satisfeitos
limpam a boca
à toalha da mesa
e prosseguem o dia
ignorando o osso
que discretamente desce
depois da deglutição

prosseguem o dia
e coitados
não sabem que morrer
vem às vezes dos pequenos gestos
o ódio instalado no sofá
no sufoco da notícia de jornal
a mão suja que quis entrar
sem ser convidada
o ossinho invisível
que devagar
se vai instalando
na garganta

prosseguem o dia
e coitados
não sabem que a culpa
nem sempre se vê
e mesmo que se visse
há quem diga que o frango
não só mostrou pelo sucedido
um enorme constrangimento
como na vida um escassíssimo
pendor para a reincidência

e maria & manel,
sejamos honestos:
dado o apetite largo
com que lamberam os dedos
à refeição
só poderiam estar a pedir
invocação de sedução mútua
e um osso
fino frágil
aguçado
- atravessando perpendicularmente
essas laringes
ao meio dia.


[1] Fernanda Câncio, Diário de Notícias. Disponível em <https://www.dn.pt/vida-e-futuro/interior/tribunal-invoca-seducao-mutua-e-mediana-ilicitude-em-caso-de-jovem-violada-quando-inconsciente-9880816.html>. Acesso a 21 de Setembro de 2018.


2 Poemas de Emmanuel Hocquard

 

Bonita.

Olhos rindo, uma vaga tristeza na

expressão do rosto.

 - Como soletras este nome?

tudo o que poderia ser dito seria turvado pelo

rumor dos carros na estrada, em frente à

padaria.

Piero Della Francesca.

Fique satisfeito, por hoje, por comprar

metade de um pão.

Bom dia vendedora Viviane .

«Denuncie toda a correspondência obscena ao gerente

dos correios.»

Desde o começo do verão ou do naufrágio do Titanic.

                                                               

                                       In Un Test de Solitude, P.O.L. [Um Teste de Solidão] 1998

 …………………………………………………………………….

 Outubro. O regresso dos Piscos-de-pelo-ruivo. O que eu tenho

sob os olhos.

Viviane é Viviane. Única, evidente.

Dizer-te que eu a vi.

Como eu a vi, tendo apenas esse nome à minha

disposição.

Mostrar-te o meu olhar

eu a vi assim.

Viviane é Viviane.

É dizer que construo uma solidão.

É em Ti que penso.

Único sorriso.

Eu falo-te do meu sorriso.

Sua boca.

                                      In Un Test de Solitude, P.O.L. [Um Teste de Solidão] 1998

 …………………………………………………………………………………………………

 Jolie.

Des yeux rieurs, une vague tristesse dans

l'expression du visage.

-comment épelez.vous ce prénom?

tout ce qui pourrait être dit serait brouillé par la

rumeur des voitures sur la route, devant la

boulangerie.

Piero della Francesca.

Contente-toi, pour aujord'hui, d'acheter un

demi-pain.

Bounjour Viviane Vendeuse.

dénoncez tout courrier obscêne au régisseur

des postes

Depuis le début de l'été ou le naufrage du Titanic

 …………………………………………………………………………………………………

 Octobre. Le retour des rouges-gorges. Ce que j'ai

sous les yeux.

Viviane est Viviane. Seule, évidente.

Vous dire que je /'ai vue.

Comment je /'ai vue, n'ayant que ce nom à ma

disposition.

Vous montrer que mon regard

je /'ai vue ainsi.

Viviane est Viviane.

C'est-à-dire je construis une solitude.

C'est à vous que je pense.

Sourire unique.

Je vous parle de mon sourire.

Sa bouche.

E.Hocquard2.jpg

Emmanuel Hocquard (1940 - )

2 Poemas de Georg Trakl

Georg-Trakl2.jpg

Tradução: J. Carlos Teixeira

Delírio

A neve negra que escorre pelos telhados;
Um dedo vermelho mergulha na tua testa,
No quarto despido afundam-se nevadas azuis -
Os espelhos mortos dos amantes.
Em pesados pedaços se desfaz a cabeça e contempla
As sombras espelhadas na nevada azul,
O sorriso frio de uma prostituta morta.
No perfume do cravo chora o vento da noite.

in Gedichte, 1912-1914, aus dem Nachlass [Poemas, 1912-1914, publicados postumamente]

§§§

Num velho álbum de família

Voltas sempre, melancolia,
Ó brandura da alma solitária.
Um dia de ouro acaba de arder.

Humildemente se verga à dor o homem paciente
Entoando melodia e suave loucura.
Vê! já escurece.

A noite volta e um mortal lamenta
E com ele um outro sofre.

Estremecendo sob estrelas outonais
Curva-se ano a ano a cabeça - cada vez mais fundo.

in Gedichte, 1913 [Poemas, 1913]


Delirium

Der schwarze Schnee, der von den Dächern rinnt;
Ein roter Finger taucht in deine Stirne
Ins kahle Zimmer sinken blaue Firne,
Die Liebender erstorbene Spiegel sind.
In schwere Stücke bricht das Haupt und sinnt
Den Schatten nach im Spiegel blauer Firne,
Dem kalten Lächeln einer toten Dirne.
In Nelkendüften weint der Abendwind.

§§§

In ein altes Stammbuch

Immer wieder kehrst du Melancholie,
O Sanftmut der einsamen Seele.
Zu Ende glüht ein goldener Tag.

Demutsvoll beugt sich dem Schmerz der Geduldige
Tönend von Wohllaut und weichem Wahnsinn.
Siehe! es dämmert schon.

Wieder kehrt die Nacht und klagt ein Sterbliches
Und es leidet ein anderes mit.

Schaudernd unter herbstlichen Sternen
Neigt sich jährlich tiefer das Haupt.

Écfrase

 

                                 I

 

Andamos todos a falar da cadeira de Van Gogh
Das pernas carnudas das Três Graças
Das tetas da Madame de Pompadour
Do cantar mecânico de Klee
Do Banho Turco 

Andamos todos a falar do mesmo
em coro
repetindo até à exaustão
a nossa Original escolha 

Fazer o escudo   a urna    a luz
falar
exige muito mais que um mero
olho
mera boca
mera mão

 

                                   II

 

Queriam um longo poema sobre
a essência de uma cadeira ou
preferiam ouvir os macacos da
Frida Kahlo aqui e ali?
Não quero nada disso! 

Vivo em permanente turbulência e
usando tijolos duros rudes banais
acabados de sair da última fábrica
quentes e prestes a esfriar construo
o meu triste palácio de desventura  

Nas (des)montagens de Danh Vō
uso a massa de Frank Auerbach
as diagonais de Martin Barré
a mão de Philip Guston e a fibra
de vidro de Eva Hesse Pinto aqui
e alí com a trincha de Michael
Krebber e decoro o pátio com
 a Rosa Fixa de Isa Genzken 

Bem sei não disse nada
Apontei (é tão feio apontar)
obras que me ultrapassam
e sobre as quais nada sei dizer 

Eu quero viver no silêncio
dessa turbulência
nesses sismos interiores (só meus)
e passado décadas
dizer três linhas 

Seja o meu comentário ou
pequeno verso
ar fresco
na ala da repetição 

 

                                   III

 

Que a cadeira de palha
não seja um mero objeto
raspado em relance por uma retina
Quero-a ocupada
eternamente
pelo corpo vivo de quem a pintou 

Quero-a sob o seu corpo
de Homem Vivo
sentado em descanso do seu sofrimento 

Eternamente sentado sem nunca
conhecer a morte 

 

                              IV

 

Nunca tenho companhia
é metade de um título de um
quadro de Michael Krebber
dois leopardos
filhote e mãe 

Chovia naquela noite
cubos intensos de gelo
na escura tela da savana 

Regresso sempre aos leopardos
Leões e chitas sempre que
Não tenho companhia
para maravilhar-me
com paupérrimas pinceladas 

paupérrimas pinceladas
para paupérrimos poemas
feitos do mesmo mínimo gesto
arrastado em essência
Pequenos Torronis 

procuro apenas mover
milimetricamente
a roda

Roletenburgo

Amanhã mesmo – oh, se fosse possível partir amanhã mesmo! Renascer, ressuscitar.
Dostoievski, O Jogador

as fontes pulsam
como se tivesses levado
uma pancada na cabeça
e um zumbido anuncia
um novo estado
de hiper-realidade
regressas a um mundo árido
óbvio
vês
três jogadas à frente
sordidez e vergonha
ainda assim
persistes
em anotar os números
fazer os cálculos
convertendo
em livro-razão do teu vício
o caderninho
onde anos antes
à margem dos detritos
da mais grandiosa
guerra intergaláctica
sonhaste que um dia
um pequeno coração
poderia cantar