Memórias de um congresso


I

Bisbilhoteiros académicos,
sanguessugas de mártires,
eruditos exibicionistas,
cardume de piranhas.

II

Os vermes ocupam o palco.
O que veio de Princeton
fala, desconexo.
Na sua fábula esquizofrénica,
nada disse,
apenas o ditirambo ao vetusto império.
O lunático coroou os reis do pó,
enquanto o fresco odor a sangue americano
invadia os corredores e as aulas.

III

Simultaneamente,
fartos de fobia,
os vermes comiam fobia,
almoçavam fobia,
jantavam fobia.
Depois regurgitavam nos palanques
com idónea máscara:
cândidos, inocentes pombos,
falaram sobre o incompreendido,
sobre os raros, sobre aqueles enfermos que a destempo morreram,
sobre o fazedor a quem ninguém cuidou das tristes, doces mãos.
Os painelistas, com garras húmidas de sangue,
afundaram suas lanças bakhtinianas,
seus bisturis estruturalistas.
Repetiram como papagaios, entre aspas, a linguagem de outros,
que por sua vez era a de outros.
Note-se que no congresso sobre os criadores,
os criadores não são convidados,
nem bem-vindos.
São pretexto para o negócio
que alimenta os sapatos dos sábios. 

IV

Sempre,
no entanto,
se encontram
ilustres excepções.
Os que por entre o ruído amam o verso e o parágrafo
e reanimam o morto redivivo com roupas de domingo,
e o beijam,
e com ele bebem,
e seu candor escutam,
e com uma piada o fazem rir,
e lhe afagam o cabelo a dar pelos ombros,
e lhe secam uma lágrima.
Logo o abraçam
e guardam no livro,
para que prossiga a vida quotidiana,
entre palavras.


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Luis Marcelino Gómez é escritor nascido em Cuba, com várias obras de contos e de poesia publicados. É há vários anos professor na Universidade da Carolina do Norte – Chapel Hill. Edita a revista Aguas del Pozo.

O poema é retirado do livro Bajo los arces.

 

Tradução do espanhol de Paulo Rodrigues Ferreira

HABITAR NA PARTITURA

[Einziger, ewiger, allgegenwärtiger,

unsichtbarer und unvorstellbarer Gott]

 

                                                         “sobre a pele o tropel”

                                                                   Luiza Neto Jorge

 

                                                 Poesenho para um filho de

                                               Calíope: Pedro Braga Falcão

        

         A

 

Entre ilhas há o som de pequenos e amoráveis

pássaros. Não falo de Messiaen!

Seres num ninho oceânico, o ovo primitivo

do dó e do ré, algures entre vagas. Não falo de Debussy!

No imenso da divisão, diferença, há aquilo

que não se pode registar.

E se for registado, não será lido.

Na linha clara do dia veremos

o ponto B e o ponto A na linha constantemente

inter

rompida. Não

falo de Schoenberg!

 

Dita a leitura indecifrável da partitura,

a dissolução da sint

axe,

da palavra, para que

o som escrito

seja redito noutra forma

ainda por ouvir.

 

A página (de palavras, pontos, pequenas vírgulas,

areias, flechas e setas, chuva e poças de

lama infinita)

é

todo um universo a que este pequeno

poema [não] pode aspirar. Fragmento inflexível de

chumbo.

 

Partida a batuta, esmagada pelo peso do martelo,

entre palavras antipoéticas,

eu faço,

eu digo:

no espaço em mim há essas folhas

onde o tempo não tem

nem começo nem fim. Cobracisne.

 

Que sejam os olhos a habitar a

indecifrável partitura

escrita inteiramente

por este coração impuro.

 

                                    

                                   B

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Vítor Teves - folha 4, de 6, de “Das Goldne Kalb”, lado B do Poesenho “Habitar na Partitura” (Agosto-Novembro, 2018).

Charles Bukowski, "ar e luz e tempo e espaço"

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Tradução: João Coles


“ - sabes, das duas uma, ou tinha uma família, ou um emprego, alguma coisa
esteve sempre no meu caminho
mas agora
vendi a casa, encontrei um lugar, um estúdio enorme, devias ver o espaço e
a luz.
pela primeira vez na minha vida vou ter um lugar e tempo para
criar.”

não, fofo, se vais criar
vais criar trabalhando
16h por dia numa mina de carvão
ou
vais criar num quarto minúsculo com 3 crianças
enquanto sobrevives da
segurança social,
vais criar com parte da tua mente e do teu
corpo estourados,
vais criar cego
deficiente
demente
vais criar com um gato a subir-te pelas
costas enquanto
toda a cidade treme de um terremoto, de um bombardeamento,
de uma inundação e de um incêndio.

fofo, ar e luz e tempo e espaço
não têm nada que ver com isso
e não cries nada
excepto, talvez, uma vida duradoura para encontrares
ainda mais
desculpas.

in The Last Night of the Earth Poems

 


air and light and time and space 

“ - you know, I've either had a family, a job, something
has always been in the way
but now
I've sold my house, I've found this place, a large studio, you should see the space and
the light.
for the first time in my life I'm going to have a place and the time to
create.'

no baby, if you're going to create
you're going to create whether you work
16 hours a day in a coal mine
or
you're going to create in a small room with 3 children
while you're on
welfare,
you're going to create with part of your mind and your
body blown
away,
you're going to create blind
crippled
demented,
you're going to create with a cat crawling up your
back while
the whole city trembles in earthquakes, bombardment,
flood and fire.

baby, air and light and time and space
have nothing to do with it
and don't create anything
except, maybe, a longer life to find
new excuses
for.

in The Last Night of the Earth Poems

Desprezo

Theme de Camille

- Georges Deleure

“Hienas, detesto hienas”

 Timon

 

Outrora, todos choraram a morte de Mufasa; chegada a hora certa, escolheram os rápidos da Nova Inglaterra na companhia de um Colibri azul; voaram de bicicleta sem nunca saírem de um triciclo; apanharam o anel no lago da Lenda da Floresta com o Tom; viram cair a última pétala da rosa dentro de uma redoma de vidro e ouviram o grito da fera. Viram anões, monstros voadores em viagens sobre as nuvens, génios e tapetes voadores; decoraram frases como “estou rodeado de idiotas”; cantaram Hakuna Matata; riram muito com Timon  e choraram pela Rose Jack.

Hoje, sim, Godard! Pois, claro! Ah, sim! Claro. Sim, sem dúvida. Efetivamente. Pois, bem! Eu creio que sim. O mesmo, penso o mesmo. Sem dúvida! Sim, sim, a cor. Recordo-me, sim! Ah, pois! Sim! Não tenho dúvidas! Grande plano. Pois, sim! Claro. A tesoura, Picasso e aquele rolo de tinta azul. Eu sei, eu sei! Creio que tinha sete anos, não, minto, tinha seis anos e meio quando vi Pierot le fou, Alphaville e À bout de Souffe.

Subido o degrau social, e vendido todo o sentimento numa conversa inútil, chegam ao alto patamar, longe de si próprios. O rápido secou, esqueceram Mufasa e já não salvam nenhuma floresta! E a frase decorada transforma-se num espelho baço onde lavam o rosto.

Agosto, 2018.

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Timon  

décima primeira festa do chopp de são bernardo do campo

       Não, o tempo não chegou de completa justiça.

                                                                                                 O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

                                 O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Carlos Drummond de Andrade


escrevo sentada numa cadeira dura

escrevo para não estar aqui

os gatos desfiam meu vestido

tenho pimenta e sal nos olhos

a mesa

onde o computador

alguns livros remédios meu dedal da sorte

e

uma caneca da décima primeira

festa do chopp de são bernardo com

uma régua canetas e um pincel

tenho aqui duas gavetas pequenas

na primeira guardo receitas médicas

mais remédios umas moedas grampos de

cabelo e um calendário

russo que carolina me deu

na segunda gaveta guardo nada

tenho gelo e agulhas nos olhos

escrevo para não estar no tempo do meu país

não fui à festa do choop porque

no mesmo ano

numa maternidade bem próxima dali

alguém resolveu que

para a minha vez no mundo

mamãe seria um corte

escrevo sentada numa cadeira assombrada

assombrada pela

décima primeira festa do choop no país das marionetes