2 Poemas de Jacques Dupin

Tradução: Vítor Teves

Desde que a minha palavra seja obscura ela respira
 
seus braços mergulhados na água gelada
entre as algas verdes de outras presas
geladas como as lâmpadas no dia
 
Tão pouca realidade alcança os vivos
lança violência ou a semeia
arduamente sobre a pedra e as águas
 
o céu esticou a escansão dos martelos
alguns entre nós entramos intercedendo
para produzir novas nuvens
 
……………………………………………………………………
 
Aberta em poucas palavras
como por um remoinho, numa qualquer parede,
um recesso, nem mesmo uma janela
 
para manter a pouca distância
esta região da noite onde o caminho se perde
 
exausta uma palavra nua
 
………………………………………………………………………

 

Tant que ma parole est obscure il respire
 
ses bras plongt dans l’eau glacée
entre les algues vers d’autres proies
glacées comme des lampes dans le jour
 
Si peu de réalite parvient au vivant
qu’il fasse violence ou qu’il séme
hardiment sur la Pierre et les eaux
 
le ciel tendu la scansion des marteaux
quelques-uns parmi nous sont entres intercédant
pour produire de nouveaux nuages
 
……………………………………………………………………
 
Ouvert en peu de mots,
comme par un remous, dans quelque mur,
une embrasure, pas même une fenêtre
 
pour maintenir à bout de bras
cette contrée de nuit où le chemin se perd,
 
à bout de forces une parole nue

 
                                            De: “Cops Clairvoyant” (1963-1982) (Gallimard,1999) /

                                                   “Corpo Clarivedente” (1963-1982) (Gallimard,1999)

ob_e3c109_l1080889c.JPG

Retrato de Jacques Dupin por Alberto Giacometti, 1965.

Porto Ainda 

Tenho levado repetidas vezes amores à nossa cidade, 
Todos acabaram por se perder, ao contrário do que de ti 
Ainda uso em sonhos, lá fui feliz com elas, dias de Sol, 
A cidade contigo aparece-me sempre cinzenta, 
Mesmo assim preferia ter recebido das tuas mãos 
O prazer que trocamos em crepúsculos dourados, 
Estranhamente não encontro mais as nossas ruas, 
Não sei mais se é a cidade que não é a mesma ou eu, 
E tu apenas a recordação ridícula de um pedaço de caminho, 
Fundo como o vento, devias estar com o que já passou, 
Estranho-me quando penso que as espelhei no rio, 
Uma a uma, ainda com os seus sabores na boca, 
Como comparando-as com o que mais amei 
Daquela cidade, a vontade do teu desejo triste. 
 

17.12.2018 

Turku

"Maria" de Bertolt Brecht - um poema de Natal

ADB_Brecht_HP.jpg

Tradução: J. Carlos Teixeira

Maria

A noite do seu primeiro parto tinha sido
Fria. Nos anos seguintes, porém,
Esqueceu inteiramente 
O gelo nas vigas da mágoa e a fornalha fumegante 
E o sufoco das secundinas pela manhã.
Mas mais do que isso, esqueceu a vergonha amarga
De não estar só
E que é tão própria do pobre. 
Principalmente por isso,
Anos depois fez-se festa, na qual
Tudo havia.
O grulhar cru dos pastores calou-se. 
Mais tarde, a história fá-los-ia reis. 
O vento, que era muito frio,
Fez-se canto dos anjos. 
Sim, do buraco no teto por onde o gelo entrava, ficou apenas
A estrela que por aí espreitava.
Tudo isto
Veio do rosto do seu filho, que era simples,
Amava o canto,
Chamava os pobres até ele,
E tinha o hábito de viver entre os reis 
E de ver à noite uma estrela pairando sobre si.


Maria

Die Nacht ihrer ersten Geburt war 
Kalt gewesen. In späteren Jahren aber
Vergaß sie gänzlich
Den Frost in den Kummerbalken und rauchenden Ofen
Und das Würgen der Nachgeburt gegen Morgen zu.
Aber vor allem vergaß sie die bittere Scham
Nicht allein zu sein
Die dem Armen eigen ist.
Hauptsächlich deshalb
Ward es in späteren Jahren zum Fest, bei dem
Alles dabei war.
Das rohe Geschwätz der Hirten verstummte.
Später wurden aus ihnen Könige in der Geschichte.
Der Wind, der sehr kalt war
Wurde zum Engelsgesang.
Ja, von dem Loch im Dach, das den Frost einließ, blieb nur
Der Stern, der hineinsah.
Alles dies
Kam vom Gesicht ihres Sohnes, der leicht war
Gesang liebte
Arme zu sich lud
Und die Gewohnheit hatte, unter Königen zu leben
Und einen Stern über sich zu sehen zur Nachtzeit.

4 subornos à luz do dia

CINCO FEMINISTAS NA COZINHA

 

                                       para a Marta U Crnom

À décima quarta reunião, a Olga
esqueceu-se da chave do salão.
Como era difícil remarcar outra,
a Maria sugeriu o único espaço
mais alargado de sua casa: Uma
cozinha de luz branca com mesa
redonda, quatro latas Campbell,
de Warhol, na parede, e, atrás da
porta, um calendário com um
Coração de Jesus abençoando.
 
A teresa não achou piada, a Rita,
aluada como sempre, disse que
sim, sem pensar no sortilégio.
A Ana, calada, gostou muito do
espaço luminoso e, sobretudo,
silencioso. Andara a ler tantas
teses, sem parar, na faculdade,
e a comer sandes a semana toda,
que sentiu saudades de cozinhar.
Contudo, ao entrar na cozinha
disse: Ah! Que saudades do Tédio!
 
O “Tédio”, no fundo, não era mais
do que: “saudades de ter tempo
para cozinhar em condições! E ter
a tarde toda para ler o que,
realmente, gosto: Woolf”.

 

 CARTA A UM AMIGO BRASILEIRO

 

                                           para o Daniel Floquet

 

Por onde se olha, o chão é escuro,
parece sempre escuro, sem nenhuma
gota de luz ou pequena e cintilante
esperança. Mas, amigo meu, lembra
a folha isolada na árvore da triste
 
Avenida, aquela que resiste a toda a
força incessante do vento. Aquela
que diz sempre Não, Não, Não.
Aquela que suporta toda a memória
no seu frágil e pequeno corpo.
 
Quando vier o verão e a força já
não mais for possível, o seu corpo
sofrido, leve, macerado, será
a onda sonora do revibrante
renascer de um novo Mundo.
 
Caída a última folha sobre a terra
morta, a memória, permanecida no
seu corpo frágil, trará à vida o
fresco tapete verde da Avenida,
por onde passeará esta esperança.

 

Σαλλοω

“factus est Rex dolorum”
Vivaldi, RV 638.

                                                  para o João Coles

 

Cansada, a voz esperava que os sinos
cobrissem a sua mais profunda dor.
O vazio irremediável, daquele que tem
em si toda a doçura do Ser, revibrava
em onda sonora, a mais intensa, sobre
a planície impura dos olhos do Corvo.
 
No âmago, a pena negra caía além do
corpo. Esperando o tempo silencioso, a
pétala vermelha purificava a pesada dor.

 

SELENE

 

                                                  para a Tatiana Faia

 

A cegonha,
esvoaçando na mais imprevisível planície, dança
para, no esquecimento, romper até ao vácuo
de todo o voo.
Corre, foge além do rio,
da leve água que escorre, da
mera neblina branca que evita o
aparecimento do horizonte.
 
O lago tingido de leite
corre nas entranhas, veias,
crostas de feridas insaráveis,
abertas  na mais abrupta incompreensão.
 
O cavalo relincha. Não há quem o
pare, dura pedra! O dedo do olho desliza
em cada prega da crina.
Quem te consegue sossegar?
Relinchando a dor
somente
 
navega na mais intensa noite
da perdida
pátria.

b379ce34defc0adc7e5cdce359c96a37.jpg



 

 

 

Um poema de Kelly Grovier

  Tradução: Vítor Teves

 Velas enterradas

                   para Sean Scully

 

Algures, um menino encontra-se no fusco
de uma igreja vazia, no ar pesado
respirações de cera e fumo,
 
estica a mão ao longo do comprimento de desbaste
de uma vela do altar, rouba-a,
e sete outras ao lado. Em casa,
 
ele embrulha o seu roubo como peixe
em papel de jornal, enterra-o no jardim do pai.
Quando o padre chegar
 
para perguntar-lhe se tem alguma coisa pertencente a Deus,
ele escuta o eco mudo dos ossos
acendendo a terra. Agora, cada pincelada
 
é uma exumação, uma anatomia do fogo
um sussurro brutal com as invisíveis
congregações da alma.

de: Kelly Grovier


Buried Candles

                    for Sean Scully

 

Somewhere, a boy finds himself in the fust
of an empty church, in the stale
respirations of beeswax and smoke,
 
runs his hand along the thinning length
of an altar candle, steals it,
and seven others beside. Home,
 
he wraps his haul like fish
in newsprint, buries it in his father's garden.
When the priest arrives,
 
to ask if the boy has anything belonging to God,
he listens for the mute echo of bones
igniting the earth. Now, every brushstroke
 
is an exhumation, an anatomy of fire—
brutal whisper with the invisible
congregations of the soul.

de: Kelly Grovier

Sean Scully - White Window, 1988. Tate.jpg

Sean Scully - “White Window”, 1988.