Finados

Não me lembro mais dos teus olhos.

Isto é – me lembro sim, mas não daqueles
em que suponho (não me lembro) eu me queimava
quando a gente tomava chá:
mas só dos outros.

Um, dois milímetros de fresta (eu lembro bem)
donde saía uma luz fosca
que não chegava a iluminar a cara, isso não, imagina
mas que dava ao corpo todo
(ao corpo e às mãos, sim, sobretudo às mãos)
um halo mais solene
uma materialidade imaterial.

Das mãos me lembro bem, das últimas e das penúltimas,
pois quando entrava no teu quarto
ali pelas catorze
eram elas que me estendias, “Filho, és tu?”, ainda sonolento
na menção de me abraçar.

Sempre acordaste tarde, sempre foste um escândalo.
Hoje eu aqui leio o teu nome sobre o mármor
e é vento num cipreste
e um cão mija no além
mas dos teus olhos (não das mãos, das mãos absolutamente)
eu não me lembro nem a pau;
eu não me escandalizo.

(Quando ventava no cipreste
e um cão mijando não morreu
notei que algo se revelava
e estava a ponto de entregar-se
mas teus olhos se interpuseram.)

É tarde.

“Moço, moço!”

Acho que vão fechar o estabelecimento.

“Moço, ei!”

E um sino deu as vésperas e o sol sumiu e eu obstinadamente não me lembrei
[dos teus olhos.


D.J. Enright, "Dizendo não"

tradução de José Pedro Moreira

Dizendo não

Depois de tantas (em tantos lugares) palavras
Chegou-se a esta, Não.
Épocas de periquitos, pavões, aves paradisíacas –
Então uma coruja careca grasnou, Não.

E agora (neste lugar, uma vez) para celebrar,
Um som servirá,
Depois da conversa entretecida com amor sobre arte, amor e destino –
Apenas, Não.

Alguma virtude aqui, neste inane estupefacto com o discurso,
Para manter as coisas breves.
Apesar, de quão enfadonha, inchada e distendida a dor –
Dizer tão só, Não.

Virtude (ou apenas decência) teria sido,
Mas – não.
Eu envolvo aquela cabeça da morte, tudo demasiado simples, demasiado claro,
Com longas e bonitas ligaduras dizendo,

Não.


Saying no

After so many (in so many places) words,
It came to this one, No.
Epochs of parakeets, of peacocks, of paradisiac birds –
Then one bald owl croaked, No.

And now (in this one place, one time) to celebrate,
One sound will serve,
After the love-laced talk of art, philosophy and fate –
Just, No.

Some virtue here, in this speech-stupefied inane,
To keep it short.
However, cumbrous, puffed and stretched the pain –
To say no more than, No.

Virtue (or only decency) it would have been,
But – no.
I dress that death’s head, all too plain, too clean,
With lots of pretty lengths of saying,

No.

Cantiga da Segunda Primavera

Nem as canções
connosco mudarão
uma vez levada a temporada
e o tambor fresco
para cantar
outra vez e sem maneiras
a renovada temporada
nas coisas que então
daqui poderíamos guardar
mas é tão pouco
tão pouquinho vai ficando
que nem as canções
connosco mudarão
o castigo

de Cantigas da Malta à Janela [inédito, 2021]

Negrilho

 

Quando o negrilho estava vivo, éramos jovens,
Aquela sombra era eterna, junho era verde e fresco,
Havia esperança nas manhãs, a vida parecia um longo início,
Como te posso explicar agora na canícula
Que ali houve uma sombra, uma companhia silenciosa,
Mas tão presente, um negrilho que entretanto secou,
Como a juventude e o futuro, e todos os amores.

 

Turku

 

07.03.2021

Esperando o Café  

Enquanto espero que a água suba e o café desça,
Releio “Lament for Bukowski”, já não é manhã,
A noite passei-a a dialogar com uma encefalopatia hepática
E uma parede, ambas queriam comprar cigarros
Às três da manhã, numa cidade fechada,
Bens essenciais, subitamente a água sobe e quando cai
No nível superior já é café, o Bukowski continua
No seu caixão “dead as hell”, também o Al Purdy,
Não me lembro do que era antes de cair,
Talvez nunca tenha sido puro, a vida também isto,
Um lamento crescente, um poema que nasce de outra dor. 

08.03.2021
Turku