Gratidão

 

Não penses que não te estou grata pela tua pequena

amabilidade para comigo.

eu gosto de pequenas amabilidades.

de facto, prefiro-as às amabilidades

mais substanciais, que te estão sempre a mirar,

como um animal grande num tapete,

até que toda a tua vida se reduz

a nada mais que acordar manhã atrás de manhã

confinado, e o sol resplandecente brilhando nas suas presas.

 

Louise Glück, The House on Marshland (1975)

Generosidades

GENEROSIDADES

 

Ainda bem que partiste
a nossa vida em dois
e levaste a pior parte. 

Tão lastimável ver
dois corações ásperos
em refrega mesquinha
defendendo fronteiras
(Alto! além  pele ninguém passa)

Os livros, por exemplo,
são coisas  simples de dividir
rasgam-se metodicamente ao meio
para cada capa, a sua contracapa
e aí... foi pacífico que eu ficasse com os inícios.
A ti, couberam-te  todos os finais. 

Cada um soube dos seus territórios
e fomos razoáveis. Impossível
é partir uma pedra ao meio: levaste-as todas;
e afinal, bem vistas as coisas,  todas eram tuas. 

Filhos não tínhamos             e amor
nunca quiseste arranjar nenhum.
Tinhas razão; dava muito trabalho
e ocuparia muito espaço num peito
tão pequeno. 

Houve objectos difíceis de repartir mas
evitámos pugnas e contendas
como outros casais com tristezas
ainda mais tristes
do que a  nossa tristeza 

casais, disputando a mobília,
a conta bancária, o televisor… 

Aí, terás de concordar,
fui magnânima... prescindi
a teu favor dos vasos das orquídeas,
das magnólias, das náuseas, os fastio de cheiro,
aquele engodo, que regavas com carinho
e fizeras florescer à nossa janela (começava
já a dar os primeiros frutos). Levaste-os:
são teus…eu iria esquecer-me sempre de os regar. 

Ainda bem
que nos partiste em dois     
levando contigo  a pior parte. 

 

 

GENEROSIDADES II

 

 Como é a tua vida com uma mulher
vulgar, sem divino?
Agora que destronaste a tua rainha
e tu mesmo renunciaste ao trono,
como é a tua vida?

Marina Tsvetáieva (trad./versão de Paulo José Miranda)

 

 

Como é a minha vida   agora
sem um homem vulgar? 
Mais triste, não?... 

Triste  como perder o chão
de um sorriso espúrio ou
a alegria exígua da noite
extinguindo o dia.  

Nem que seja por um instante (um fósforo ardendo)
quando se toca o zénite da cegueira
até ao raso  de um poço fundo;
depois de alcançado o imo pródigo  
de um coração corrupto e descomposto    
como saber regressar, voltar atrás... 

Esterilizar os lençóis    a pele poluída? 

Como vivo agora sem esse homem vulgar e
sem divino, que circulava como sísifo
carregando a pedra da banalidade
às costas? 

Há que voltar atrás,
negar gomorra, sacudir o sal
do corpo e acolher de novo
a lucidez  puríssima
das manhãs do Olimpo.  

Eu, Madalena de rastos, 
cumprindo com desvelo
a plenitude do amor mais frívolo 
a  transcendência de uma paixão asmática.  

Respirando, num silvo agudo, a poalha de vidro,
aspirando a bomba, a falta de ar, minuto a minuto,
vencendo cada beijo a cortisona.  

E os  coágulos do sangue coalhando
no coração sublime. 

A minha vida, agora, sem esse homem vulgar:

Ser  Helena em Tróia,
subindo, sem esforço,  ao pedestal,
mármore precioso de carrara,
minha pertença, de onde
houvera tombado para ir habitar
o trono plástico de um homem       vulgar. 

Como é agora, a vida, sem esse homem?

Melhor, não?

Voltei a dançar descalça

sem medo de ferir a palma dos pés
com o engodo espinhoso   do fastio
dançando entre os meus
a música livre clara e límpida dos vitrais  

O peito colado ao coração dos deuses...

Acima de tudo melhor, muito melhor,
do que essa mulher, pobre mulher sentada,
agora, a seu lado no tamborete grosseiro de verga
onde se descansam os homens
banais.  

Desventurada  penélope, pobre, tão pobre
esperando e esperando, quase velha, as costas
curvas sobre o tear, as mãos ásperas e tesas
bicadas da costura, sonhando ulisses
já repassado por todas as mulheres
todas as deusas   feiticeiras --até por mim 

Melhor, bem melhor, que essa mulher mortal
fiando em sonhos um ulisses qualquer:
Qualquer um lhe serviria, mesmo  que velho,
senil,  imundo, sem cabelo
mas ainda assim, ulisses, com a cicatriz
encardida no tornozelo.  

Pobre mulher em Ítaca, tão só, tão pobre,
roendo a tristeza da ilha a pobreza do sal  
o mar  em redor   só sal em toda a volta,  

Pobre mulher tecendo ulisses
que afinal não veio: nunca virá
(e qualquer um lhe serviria
desde que lhe chegasse com os ventos
vinte anos, trinta anos, cinquenta:
esperaria quanto tempo
os deuses lhe concedessem) 

Triste penélope nenhum ulisses, nem argos, pretendentes,
mulher vulgar sem trono, a teia feita por mil vezes
e desfeita por outras tantas mil,
desacorçoada penélope  as mãos em sangue
os olhos quase cegos bordando noite dentro 

velha mulher ainda jovem, gengivas nuas
acolhendo o único afogado inútil
que deu à costa inânime, encalhado
num enredo de lodo e limos
arrastado pelos mares.  

Um homem rude, vulgar, com a ferrugem
expressionista dos dedos esfolando-lhe pele
como se fora carícia. 

E a minha vida? Era isso que perguntava.
Como é a minha vida agora sem esse homem?
vulgar? 

Melhor.
Muito melhor, não?

2 - Sirenes esgazeadas

Sirenes esgazeadas
torrente caseira de canteiros iluminados num regresso saudoso
descobrindo estivadores       lúcidos            perdidos
a boiar nos copos veranis
de passageiros          frequentes       hirtos
que trazem o sal do oceano
em pequenas fotografias círias               pálidas

se a noite é ainda a única pergunta
que a todos se nos coloca
porque nos inclinaremos então em frentes destes
se destes não mais guardamos do que
                                                 dança imprecisa
rumor antigo de uma
                           bem mais do que nossa
                                                       presença
                                                             mórbida
esfomeada de lares por encher com a sua doce próstata
o vagão do último metro disparado em veia quente
                                                                      delirante              
                                                                                  suada
correias de transmissão de doença        encruzilhadas venéreas
mancebos fecundados    alistados        para o culto do fogo azul

como se os destronando         um a um           ouvíssemos
pelas cavernas empedernidas do nosso corpo
uma imensa orquestra de tudo o que nos rodeia                gritando
uma imensa massa vulcânica             sedosa
reclamando as filhas dos néscios      uma a uma
nuas pelos vales de camélias de íris melosa
subitamente reaparecidas
                     como que um sorriso pleno
                                            nos vales antigos 
onde as máscaras destilam o ódio ao sol
                                              primavera traidora
                                                                punhal sagrado
ferindo o rebanho de           seduções temperanas
acordos mutuamente proveitosos     com ansiolíticos da casa

a prata da casa como um hino nacional entoado
                                      em directo
uma equipa de futebol piedosamente calada
                                       vendo o estádio cheio a desmoronar            finalmente

Até relinchas Patrick


Distância

tu agora és dos montes entre os bosques
e eu já das largas avenidas
tu da casa onde arde um grande fogo
e eu, além rio, do quarto esconso

tu agora buscando o mais da vida
e porventura eu do mal o menos
reclamando à solidão o fraco lucro
de todas essas coisas já sabidas
que aligeiram assim uns quantos dias
que lhes dão enfim uma corzinha

como a música, bons almoços
olhos lentos, alguma poesia
enganos de contas a meu favor

de João Miguel Henriques, Panónia (2021)

Ver mais sobre o livro

3 Poemas de _pescoço x sobreviventes de Carla Diacov, Garupa Edições, 2021

Whatever it is, the way you tell your story online can make all the difference.

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x

sobreviventes deitados trocam
figurinhas repetidas
experiências amorosas repetidas
de bruços trocam
feito meninos que tocam trocar
sorrisos enigmáticos repetidos
trocam até cascalhos repetidos
balançam os calcanhares no ar repetido e trocam
viram as barriguinhas para o céu 
trocam o curso das nuvens repetidas
trocam andorinhas repetidas
repetem TROCO NÃO TROCO TROCO
trocam as pernas de lugar
trocam o lugar de estado
os joelhos com os joelhos dos joelhos mais jovens
o de joelhos tortos repetidos
trocam hálitos repetidos
trocam ar
sobreviventes trocam tudo
apontam calor nós nos cabelos
trocam fluidos inevitáveis repetidos
furos de guerras ecoadas
trocam repetida a terra de lugar
dormem com raízes parecidas a joelhos
sobreviventes dormem repetidos
de repetidas mãos dadas a sonhar
incertas repetições mais 
exatos epílogos mais 



:

não me sinto tão 
bem nunca me senti tão capada
não tenho a memória de estar
vibrante "As they say on my own Cape Cod"
sinto que deveria ter me dedicado ao
arco e flecha como dediquei o pescoço
à leitura de teorias UFO
acordo com essa pança cheia de melancolia
olho minha mãe me olhando 
minha cachorrinha me olha olhando minha mãe triste
já fui pega olhando uma lata
de molho de tomates no lugar errado
o rapaz me pegou pela mão perguntou meu nome
perdida mora por perto está sozinha
entre ervilhas eu disse
o molho entre ervilhas
comprei caqui mole e bistecas de porco
comprei a serralheria dos ouvidos açougueiros
nunca me senti tão amputada
o caminho me levou até minha mãe
minha cachorrinha olhando minha mãe triste me olhando morta
acho que seu pai tinha isso que você tem
e isso veio da conversa com a psiquiatra
isso não tinha CID e eu tenho pensamentos mágicos
trocamos a cidade a psiquiatra
me sinto bem pior
agora que sei ser vibrante com a não compreensão
do tigre CONVIVER
sei e posso e alcanço falar sobre minhas deficiências
sobre meus distúrbios
e isso assusta muito quem não me vê babando
errando as pernas letras assusta não conhecer
devo ser mesmo esse caqui mole olhando
a lata errada nos mercados
carla
ninguém fala moléstia no poema
carla é só uma lata fora do lugar
carla
"As they say on my own Cape Cod"
a vida é bonita e cheia de coelhos com trevos entre os dentes
o rapaz mais famoso da minha estante
me puxa pelos cabelos
perdida mora por perto está sozinha
uma lata errada
"a loucura é portátil"


é claro que a lata não é errada
carla e a lata
"As they say on my own Cape Cod…
partners in prosperity."



:

tenho uma memória inquieta
tenho um pescoço de criança
conforto em lã com cheiro de avô
lavanda
canela com leite morno
nada mau
diriam 
para uma casa abandonada
nada mau
dizem 
nada nada mau
comenta quem acabará por morder meu pescocinho mofo