[chega de desculpas]

chega de desculpas
Gugu
estamos
para lá
de redenção

diz Séneca
grande é o homem
que trata
o que é de barro
como se fosse de prata
e não menos grande
é aquele
que trata
o que é de prata
como se fosse de barro
mas nós
que somos de barro
que felicidade
podemos achar na prata
a consolação dos derrotados?

debatemo-nos toda a noite
Gugu
certame aceso
aguardas
as labaredas da verdade
mas só
quando a manhã chega
é que vês
que as ferramentas
que usas
para medir as coisas
estão descalibradas
as palavras
estão tortas
as metáforas
instrumentos
de opressão
agora é claro para nós
Gugu
que as palavras
assentam
em assimetrias
estão a um ângulo da verdade
mas é difícil de ver
de que lado
o ângulo agudo
e por isso embelezamos
para não mentir descaradamente
mentimos discretamente

estabelecemos relações
entre objectos
a distâncias indeterminadas
das nossas mãos
e julgamo-nos sábios
e ficamos contentes
o nosso prémiozinho
de consolação
medalha de prata
funil na cabeça

3. (3/3 poemas de Ana C. Joaquim)

ela atravessa ruas cheias de carros.
ela ouve o ruído das buzinas e dos motores. é
a um só tempo
iluminada e obscurecida pelos faróis que se erguem
subitamente
sobre a sua incapacidade de olhá-los.
ela não espera.
ela caminha na sua direção.
ela que desconhece o nome que tem.
ela que não tem um nome próprio.
ela se levanta.
ela lava o seu rosto.
ela se senta.
volta a se levantar. 

você que tem um nome.
você a quem ela se dirige.
ela abre o livro
(sim, ela abre o livro quando se senta).
é o seu nome que ela lê no livro.
ela volta a se levantar.
ela que nem mesmo tem um nome
ela volta a se levantar:
chegará com você quando você chegar.
chegará desprovida de nome.
chegará sem o entendimento das coisas
(as coisas que possuem um nome).
olhará para as suas mãos.
olhará para os seus olhos.
você que tem mãos.
você que tem olhos.
você que tem um nome que ela não pode compreender.
você que tem um nome que ela chegou mesmo a pronunciar
(foi assim não foi? enquanto ela caminhava…?
ou terá sido quando ela se sentou?).
ela volta a se levantar.
atravessa ruas cheias de carros. ouve.
é.
caminha na sua direção.

Terena

de azul e amarelo
riscam-se caiadas
as casas honestas
sob o sol alentejano

reverbera branco o calor 
abafo de luz onde rebrilha 
a cegueira curva
xisto coberto pela mole temperatura
das horas que desconfiam 
em vago ócio consumado

sobrolho franzido 
fixo
e outros esgares esquivos
não é amistoso 
o rosto agreste de quem ocupa
as paredes raianas 
destes lugarejos
parcos de forasteiros

1. (1/3 poemas de Ana C. Joaquim)

1.

quando se tem um amante é um inferno.
ele está todo o tempo lá.
ele aparece.
ele desaparece.
ele vai.
ele volta.
ele quer ver a sua amante de vestido vermelho.
ele pensa na sua amante.
ele escreve para a sua amante.
ele envia uma pequena biblioteca diabólica para a sua amante.
ele quer que a sua amante lhe diga uma palavra de amor.
ele quer fazer amor com a sua amante.
ele quer morder o pescoço da sua amante como se fosse um vampiro.
ele quer ver a sua amante sorrir.
ele quer escutar a sua amante.
ele vai dormir esperando que a sua amante pense nele.
ele vai dormir esperando as palavras da sua amante pela manhã
(quando ele desperta).
ele escreve sobre diabos que se vestem de branco.
ele promove uma tempestade no meio das pernas da sua amante.
(pode ser que a qualquer momento ele morda o pescoço da sua amante).
ele diz para a sua amante
que para o diabo o pior dos infernos é o melhor dos infernos.
ele diz que o melhor dos infernos é aquele de onde não se volta.
ele diz para sua amante que não tem medo do irreversível.
ele quer que a sua amante não tenha medo do irreversível.
a sua amante não tem medo do irreversível.


O perfil de Ana C. Joaquim pode ser lido aqui.