Um mito de devoção - um poema de Louise Glück

gluckyoung.jpg

de Averno, 2006

Tradução de Tatiana Faia


Quando Hades decidiu que amava esta rapariga
construiu-lhe uma cópia da terra,
tudo o mesmo, até o prado,
mas com uma cama acrescentada. 

Tudo o mesmo, incluindo a luz do sol,
porque seria difícil para uma jovem rapariga
passar tão depressa da luz clara para a total escuridão. 

Gradualmente, pensou ele, introduzirei a noite,
primeiro como sombras das folhas ondulantes.
Depois lua, depois estrelas. Depois sem lua, sem estrelas.
Que Perséfone se habitue devagar.
No fim, pensou ele, vai parecer-lhe reconfortante. 

Uma réplica da terra
exceptuando que aqui há amor.
Não é amor o que toda a gente quer? 

Esperou muitos anos,
construindo um mundo, observando
Perséfone no prado.
Perséfone, com sentidos de cheiro e gosto.
Se tens um apetite, pensou ele,
tens todos. 

Sentir na noite o corpo amado
não é o que toda a gente quer, bússola, estrela polar,
escutar a quieta respiração que diz
Estou viva, que também quer dizer
estás vivo, porque me escutas,
estás aqui comigo. Depois um volta-se,
o outro volta-se. 

Isso foi o que ele sentiu, o senhor das trevas,
ao olhar o mundo que tinha
construído para Perséfone. Nunca lhe passou pela cabeça
que não haveria aqui nada para cheirar,
certamente nada para comer. 

Culpa? Terror? O medo do amor?
Estas coisas ele não as podia imaginar;
Amante nenhum as imagina. 

Ele sonha, pergunta-se que nome dar a este sítio.
Primeiro pensa: O Novo Inferno. Depois: O Jardim.
No fim, decide-se por
A Adolescência de Perséfone

Uma luz suave a ascender sobre a superfície do prado,
detrás da cama. Toma-a nos braços.
Quer dizer-lhe Amo-te, nada te pode magoar 

mas pensa
isto é mentira, por isso no fim diz
estás morta, nada te pode magoar
o que a ele lhe parece
um começo mais promissor, mais verdadeiro.



Louise Glück é uma poeta norte-america, nascida em 1943. Venceu hoje o Prémio Nobel da Literatura. Uma selecção de poemas seus saiu na revista Averno (12. 2009) em tradução de Rui Pires Cabral. Não nos ocorre outra publicação onde tenhamos visto a poeta editada em Portugal.

"Ansiei por" de Thomas Gorpas

Thomas Gorpas (Missolonghi, 1935-Athenas, 2003)

Tradução de Tatiana Faia com Yiorgos Evgenios Douliakas

 

Ansiei por

Ansiei por robalo cozido com batatas assadas e molho de ovo e limão
que deixa um cheiro doce e ressuscita.
Ansiei pela procissão da Sexta-Feira Santa na minha cidade.
Ansiei por carne assada no forno com massa.
Ansiei por leite fermentado.
Ansiei pelo ravani da minha mãe.
Ansiei por um cigarro do maço do meu pai.
Ansiei discutir Nietzsche e Dostoievsky com
Yiorgos Kotsiras e Yiorgos Fagópoulos.
Ansiei por deixar que a chuva me apanhe enquanto desço a rua
a fumar à chuva.
Ansiei pelos meus primeiros amigos de Missolonghi.
Ansiei pelos meus primeiros amigos de Atenas. 

Ansiei pelas raparigas ansiei pelas avós que se sentam nos degraus e
em bancos na rua em frente de casa verões inesquecíveis enquanto cai
o sol enquanto cai a tarde fantasias e fábulas junto com
desejos secretos e duras realidades.
Todas as coisas estão separadas e juntas o branco e o negro esquecidos e
Inesquecíveis coisas amadas e desprezadas.
E a poesia não fala de acabar. O céu na terra ou a terra
no céu dá no mesmo.
Cheiros do corpo cheiros da sala de aula cheiros do campo
cheiros do café e da taberna da sala
do quarto.
Vem cá Golfo no curral a mãe do Kitsos sentada o Yiannos
e a Pagona canções francesas da rádio Luxemburgo e
da rádio Montecarlo Zorro Dan Fowler e a revista Hele-
nopoulos de Nikos Tsekouras.
Tento atravessar um túnel e sair para a luz ou tento da
escuridão dos nossos dias entrar num túnel
inundado de luz?

E amor.

 4.3.1998 

Νοστάλγησα

 

Νοστάλγησα λαβράκι βραστό με πατατούλες αυγολέμονο
να μοσχοβολάει και ν
᾿ ανασταίνει.
Νοστάλγησα Επιτάφιο στην πόλη μου.
Νοστάλγησα γκιουβέτσι στο φούρνο.
Νοστάλγησα ξινόγαλο.
Νοστάλγησα ρεβανή της μάνας μου.
Νοστάλγησα τσιγάρο από το πακέτο του πατέρα μου.
Νοστάλγησα συζήτηση για το Νίτσε και τον Ντοστογιέφσκι με
τον Γιώργο Κοτσίρα και τον Γιώργο Φαγκόπουλο.
Νοστάλγησα να με πιάσει η βροχή στο δρόμο να περπατάω μες
στη βροχή καπνίζοντας.
Νοστάλγησα τους πρώτους φίλους μου στο Μεσολόγγι.
Νοστάλγησα τους πρώτους φίλους μου στην Αθήνα.
 

Νοστάλγησα κορίτσια νοστάλησα γριές να κάθονται στα σκαλιά και
σε σκαμνιά έξω από το σπίτι καλοκαίρια αλησμόνητα ενώ πέφτει ο
ήλιος ενώ πέφτει το βράδυ φαντασίες και παραμύθια ενωμένα με
κρυφές λαχτάρες και σκληρές πραγματικότητες.
Όλα είναι χώρια και μαζί λοιπόν άσπρα και μαύρα ξεχασμένα και
αξέχαστα αγαπημένα και περιφρονημένα.
Καί η ποίηση δεν λέει να τελειώσει. Ο ουρανός στη γη η γη στον
ουρανό το ίδιο κάνει.
Μυρουδιές του σώματος μυρουδιές της τάξης μυρουδιές της εξοχής
μυρουδιές του καφενείου και της ταβέρνας του θαλάμου και της
κρεβατοκάμαρας.
Έβγα Γκόλφω στο μαντρί Τού Κίτσου η μάνα κάθονταν ο Γιάννος
κ
᾿ η Παγώνα γαλλικά τραγούδια από το Ράδιο Λουξεμβούργο και
το Ράδιο Μόντε Κάρλο Ζορρό Νταν Φόουλερ και το περιοδικό Ελλη-
νόπουλο του Νίκου Τσεκούρα.
Προσπαθώ να διασχίσω μια σήραγγα και να βγω στο φως ή προ-
σπαθώ από το σκοτάδι των ημερών μας να μπω σε μια σήραγγα
γεμάτη φως; 

Καί αγάπη.

Pier Paolo Pasolini, "Giorgio Bassani"


Pier Paolo Pasolini e Giorgio Bassani

Pier Paolo Pasolini e Giorgio Bassani

Tradução: João Coles


A nova temporada literária italiana começou com um livro que li, desgraçadamente com uma profunda «correspondência de amorosos sentidos»: A garça, de Giorgio Bassani. É a história de um delírio - do qual o protagonista se dá conta subitamente, e não num momento «de compasso forte», mas num momento «de compasso menos acentuado» - em conformidade com a diabólica habilidade do autor, ou seja, no momento estilístico mais vazio, narrativamente mais cinzento. O «desgosto inconsciente» pela própria vida de um pequeno-burguês de Ferrara, vulgar mas nada insensível, a não ser pela ferocidade judaica que, tornando-o vulnerável, o arrancou brutalmente da vulgaridade fatal da sua classe social - passando a «desgosto consciente» repentinamente e sem razão nenhuma: talvez por saturação. Uma entropia que explode. Edgardo, o protagonista, é para mim um homem, se não odioso, repelente. Não conseguiria escrever uma só linha sobre este Edgardo. Sobre ele Bassani escreveu um livro inteiro; viveu com ele, portanto, durante anos. Como conseguiu?

Para Bassani, homens como Edgardo são heróis: «heróis burgueses» mal-grado a evidente contradição de termos, «a contradição que não consente». E porque é que são heróis? Porque não pôde ser como eles: um burguês semelhante. E o não pôde ser por factores externos: porque é judeu e durante a sua juventude - excluindo a perseguição racial e a «diversidade» judaica objectivamente operacionais em qualquer momento histórico - durante a sua juventude viveu o fascismo. Bassani foi, portanto, bloqueado na sua crítica à burguesia porque algo ou alguém o impediu injustamente de tornar-se burguês - caso ele tivesse querido. Ele foi privado da sua liberdade de tornar-se burguês. Isto fê-lo ver a burguesia sob uma luz diferente: a luz da nostalgia. Tratando-se para ele de uma «condição perdida» por motivos de força maior e não por escolha própria, começou a ter saudades dela (contrariamente à sua natureza de poeta que não consegue ser burguesa nem consegue ver um burguês como um herói; consegue, quando muito, vê-lo como «criatura» que dá pena ou faz sorrir, como nos filmes de Renoir ou de Tati).

Não sentindo repugnância mas nostalgia pela vida deles, Bassani pode não só descrever o mundo dos burgueses, mas pode, inclusive, descrevê-lo «revivendo» os seus discursos, isto é, citando constantemente as frases feitas e os lugares-comuns destes. Todos provenientes de uma ideologia atroz: conservadorismo, conformismo, consumismo paleocapistalista. Na prática, delineando a própria prosa da linguagem destes, Bassani consegue criar uma analogia entre o pequeno mundo burguês e o seu estilo, que se tornam em duas realidades paralelas. Edgardo decide morrer por causa da própria vida; Bassani, que reviveu a vida de Edgardo através do próprio estilo, parece desejar morrer com ele. Por isso é que a leitura deste livro é tão assustadora.

“Tempo” nº 47, a. XXX, 16 de Novembro 1968

in Il caos, Garzanti


Anne Sexton, "Velha"

anne.jpg

tradução: Bruno M. Silva

Tenho medo de agulhas.
Estou farta de lençóis de borracha e tubos.
Estou farta de rostos que não conheço
e agora parece-me que a morte começa.
A morte começa como um sonho,
cheio de objectos e do riso da minha irmã.
Somos jovens e caminhamos
e colhemos mirtilos selvagens
a caminho de Damariscotta.
Oh Susan, ela disse,
manchaste o tua nova cinta.
Doce sabor –
a minha boca tão cheia
e o doce azul acabando-se
a caminho de Damariscotta.
O que estás a fazer? Oh, deixa-me em paz!
Não vês que sonho?
Num sonho nunca tens oitenta.

Old

I'm afraid of needles.
I'm tired of rubber sheets and tubes.
I'm tired of faces that I don't know
and now I think that death is starting.
Death starts like a dream,
full of objects and my sister's laughter.
We are young and we are walking
and picking wild blueberries
all the way to Damariscotta.
Oh Susan, she cried,
you've stained your new waist.
Sweet taste –
my mouth so full
and the sweet blue running out
all the way to Damariscotta.
What are you doing? Oh, Leave me alone!
Can't you see I'm dreaming?
In a dream you are never eighty.