Fragmentos de "Quase um testamento", de Pier Paolo Pasolini

Foto do manifesto pelos dez anos da morte de PPP - Mario Schifano, "Pier Paolo Pasolini, una vita futura", técnica mista, Roma 1985.

Foto do manifesto pelos dez anos da morte de PPP - Mario Schifano, "Pier Paolo Pasolini, una vita futura", técnica mista, Roma 1985.

Tradução: João Coles

TEATRO E CINEMA

Há (e haverá sempre) biltres que fazem cinema e teatro comercial com o objectivo de divertir (para lucrar), e há (e haverá sempre) imbecis que fazem cinema e teatro para educar (sem lucrar). Na realidade, o cinema e o teatro de autor não foram feitos nem para divertir nem para educar.

O BEM E O MAL NA ARTE

A arte é uma concepção: é um sistema estilístico dentro de um sistema linguístico. É uma mensagem dentro de um código. Isto implica muitos compromissos. Claro que a forma mais pura de arte é o silêncio total dos poetas que não escrevem.

SOFRIMENTO E ARTE

Tanto quanto sei, não diria que sofrer seja necessário (porque tal maneira enunciaria uma regra e, portanto, faria uma retórica tranquilizadora), mas que é inevitável.

O GÉNIO

Nascemos génios, ou criamo-nos? Antes de mais, nascemos homens. Depois, nos primeiros anos da infância, apanham-se valentes sustos ou experimentam-se valentes ternuras que toda a vida é determinada por isto. Um génio (odeio esta palavra) é determinado pelos sustos ou pelas ternuras (ambas extremas) que uma criança sofreu. «Criar» génio consiste num manobrar (incansável, oculto, inconsciente, possesso, irrefreável) para recrear as ternuras infantis ou para criar barreiras contra os sustos infantis.

LIBERDADE SEXUAL

Se a liberdade sexual é necessária para a criação? Sim. Não. Ou talvez sim. Não, não, claro que não. Mas... sim. Não, é melhor não. Ou sim? Ah, incontinência maravilhosa! (Ah, maravilhosa castidade.)

GOLPE DE ESTADO

Seja o golpe de Estado italiano de 1964, seja o golpe de Estado levado a cabo na Grécia, foram acontecimentos que sucederam no âmbito da Nato. Em Itália levantou-se um processo contra os jornalistas do “Espresso”, que denunciaram à opinião pública alguns dos responsáveis pela tentativa de golpe de Estado. O inquérito parlamentar foi, porém, travado pelo partido católico (democrata-cristão) com o apoio dos socialistas. Evidentemente, não há vontade de determinar as responsabilidades internacionais.

Nós, intelectuais (nesta vicissitude muito grave), brilhamos pela nossa ausência. É verdade, ao jantar, nos salões, dizemos poucas e boas contra a classe política dirigente, contra a burguesia italiana que a exprime, e, em geral, contra este pequeno, marginal, provinciano, qualunquistico, miserável País que é a Itália. Mas e nós? O que fazemos? Somos, por acaso, melhores? O que é que nos faz ser ausentes e mudos? O medo? A prudência? A desconfiança? A preguiça? A ignorância? Sim, isto tudo.

Pier Paolo Pasolini, Quasi un testamento, com Peter Dragadze

"Advertência", de Antonio Delfini

Tradução: João Coles


Não venham comigo
porque sou sozinho
E andar com solitários
é como andar à noite
pelas ruas sem luz
Eles não vos dão nada
que vos sirva na vida
São pessoas pobres
que não têm o que dizer
a não ser deus meu meu deus
Ou sem dinheiro ou sem ideias
que vos sirvam
São todos pobres
todos abandonados
com um sorriso triste
sobres os lábios brancos
Sabem gesticular
sabem balbuciar
mas só de maneira estranha
Vocês não nos compreenderiam

Não se entediem por amor da santa
deixem-me inocente
do vosso tédio

Antonio Delfini, Poesie della fine del mondo, Einaudi


Avvertimento

Non venite con me
ché sono solo
E andar coi solitari
è come andar di notte
per le strade senza luce
Essi non vi danno nulla
che vi serva nella vita
Sono gente povera
che non ha da dire
se non dio mio mio dio
O senza soldi o senza idee
che facciano per voi
Sono tutti poveri
tutti abbandonati
con un sorriso triste
sulle labbra bianche
Sanno far dei segni
sanno balbettare
ma solo in modo strano
Voi non ci capireste


Non vi annoiate per carità
lasciatemi innocente
della vostra noia

Antonio Delfini, Poesie della fine del mondo, Einaudi

3 poemas de Eeva Kilpi

Pai, ontem choveu

e hoje choveu ainda há pouco.

Contudo está quente.

Deve vir um bom Outono de cogumelos.

 

Pai, em breve dão as notícias da noite

e a sauna está pronta.

 

Pai, regressa ao meu sonho.

Dar-te-ei pão, queijo

a bagas,

irei buscar água à nascente.

 

Pai, deixa-me practicar ainda.

É estranho estar assim insensível.

 

 

 

Bem se realmente

queres que me confesse

que assim seja:

eu tive

trinta e seis amantes.

Sim, tens razão,

é demasiado.

Trinta e cinco teriam chegado.

Mas amor, o trigésimo sexto

és tu.

   

 

Amantes oferecem um ao outro reinos,

novas pátrias, continentes e raras línguas.

Quando se separam, os presentes permanecem-lhe,

são irreversíveis

E o seu amor permanece neles

como literatura, habilidade na língua,

poemas e histórias

que eles juntos compuseram

na língua de cada um.

Assim o amor torna o mundo mais amplo,

assim, mesmo no seu desaparecimento

dá à luz paz e compreensão.

Novos corações se abrem,

há um pouco mais a partilhar

com os amantes seguintes.

 

Eeva Kilpi

A Partir de Um Provérbio Grego

A. E. Stallings em Like
(publicado também em Futures: Poetry of the Greek Crisis e aqui.)
Tradução de Tatiana Faia.

Ουδέν μονιμότερον του προσωρινού

Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta –
É só por um par de anos, dissémos, faz doze anos.
Nada é mais permanente do que o temporário.

Jantamos sentados em cadeiras desdobráveis – baratas mas alegres.
Colámos com fita-cola o vidro da janela partido. A TV ainda não sintoniza.
Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta.

Quando atravessámos a água, trouxémos só o que podíamos carregar,
Mas há sempre caixotes que não tornamos a abrir.
Nada é mais permanente do que o temporário.

Às vezes quando me sinto choramingas, propões uma teoria:
Nostalgia e gás lacrimogénio têm o mesmo travo acre.
Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta –

Escondemos ossos no armário quando não temos tempo de os enterrar,
Enfiamos recibos em envelopes, arquivamos papéis em pilhas.
Nada é mais permanente do que o temporário.

Faz doze anos e ainda estamos a comer do de costume:
Deixámos para trás a loiça do enxoval, com receio que estalasse.
Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta,
Mas nada é mais permanente do que o temporário.

4 poemas de Eeva Kilpi

*

Amor é a mais elástica dimensão humana.

É como a vagina.

Adapta-se ao grande e ao pequeno.

 

A natureza não decepciona.

 

 

*

Outono.

Agora lavo o esperma do verão passado.

Pouco mas mesmo assim.

É pena.

Não coube todo em mim.

E longo é o inverno.

 

 

*

É melhor que nos tenhamos conhecido só agora.

Se nos tivéssemos conhecido antes

Já estaríamos separados.

 

 

*

Diz-me já se te incomodo

disse ele enquanto entrava porta adentro,

que sairei de seguida.

 

Tu não só me incomodas,

respondi,

abalas toda a minha existência.

Bem-vindo.

 

Eeva Kilpi