A fome que nos mantém: prefácio à segunda edição de Fome, de João Moita

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Simone Weil escreveu um dia que o problema filosófico número um é o da fome no mundo. Claramente, esta sua afirmação pede para ser lida de forma literal: preocupava-a, de facto, a fome concreta que ameaça a vida de milhões e milhões de seres humanos em tantas paragens. A sua declaração era, assim, um manifesto político. Mas perscrutando o seu pensamento, percebemos depressa que esta fome, no centro do seu programa filosófico, não se resume à necessidade de pão: respeita também à vital carência de verdade e de sentido que Simone Weil identificava no mundo.

Transpondo a posição de Weil - e nem serão precisas especiais acrobacias, acreditem -, podemos dizer que a fome constitui o problema número um da poesia. Sim, a fome. E é isso que João Moita com este livro, bólide lançada em chamas contra os céus baixos da poesia portuguesa contemporânea, vem reivindicar. Mas que fome é esta? É uma fome que devora há milênios a poesia, mesmo quando parece uma questão fora de moda, declarada ilegal ou ultrapassada: a fome de Deus. A poética de João Moita expõe a penúria, a falha, a lacuna, a abstinência, a renúncia, a fratura, a fraqueza, o vazio, o despojamento, o silêncio – expõe, no fundo, a fome em múltiplas imagens e possibilidades. Faz da fome a sua narrativa, a sua travessia temporal, a viagem pelas (i)móveis geografias de uma vida. E fá-lo como confissão de si, mesmo se num tom contido e apofático, mantendo sabiamente o verso nesse estremecimento que o torna um quase pudor ou um quase impudor. Há uma comovente delicadeza neste travelling metafísico pelas entranhas. Mas não nos enganemos: a qualquer momento as mãos deflagram. A “minuciosa caligrafia” irrompe como “negra combustão”. E junto da garganta de Isaac (e junto da nossa) é, de novo, colocada a faca daquilo que luta connosco e não tem resposta.

Por esta via paradoxal, a poética de João Moita modaliza a fome como locus theologicus, visto que ela é o vínculo mais forte que nos une a Deus. Quanto mais duvidamos dele, mais o celebramos. Quanto maior for a consciência da distância ou da privação, maior será o encontro. E é esta incerta certeza que aqui se constrói como (im)possível oração: “quando vieres,/a minha fraqueza será sinal/para o teu reconhecimento”.

A intensíssima peregrinatio de João Moita recordou-me “O artista da fome”, o conto escrito por Kafka em 1922. O ponto de partida é a história de um artista que se apresenta como jejuador profissional, como outros se mostram como pintores ou bailarinos. O público pagava para vê-lo jejuar em direto e confirmar a sua magreza. O artista da fome tinha um agente que organizava o seu jejum como espetáculo, e que só lhe permitia jejuar durante quarenta dias, para a coisa não perder o pé. Era com muita relutância que o artista da fome interrompia o seu jejum, pois apetecia-lhe sempre continuar. Com o tempo, porém, este tipo de espetáculo passou de moda e o artista da fome, não podendo trabalhar em outra coisa, foi para um circo, onde ficou colocado num lugar fora do picadeiro, perto dos estábulos e das jaulas. No intervalo do espetáculo, as pessoas iam ver os animais selvagens e, eventualmente, olhavam para o artista da fome. Aos poucos, o artista da fome foi ficando esquecido e nem mesmo a tabuleta que registava os dias de jejum era atualizada pelos funcionários do circo. Certo dia, um inspetor, pensando que aquele espaço continha apenas um monte de palha apodrecida, ordenou que limpassem a jaula. Ora, debaixo da palha, descobriram o artista da fome. O instrutor julgou que se tratasse de um louco demente. Mas o artista da fome aproximou-se e revelou-lhe ao ouvido o seu segredo: “Preciso jejuar, não posso evitá-lo, por não ter encontrado no mundo o alimento que me agrada. Se o tivesse encontrado, pode acreditar, ter-me-ia empanturrado como todos os outros”.

Hoje, infelizmente, não é raro que a poesia seja mais uma comensal do grande e múltiplo e feérico festim do consumo. João Moita, em radical contracorrente, vem dizer que a poesia é fome.


Os Homens da Neve

I

Chega a idade do frio
Como um seio descoberto,

E um aguilhão destina
O norte acinzentado.

Canícula vergada, um
Homem lega o arado,

Mas também a neve,
Essa tarefa inteira

Como nenhuma era.

Entretanto, os dentes
Da urna crescem, e é

Esplêndido o seu tártaro.

 

II

Outro homem, moldado
Nos braços duros da mãe,

Arde rente à lareira
De cabelos sacudidos.

Vê a chuva na vidraça
Prenhe como cachos

Maduros, diluindo
Caminhos de melancolia,

Cujas pegadas, profundas
Como tiros, cicatrizaram.

Apenas homem, sonoro
Floco em queda das calhas

Do tejadilho, e morrendo,
Diria, como um segredo:

Mas ele é toda a neve que vês.

 

III

Carícias mansas de chuva
No granito prolongado:

A invernia absoluta
Não tem lugar em vida.

Ardem volutas de algodão
Nas ramadas encurvadas,

E, de quando em quando,
Um trovão descarrila

No céu por desmoronar-se:

Este homem crê que deus
Desliga interruptores,

Deixando o vento
Suspenso nos carrilhões

Da esperança.

 

IV

Tudo pode ser ideia:

O homem parte
Da frágua contida,

E já os cavalos negros,
Sem freio pela geada,

Antecipam as pilastras
Dos templos cantantes.

E diz sobre a alta
Neve, dando pelo sol,

Ser a pomba de Ovídio,

A bela transfiguração
Dos anjos indiscretos

De antigamente.

Este homem cria, e,
Por instantes, engana

O nada.

 

 

V

De madrugada,
Sinos toaram:

Eram os homens
Da neve, mordidos

De branco, inflamando
A hulha nos pulmões,

Preparando a travessia
Dos espelhos de Inverno:

E, frondosas frentes,
Entalham os pórticos

De mármore molhado
E distam as paredes,

Inventando novos
Recifes no azul.

Jamais os encontraremos:
Eles são a púrpura da ausência.

Nota de leitura (4)

Falo para ti à escuta.
As palavras escondem-se, não ouças
mais do que este rosto sonoro.

Como se a represa mostrasse
musgo, ramos podres, rãs,
folhas surgem dentro da casa.
Não a vejas.

À sombra do meu olhar
o que tiver de ser.

 

Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do Lugar, Relógio D’Água, 2001, p. 17.

 

 

Joaquim Manuel Magalhães é, sem dúvida, a verdadeira "angústia da influência" para muitos dos poetas nascidos na década de 70 e alguns da década de 60: ou escrever a "favor" ou "contra". O outro também é Herberto Helder. Ao reler os poemas inseridos em Consequência do Lugar, sinto que existe uma grande afinidade entre uma grande parte dos poemas e os de Paul Celan (afinidade essa que teve,quanto a mim, o seu ponto culminante no volume Um Toldo Vermelho). Poderei estar enganado, mas é o que sinto, quer no tom, mas também na economia das palavras, onde certos poemas adquirem um estilo quase epigramático, embora carregados de significado. No exemplo apresentado, a questão da universalidade já não se coloca, tento em conta a enorme subjectividade que o poema encerra. Contudo, a “falta” de universalidade não rouba mérito ao poema ou ao poeta, apenas torna a sua “influência” um pouco mais limitada. E quando digo “influência” refiro-me apenas ao alcance que o poema poderá ter. Sei que talvez esta seja uma maneira bastante maniqueísta de “ler” um poema. Mas também não estou a dizer que é a única.


Acabado de chegar da gráfica


João Moita
Fome
poesia
 

edição revista e aumentada
prefácio de Tolentino Mendonça

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Poucas vezes mais farei esta viagem. A erva cresce com o trigo, as flores despontam, as árvores segregam resina e dão sombra à terra ressequida. Os campos estão lavrados, o gado pasta ordeiramente, o rio segue amordaçado. Há pássaros invisíveis no horizonte e outros escondidos em ramos longínquos. Feras ocultas em recantos sombrios, a lentidão da seiva sob a descarnação do sol. O pó repousa nas covas abandonadas pelo vento ou soergue-se desamparado no topo das colinas, onde o tojo se inclina para os precipícios. Na povoação, desmoronam-se as pedras sob a cal, o sustento dos homens. Há frutos que se arredondam segundo geometrias bárbaras, apurando o gosto. E os insectos com a sua azáfama insone, divididos entre beleza e deslumbramento. E a areia dos caminhos, mais batida que o dorso de um cavalo, é a crina desta paisagem. Em breve deixarei de passar por aqui. Olho a íntima maturação dos campos e a solenidade dos estábulos. Vejo que tudo esteve sempre preparado.