Charles Bukowski, «Dinosauria, nós»

Tradução de João Coles

Nascemos assim
Nisto
Enquanto as caras de giz sorriem
Enquanto a Sr.ª Morte ri
Enquanto os elevadores se avariam
Enquanto as paisagens políticas se dissolvem
Enquanto o caixeiro do supermercado mostra o seu diploma
Enquanto o peixe sujo de petróleo cospe a presa oleosa
Enquanto o sol está mascarado

Nós
Nascemos assim
Nisto
Nestas guerras cuidadosamente loucas
Neste espectáculo de janelas de fábricas partidas de vazio
Em bares onde as pessoas já não falam umas com as outras
Em rixas de rua que acabam em tiroteios e navalhadas

Nascemos nisto
Em hospitais que são tão caros que é mais barato morrer
Entre advogados que cobram tanto que é mais barato confessar-se culpado
Num país onde as cadeias estão cheias e os manicómios fechados
Num lugar onde as massas elevam cretinos a heróis ricos
Nascemos nisto
Passeando e sobrevivendo nisto
Morrendo por causa disto
Silenciados por causa disto
Castrados
Debochados
Deserdados
Por causa disto
Enganados por isto
Explorados por isto
Mijados em cima por isto
Enlouquecidos e adoecidos por isto
Feitos violentos
Desumanizados
Graças a isto

O coração escureceu
Os dedos procuram a garganta
A pistola
A faca
A bomba
Os dedos procuram alcançar um deus indiferente

Os dedos procuram a garrafa
O comprimido
O pó

Nascemos nesta mortalidade pesarosa
Nascemos num governo endividado em 60 anos
Que em breve será incapaz de pagar os juros dessa dívida
E os bancos hão-de arder
O dinheiro será inútil
Haverá assassínio aberto e impune nas ruas
Serão pistolas e turbas errantes
A terra será inútil
A comida será um retorno decrescente
O poder nuclear será tomado pela multidão
Explosões assolarão continuamente a Terra
Homens-robô radioactivos perseguir-se-ão uns aos outros
Os ricos e os escolhidos olharão do alto de plataformas espaciais

O inferno de Dante será encarado como um recreio para crianças
Não se verá mais o sol e parecerá sempre de noite
As árvores morrerão
Toda a vegetação morrerá
Homens radioactivos comerão a carne de homens radioactivos
O mar será envenenado
Os lagos e os rios desaparecerão
A chuva será o novo ouro

Os corpos pútridos de homens e de animais tresandarão no vento escuro

Os poucos e últimos sobreviventes sofrerão de novas e hediondas doenças
E as plataformas espaciais serão destruídas pelo atrito
O desaparecimento gradual de suplementos
O efeito natural da decadência geral

E haverá o mais belo silêncio alguma vez ouvido

Nascido de tudo isto.

O sol ainda ali escondido
À espera do próximo capítulo.


Dinosauria, We

Born like this
Into this
As the chalk faces smile
As Mrs. Death laughs
As the elevators break
As political landscapes dissolve
As the supermarket bag boy holds a college degree
As the oily fish spit out their oily prey
As the sun is masked

We are
Born like this
Into this
Into these carefully mad wars
Into the sight of broken factory windows of emptiness
Into bars where people no longer speak to each other
Into fist fights that end as shootings and knifings

Born into this
Into hospitals which are so expensive that it's cheaper to die
Into lawyers who charge so much it's cheaper to plead guilty
Into a country where the jails are full and the madhouses closed
Into a place where the masses elevate fools into rich heroes
Born into this
Walking and living through this
Dying because of this
Muted because of this
Castrated
Debauched
Disinherited
Because of this
Fooled by this
Used by this
Pissed on by this
Made crazy and sick by this
Made violent
Made inhuman
By this

The heart is blackened
The fingers reach for the throat
The gun
The knife
The bomb
The fingers reach toward an unresponsive god

The fingers reach for the bottle
The pill
The powder

We are born into this sorrowful deadliness
We are born into a government 60 years in debt
That soon will be unable to even pay the interest on that debt
And the banks will burn
Money will be useless
There will be open and unpunished murder in the streets
It will be guns and roving mobs
Land will be useless
Food will become a diminishing return
Nuclear power will be taken over by the many
Explosions will continually shake the earth
Radiated robot men will stalk each other
The rich and the chosen will watch from space platforms

Dante's Inferno will be made to look like a children's playground
The sun will not be seen and it will always be night
Trees will die
All vegetation will die
Radiated men will eat the flesh of radiated men
The sea will be poisoned
The lakes and rivers will vanish
Rain will be the new gold

The rotting bodies of men and animals will stink in the dark wind

The last few survivors will be overtaken by new and hideous diseases
And the space platforms will be destroyed by attrition
The petering out of supplies
The natural effect of general decay

And there will be the most beautiful silence never heard

Born out of that.

The sun still hidden there
Awaiting the next chapter


Roger Federer

Jogo ténis federado há bastante tempo, vou a torneios (sem grandes resultados, diga-se) e treino cerca de 3 vezes por semana. Vim do basquetebol, uma transição difícil, ali muitas coisas fazem-se no ar, o cesto fica lá em cima, no ténis, pelo contrário, os pés devem estar bem assentes no chão, embora não fixos, cada golpe de raquete (ou raqueta) tem de ser desenhado e impulsionado com os pés em contacto com o solo (há excepções, mas é muito difícil bater bem a bola em suspensão e será sempre uma pancada de recurso). Vi aparecer Roger Federer no circuito há cerca de 15 anos, e já na altura o achava genial, tecnicamente genial, mas tacticamente inconsistente, incapaz de se tornar um competidor de topo, de vencer sistematicamente os melhores jogadores. Isto parecia demonstrado por entre 1999 e 2002 ter perdido 3 vezes na 1.ª ronda de Wimbledon. Subitamente, contra os mais justos prognósticos, em 2003 ganha o torneio, o primeiro de 5 consecutivos.

Enganei-me tanto na minha avaliação que agora, apesar de conhecer muito melhor este jogo (hesito em chamar-lhe desporto), quase não aposto no futuro de jovens jogadores. Bom, mas ainda bem que errei, mesmo tendo sido um “erro forçado”, isso significa que Roger Federer foi capaz de desenvolver uma inteligência táctica ao nível da sua extraordinária qualidade técnica. Culminando na vitória de ontem em Wimbledon, a 8.ª (sem perder qualquer set), aos quase 36 anos (idade incompatível com a importância de se ser fisicamente explosivo, mas Federer compensa isso integrando harmoniosamente no seu jogo a experiência acumulada), aliás, este ano venceu o open da Austrália e os master 1000 de Indiana Wells e Miami, uma verdadeira excentricidade, questão de mito mais do que de realidade.

O blogue da Enfermaria partilhou há dias um artigo magnífico de David Foster Wallace, que foi jogador de ténis no circuito universitário americano antes de se dedicar à vertigem da escrita, a linha de sentido está no título: “Roger Federer as Religious Experience”. E Wallace escreveu isto em 2006, quando Federer tinha apenas 8 Grand Slams, hoje, com 19, só poderia ser considerado uma religião (inspiradora mais do que prescritiva). Milhares de outros artigos, sem exagero, foram e vão ser escritos sobre este acontecimento épico, não quero rivalizar com a qualidade de muitos, sobre ténis escrevem poetas e prosadores de alto gabarito. Mas não pude calar o impulso para render homenagem ao jogador que mais me inspirou, dizendo-me repetidamente sem reservas que não basta “pôr a bola do outro lado”, é preciso fazê-lo respondendo a certos imperativos do belo. É preferível fazer 50 erros não forçados a tentar uma pancada “perfeita” (é aqui que mora a beleza do ténis) do que ganhar um jogo a “cortar fiambre”, a dar “madeiradas” eficazes ou a lançar “bolas mortas ao adversário”.

É já um cliché dizer que Federer joga para lá de ténis, que o que ele faz tem mais a ver com a respiração cósmica misturada com leis da física sublimadas pela arte do que com bater numa bola com a raquete num campo. Tudo nele parece irredutivelmente natural, nenhum gesto é forçado, não se descortina cansaço, quase não transpira, baila no campo, devolve a bola de tantas maneiras que parece testar todas as possibilidades do jogo, e é silencioso, porque não precisa de qualquer exterior, o campo, a bola, a raquete e ele são uma totalidade plena, nada é acidental, artificial no seu jogo, ele é o jogo. É por isso que Federer suspende o tempo, uma resposta de esquerda angulada, um slice, um vólei... e o tempo pára, o que ele faz não foi previsto pelos demiurgos. E pronto, fica o apontamento, tosco, mas é meu dever escrever sobre o que admiro, o que me leva a tornar-me qualquer coisa de diferente. Hoje à noite, lá vou tentar no treino imitá-lo, o que resulta sempre num certo ridículo, mas por vezes vislumbro uma ténue aproximação, e isso basta-me. Para a história pode ficar a frase que Miguel Esteves Cardoso escreveu no Público: Federer “Não é só o melhor tenista de sempre. Melhorou o próprio jogo.”

 

Hugo Milhanas Machado, Salas Bajas

Hugo Milhanas Machado
Salas Bajas
prosa poética
(em castelhano)

Enfermaria 6, julho de 2017, 48 páginas

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Nota previa

Mar de muros, el tiempo del fraseo cuando entona el poema y se adentra en sus modos y materiales. Habitar el oleaje que no acaba, sus mecanismos, el pedal del supertubo. Salas Bajas: barrio de Salamanca ubicado en el margen sur del río Tormes y nombre del complejo deportivo universitario allí situado. También, aunque más lejos, un municipio en la provincia de Huesca, Aragón. Y salas bajas, otros planetas y marejadas, las del lenguaje posible. 

Sete Poemas de Fernando Esteves Pinto

1. 

No quadro de René Magritte chovem pessoas na tua vida. 
São criaturas negras, biografias tumultuosas a dominar a vertigem.                
Uma precipitação que faz desmoronar o medo. 

Também tu crias o teu próprio movimento
e cada impulso é uma linha fulminante. 
Um dilúvio de vidas humanas numa paisagem demente. 

Arte soturna e severa que ameaça destruir  
as expressões iluminadoras. 
Planos de evidência insuportáveis
como uma loucura numa zona de perigo.  

Incompreensível humanidade que cria  
uma imagem para tudo
uma impressão de espaço no ar que respiras
ou uma natureza interna  
irradiando atmosferas químicas. 

Mapas à procura de uma decifração. 
Matéria terrena lançando no ar meditação e delírio.

 

2. 

Às vezes a tua mente é um relâmpago e incendeia-se.  
Com o fervor da combustão  
procuras a claridade eterna e infinita. 

És perseguido pela investigação divina
ou por uma filosofia da memória. 

Tornas-te uma sólida iluminação de utopias
como se o teu pensamento irrompesse  
numa dimensão acima da vida. 
Mais absoluto que a humanidade. 
Mais dominante que a angústia. 

Assim uma mente desconhecida da civilização: 
mais claramente humana. 

 

3. 

Nas cidades há cânticos decifrados da selva.  
Matéria em delírio.  

Florações de pedra procuram povoamento nos planos do ar.  
Animais leves perfurando a terra.  
Uma cerimónia de fé.  
Criaturas distantes na sua insensata revelação. 

São seres de coração colonizado  
a caminho da tragédia do espírito  
cheios de velocidade e febre
extraordinários de espanto. 

Sentes o tempo ligar a morte à matéria insuportável
e num momento de radiância  
surge um deus que se atira ao mundo.  
Porque tudo é uma fascinação  
um inferno que tem origem no sagrado. 

Quanto mais Deus mais condenação humana. 

 

4. 

Que ciência laboriosa: perder a memória. 
Quebrar as cordas do arco que já não vibram
e aceder à alma com toda a altura da tua vida. 

Então imaginas que anseios invadem a tua existência
quando amadurecido pelo esgotamento
celebras uma solidão que purifica tudo o que é silêncio.  

E perdes-te em inóspitos confins – furioso de linguagem
como uma revelação que te doira todo de luz e trevas. 

Mas nada mais existe que não seja a leveza  
de uma visão dominada por um saber inconsciente. 
Essa deformidade irradiante que intriga.  
Esse princípio de pavor insinuando-se.  

 

5. 

Este é o muro da angústia e do horror. 
A ele te encostas quando a vida se expõe à morte
e nenhuma razão serve de prumo para alinhar a piedade ao erro. 
A memória da tragédia ao extermínio humano. 

Tensas imagens em transe: uma devassidão do espírito. 

Sagrados crânios transformados em colmeias:  
empatias do destino. 

Uma geografia de sapatos retendo a sua marcha  
a um passo do fim. Regiões de ventos em extensos cabelos:  
uma harpa imortal na sua harmonia.  

Relógios e ouro e óculos que se amontoam  
como vermes incrustados nos ossos da história. 

É uma indústria da tortura que consagra a matéria. 
Outras vidas que ninguém sente. 

E só Deus acumula a herança de tanto sacrifício.

 

6. 

Seja qual for a ignorância e da sua tragédia  
uma consciência se torne triunfante
tão hipnotizada e poluente  
e ainda que a vida seja uma fonte de poder e doença  
neste plano da realidade que invoca a criação do mundo  
possuindo loucamente a imediata tenacidade da morte  

ou mapas do espírito numa precipitação de vozes  
como luzes explosivas a irromper das drogas íntimas do pavor  

esses instantes de fabricação do mal  
esse drama ávido irradiando os seus medos  
as suas dominações humanas. 

Seja qual for a perversidade da ignorância
procura a luz que melhor te possa salvar. 

 

7. 

Já nenhuma mente invoca a existência profunda
porque o que é profundo murmura em si  
coisas que não existem. 

E as acções mais iluminadas são apenas aparições  
veios de inspiração irrompendo no pensamento
imagens dobradas numa cabeça estremecida.  

É uma fonte de vigilância esta composição da vida:  
fonte cheia de situações tumultuosas. 

Vão buscar energias à íntima fecundação da humanidade  

E a tua mente vibra no seu nervo de treva e alvura:  
contemplações magnificadas pela razão.


Salman Rushdie: "Bem-vindos à era do impossível"

Numa entrevista recente para a revista de divulgação filosófica francesa Philosophie Magazine, Salman Rushdie desenvolve um pensamento crítico sobre os tempos que correm (não costumamos dizer que os “tempos andam”), resumido, como indico no título, no sintagma a “era do impossível”. Permito-me, tentando respeitar o princípio de propriedade intelectual da revista, expor as linhas de reflexão para mim mais importantes, acrescentando-lhe porventura alguns suplementos discursivos.

1. Uma fatwa individual e universal. Recordamo-nos da polémica teológica, e política, que a publicação de The Satanic Verses provocou em 1988, culminando na fatwa lançada pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini em Fevereiro de 1989, à época líder supremo da teocracia iraniana. Rushdie, ateu, mas de cultura muçulmana, tinha ousado blasfemar contra o islão e o seu livro sagrado, o Alcorão; ao mesmo tempo, agravando a acusação, declaravam-no apóstata. Rushdie passou então a viver na clandestinidade, ainda hoje, em Nova Iorque, a sua segurança exige cuidados extremos. O histrionismo fanático provocou tumultos em várias cidades, editores e tradutores foram atacados ou mortos e o próprio Rushdie escapou por pouco a um atentando em Agosto de 1989. Enfim, os maníacos de Deus traçaram linhas de vingança e de reparação moral que passaram por tentar aniquilar todos os “impuros” que, de uma forma ou de outra, estiveram ligados a este projecto editorial. Recorde-se que ainda hoje, segundo os Guardas da Revolução iraniana, permanece válida a fatwa contra Rushdie. Mas, para o autor, esta espada de Dâmocles pende sobre todas as cabeças que querem “usufruir da liberdade de expressão, ter a possibilidade de não acreditar, beber um copo de vinho numa esplanada, ouvir música; como também sobre todas as mulheres que não desejam usar véu nem viver sobre o domínio dos homens... fomos todos condenados à morte pelos fanáticos.” Explanação que encaixa no 11 de Setembro de 2001 e posteriores ataques terroristas, destacando-se os do Bataclan e de Manchester.

2. A era dos impossíveis, ou como criar contradições estéreis. Rushdie convoca três impossibilidades que incarnam a realidade actual, são impossíveis-possíveis que desafiam a ideia de que o mundo é tendencialmente lógico. À pergunta sobre por que razão se sente inquieto, Rushdie responde que “entramos na era do impossível”. Justifica-se com três exemplos: a) o Brexit. A sua educação inglesa (diplomado pela Universidade de Cambridge em 1968) mostrou-lhe sempre os ingleses como “pessoas sensatas, inteligentes e calmas”, formados no pragmatismo dos comerciantes. Parecia-lhe, pois, impossível um Brexit que põe o país numa situação geopoliticamente insustentável, quase pária, com dificuldades reais em encontrar o seu lugar na rede das relações internacionais. b) Donald Trump. Vivendo em Nova Iorque, Rushdie testemunhou uma tendência de cosmopolitismo e aprofundamento das liberdades individuais nos dois mandatos de Barack Obama. Tanto mais que este presidente recuperou a economia da crise dos subprimes, “A América aberta e liberal (no sentido americano do termo) tinha ganho.” Mas houve uma guinada, e a estupidez e a autocracia tomaram conta da Casa Branca, admitindo Rushdie que afinal não tinha percebido bem toda a realidade do país onde vivia. O problema, defende o autor, não está na ignorância incomensurável de Trump, mas no facto de “não compreender o que saber alguma coisa significa.” Concluindo que ele “tem uma forma de se orgulhar da sua própria ignorância que põe a democracia em perigo.” c) Narendra Modi. Para Rushdie, o Primeiro-ministro indiano vai arruinando o pluralismo democrático assente no politeísmo indiano, uniformizando e instrumentalizando a religião para executar uma via nacionalista. Para este fim, aproveita-se da falsa ideia de uma homogeneidade hinduísta (construída pelo colonialismo inglês por facilitismo taxonómico), uma síntese ideológica falsa que aproxima o projecto de Modi da “própria organização do partido nazi.” Assim, a muitas vezes considerada “maior democracia do mundo”, apesar de imperfeita e corrupta, onde havia verdadeira liberdade de expressão, pluralismo político e alternância democrática, está hoje numa deriva nacionalista e fascista.

3. O inábil purismo da esquerda. Pode a esquerda política actual, cada vez mais fragmentada, evitar o crescente autoritarismo nacionalista? Rushdie confessa-se desiludido, nos Estados Unidos Trump ganhou a Hillary Clinton porque Bernie Sanders defendeu em muitos sítios a abstenção, o mesmo se passou com Jean-Luc Mélenchon em França, ambos preferiram manter-se fiéis às suas convicções em vez de, com o pragmatismo que se lhes exigia, combater a direita autoritária e populista. O problema da esquerda, diz, é a “obsessão pela pureza”, isso impede-a de estabelecer compromissos com a realidade e desenvolve dissensos graves entre os partidos políticos que ocupam esse espaço. Por exemplo, na Índia o purismo ideológico fraccionou tanto a esquerda que hoje existem cerca de 25 partidos comunistas indianos. Por isso, Rushdie acredita que agora só se pode “combater ao centro”, um centro, tolerante e inclusivo, permanentemente ameaçado pelos extremismos (contra Francis Fukuyama, a história continua).

4. A ficção: entre verdade e mentira. Em Outubro de 2006, Rushdie afirmava que só havia narrativas, a nação, a religião, a comunidade... eram produtos narrativos.  (Point of Inquiry) Ora, essa tese contradiz o seu presente combate às fake news. Rushdie admite o paradoxo, mas consegue explicá-lo. Mantém que os humanos vivem pelas narrativas, só elas dão sentido à existência. O problema é que actualmente proliferam os conflitos entre narrativas, o mundo israelita contra o palestiniano, claro, mas também, por exemplo, no interior dos Estados Unidos entre o aparelho mediático do presidente e a imprensa. Isto desenvolve, refere, um “fermento de guerra civil”. Portanto, não se trata tanto de polarizar verdade e ficção, esta distingue-se da mentira, visto tentar “aproximar-nos da verdade.” Seguramente é a-científica, mas procura, ainda assim, acolher a verdade “abrindo outra porta.” Pelo contrário, a mentira não pretende sequer vislumbrar a verdade, ela opõe-se irredutivelmente à verdade. Mais, fá-lo ocultando a sua natureza, enquanto a ficção revela imediatamente que é qualquer coisa forjada, produzida pela imaginação. Ainda assim, Rushdie mostra-se optimista, acredita que a verdade resiste à mentira. Mas talvez uma pletora de dissensos entre narrativas aumente exponencialmente a conflitualidade estéril no mundo.

5. O realismo reduz a esperança de vida dos romances? Rushdie assegura que os seus livros se inspiram na realidade (não cabe aqui discutir as fragilidades do conceito). Mas isso parece acelerar a obsolescência das obras. Bem, o autor tem o antídoto: “um romancista deve concentrar-se na dimensão humana”. Trata-se de desenhar personagens que os leitores vão seguir, e ser seguidos por elas, o contexto histórico é apenas um pano de fundo. Em Guerra e Paz, a campanha napoleónica é menos importante do que as personagens principais que compõem o romance, são elas que prendem o leitor. Assim, é possível ser racionalista e realista, como Rushdie pretende ser, e ao mesmo tempo criar ficções que trabalham no inverosímil. É que não temos apenas um “realismo hardcore”, à la Martin Amis, há igualmente, por exemplo, o realismo mágico de Gabriel Garcia Márquez, que Rushdie admira. Aliás, é bom que imaginação e razão se contaminem e controlem mutuamente. A “imaginação sem razão produz monstros”, é esse o caso de qualquer alucinação fanática. Conhecem-se também os perigos do racionalismo, por exemplo “o colectivismo soviético, ao tentar criar um novo homem sem religião nem espiritualidade, gerou horrores.” Por isso, defende o autor, é preciso ligar estas duas dimensões centrais do humano, sem isso emergem os riscos que referimos e, além disso, “nenhuma arte é possível”. Portanto, para se regressar à era dos possíveis é preciso insistir na articulação entre imaginação e razão, conhecendo e respeitando o que há, por vezes definitivamente fixado, e inventando outras formas de viver, sem que nenhum dos campos esmague o outro. Não nos esqueçamos que Trump diz ser um sonhador, isto é, alguém que só atende à imaginação, permitindo-se gerar, ou deixar gerar, sem qualquer remorso epistemológico, contínuas fake news.