Savon de Marseille e Fósforos Azuis

Este sabão trazido de Nice, savon de Marseille, pur vegetal, de fabricação artesanal,
Que passo sobre a pele deste dia e que cobre o vapor de perfume
E me traz de volta àquelas peles de noites quentes, antes da vontade além cueca,
Aquelas emigrantes bem lavadas que regressavam à companhia dos galinheiros e das couves,
Aquelas peles demasiado brancas para o calor da procissão, deixando um rasto de perfume
Que se seguia atrás da cruz, este sabão laranja de jasmim que me traz aquelas manhãs
Em que as mulheres da aldeia se juntavam para fazer sabão azul em caixas de madeira
Forradas com plástico e na aldeia toda o cheiro da roupa lavada no estendal da eira
Com aquelas cuequinhas e cueconas a acender e apagar sonhos e vontades,
Este sabão para turista que me abre a porta de um banho à hora da sesta em verões
Com menos pêlos e lava tanto o sangue das mãos do que mata como do que salva
E me traz a caixa de fósforos de Paterson e todo o potencial das coisas pequenas
Para abrir portas e acender vidas na nossa, na nossa pele que todos tocam e nunca é a mesma.

Turku 10.06.2017

Dois poemas

Temos braços
e com eles, desenhamos uma linha aberta
no ar

O silvo do vento é íngreme
e inclina as chuvas para dentro

Deus tem postura de Deus
mas os homens pouco sabem
sobre o que é isso

Também há o som que
habita no gosto das palavras

E em nós

E nós que de tão juntos
nos descobrimos mais estando em Um

Nossos braços abraçam e afastam
E
Só o são porque vivem a liberdade

Nossos braços que abraçam e afastam
Cortam as ações pelo gesto
E o gesto é presença em nós

__ 

Nossa voz é uma rua larga
onde não adianta olhar para todos os lados. 
A travessia é o perigo. 

 

Poema Victor Prado e Aldovano Barbosa

Page Break

para Ana de Araújo

No campo, as manhãs se formam


No campo, 
as manhãs
se formam

Isso já foi dito, 

Mas novamente: 

No campo, as manhãs se formam como
pequenos adornos que as crianças carregam
por ai

Pequenos brinquedos, esses nossos
velhos dedos: tão sóbrios, tão retilíneos

Distantes dos rizomas, do
líquido viscoso da vida, 
do orvalho, da
coisa bêbada como o vento

Essa dança é uma espécie
de sistema hidráulico
Essa curva é um ritmo verde

Mas a mula sempre empaca
ou
O caminho sempre exige, em sua
rigidez, outras chegadas

II

O fedor da casa antiga, 

igual o da pele a muito presa
dentro do gesso, 

sempre acha um canto, que respinga
tranquilo nos encaracolados das plantas

III

Trabalhosa estação, pronta
a ser onda brava: 

Mãe que dá sua benção
a cria que logo adormece: 

Essa casa erguida no primeiro Sol
Ereta e rija, 
Mas também aberta

IV

A natureza observa

E atua

Tão cotidiana quanto um milagre. 

Charles Bukowski, «Dinosauria, nós»

Tradução de João Coles

Nascemos assim
Nisto
Enquanto as caras de giz sorriem
Enquanto a Sr.ª Morte ri
Enquanto os elevadores se avariam
Enquanto as paisagens políticas se dissolvem
Enquanto o caixeiro do supermercado mostra o seu diploma
Enquanto o peixe sujo de petróleo cospe a presa oleosa
Enquanto o sol está mascarado

Nós
Nascemos assim
Nisto
Nestas guerras cuidadosamente loucas
Neste espectáculo de janelas de fábricas partidas de vazio
Em bares onde as pessoas já não falam umas com as outras
Em rixas de rua que acabam em tiroteios e navalhadas

Nascemos nisto
Em hospitais que são tão caros que é mais barato morrer
Entre advogados que cobram tanto que é mais barato confessar-se culpado
Num país onde as cadeias estão cheias e os manicómios fechados
Num lugar onde as massas elevam cretinos a heróis ricos
Nascemos nisto
Passeando e sobrevivendo nisto
Morrendo por causa disto
Silenciados por causa disto
Castrados
Debochados
Deserdados
Por causa disto
Enganados por isto
Explorados por isto
Mijados em cima por isto
Enlouquecidos e adoecidos por isto
Feitos violentos
Desumanizados
Graças a isto

O coração escureceu
Os dedos procuram a garganta
A pistola
A faca
A bomba
Os dedos procuram alcançar um deus indiferente

Os dedos procuram a garrafa
O comprimido
O pó

Nascemos nesta mortalidade pesarosa
Nascemos num governo endividado em 60 anos
Que em breve será incapaz de pagar os juros dessa dívida
E os bancos hão-de arder
O dinheiro será inútil
Haverá assassínio aberto e impune nas ruas
Serão pistolas e turbas errantes
A terra será inútil
A comida será um retorno decrescente
O poder nuclear será tomado pela multidão
Explosões assolarão continuamente a Terra
Homens-robô radioactivos perseguir-se-ão uns aos outros
Os ricos e os escolhidos olharão do alto de plataformas espaciais

O inferno de Dante será encarado como um recreio para crianças
Não se verá mais o sol e parecerá sempre de noite
As árvores morrerão
Toda a vegetação morrerá
Homens radioactivos comerão a carne de homens radioactivos
O mar será envenenado
Os lagos e os rios desaparecerão
A chuva será o novo ouro

Os corpos pútridos de homens e de animais tresandarão no vento escuro

Os poucos e últimos sobreviventes sofrerão de novas e hediondas doenças
E as plataformas espaciais serão destruídas pelo atrito
O desaparecimento gradual de suplementos
O efeito natural da decadência geral

E haverá o mais belo silêncio alguma vez ouvido

Nascido de tudo isto.

O sol ainda ali escondido
À espera do próximo capítulo.


Dinosauria, We

Born like this
Into this
As the chalk faces smile
As Mrs. Death laughs
As the elevators break
As political landscapes dissolve
As the supermarket bag boy holds a college degree
As the oily fish spit out their oily prey
As the sun is masked

We are
Born like this
Into this
Into these carefully mad wars
Into the sight of broken factory windows of emptiness
Into bars where people no longer speak to each other
Into fist fights that end as shootings and knifings

Born into this
Into hospitals which are so expensive that it's cheaper to die
Into lawyers who charge so much it's cheaper to plead guilty
Into a country where the jails are full and the madhouses closed
Into a place where the masses elevate fools into rich heroes
Born into this
Walking and living through this
Dying because of this
Muted because of this
Castrated
Debauched
Disinherited
Because of this
Fooled by this
Used by this
Pissed on by this
Made crazy and sick by this
Made violent
Made inhuman
By this

The heart is blackened
The fingers reach for the throat
The gun
The knife
The bomb
The fingers reach toward an unresponsive god

The fingers reach for the bottle
The pill
The powder

We are born into this sorrowful deadliness
We are born into a government 60 years in debt
That soon will be unable to even pay the interest on that debt
And the banks will burn
Money will be useless
There will be open and unpunished murder in the streets
It will be guns and roving mobs
Land will be useless
Food will become a diminishing return
Nuclear power will be taken over by the many
Explosions will continually shake the earth
Radiated robot men will stalk each other
The rich and the chosen will watch from space platforms

Dante's Inferno will be made to look like a children's playground
The sun will not be seen and it will always be night
Trees will die
All vegetation will die
Radiated men will eat the flesh of radiated men
The sea will be poisoned
The lakes and rivers will vanish
Rain will be the new gold

The rotting bodies of men and animals will stink in the dark wind

The last few survivors will be overtaken by new and hideous diseases
And the space platforms will be destroyed by attrition
The petering out of supplies
The natural effect of general decay

And there will be the most beautiful silence never heard

Born out of that.

The sun still hidden there
Awaiting the next chapter


Roger Federer

Jogo ténis federado há bastante tempo, vou a torneios (sem grandes resultados, diga-se) e treino cerca de 3 vezes por semana. Vim do basquetebol, uma transição difícil, ali muitas coisas fazem-se no ar, o cesto fica lá em cima, no ténis, pelo contrário, os pés devem estar bem assentes no chão, embora não fixos, cada golpe de raquete (ou raqueta) tem de ser desenhado e impulsionado com os pés em contacto com o solo (há excepções, mas é muito difícil bater bem a bola em suspensão e será sempre uma pancada de recurso). Vi aparecer Roger Federer no circuito há cerca de 15 anos, e já na altura o achava genial, tecnicamente genial, mas tacticamente inconsistente, incapaz de se tornar um competidor de topo, de vencer sistematicamente os melhores jogadores. Isto parecia demonstrado por entre 1999 e 2002 ter perdido 3 vezes na 1.ª ronda de Wimbledon. Subitamente, contra os mais justos prognósticos, em 2003 ganha o torneio, o primeiro de 5 consecutivos.

Enganei-me tanto na minha avaliação que agora, apesar de conhecer muito melhor este jogo (hesito em chamar-lhe desporto), quase não aposto no futuro de jovens jogadores. Bom, mas ainda bem que errei, mesmo tendo sido um “erro forçado”, isso significa que Roger Federer foi capaz de desenvolver uma inteligência táctica ao nível da sua extraordinária qualidade técnica. Culminando na vitória de ontem em Wimbledon, a 8.ª (sem perder qualquer set), aos quase 36 anos (idade incompatível com a importância de se ser fisicamente explosivo, mas Federer compensa isso integrando harmoniosamente no seu jogo a experiência acumulada), aliás, este ano venceu o open da Austrália e os master 1000 de Indiana Wells e Miami, uma verdadeira excentricidade, questão de mito mais do que de realidade.

O blogue da Enfermaria partilhou há dias um artigo magnífico de David Foster Wallace, que foi jogador de ténis no circuito universitário americano antes de se dedicar à vertigem da escrita, a linha de sentido está no título: “Roger Federer as Religious Experience”. E Wallace escreveu isto em 2006, quando Federer tinha apenas 8 Grand Slams, hoje, com 19, só poderia ser considerado uma religião (inspiradora mais do que prescritiva). Milhares de outros artigos, sem exagero, foram e vão ser escritos sobre este acontecimento épico, não quero rivalizar com a qualidade de muitos, sobre ténis escrevem poetas e prosadores de alto gabarito. Mas não pude calar o impulso para render homenagem ao jogador que mais me inspirou, dizendo-me repetidamente sem reservas que não basta “pôr a bola do outro lado”, é preciso fazê-lo respondendo a certos imperativos do belo. É preferível fazer 50 erros não forçados a tentar uma pancada “perfeita” (é aqui que mora a beleza do ténis) do que ganhar um jogo a “cortar fiambre”, a dar “madeiradas” eficazes ou a lançar “bolas mortas ao adversário”.

É já um cliché dizer que Federer joga para lá de ténis, que o que ele faz tem mais a ver com a respiração cósmica misturada com leis da física sublimadas pela arte do que com bater numa bola com a raquete num campo. Tudo nele parece irredutivelmente natural, nenhum gesto é forçado, não se descortina cansaço, quase não transpira, baila no campo, devolve a bola de tantas maneiras que parece testar todas as possibilidades do jogo, e é silencioso, porque não precisa de qualquer exterior, o campo, a bola, a raquete e ele são uma totalidade plena, nada é acidental, artificial no seu jogo, ele é o jogo. É por isso que Federer suspende o tempo, uma resposta de esquerda angulada, um slice, um vólei... e o tempo pára, o que ele faz não foi previsto pelos demiurgos. E pronto, fica o apontamento, tosco, mas é meu dever escrever sobre o que admiro, o que me leva a tornar-me qualquer coisa de diferente. Hoje à noite, lá vou tentar no treino imitá-lo, o que resulta sempre num certo ridículo, mas por vezes vislumbro uma ténue aproximação, e isso basta-me. Para a história pode ficar a frase que Miguel Esteves Cardoso escreveu no Público: Federer “Não é só o melhor tenista de sempre. Melhorou o próprio jogo.”

 

Hugo Milhanas Machado, Salas Bajas

Hugo Milhanas Machado
Salas Bajas
prosa poética
(em castelhano)

Enfermaria 6, julho de 2017, 48 páginas

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Nota previa

Mar de muros, el tiempo del fraseo cuando entona el poema y se adentra en sus modos y materiales. Habitar el oleaje que no acaba, sus mecanismos, el pedal del supertubo. Salas Bajas: barrio de Salamanca ubicado en el margen sur del río Tormes y nombre del complejo deportivo universitario allí situado. También, aunque más lejos, un municipio en la provincia de Huesca, Aragón. Y salas bajas, otros planetas y marejadas, las del lenguaje posible.