Carla Diacov, bater bater no yuri

Carla Diacov
bater bater no yuti
poesia

Enfermaria 6, agosto de 2017, 32 páginas

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Diversão

pelo vidro brincar com a morte
a abelha que irá trombar com ideia verde

que tipo de anjo poliniza a memória?

pelo vidro o pombo batido
o nome batido
brincar brincar com a morte
despenteada cair do sonho

sob a mesa outra estação em interferências
absurdas: 
estamos aqui e essa pode ser uma resposta
que também pergunta

yuri! yuri yuri!
vem ver que barco estranho!

Felino de Ocre 

                                                    A Théodore Gericault 

 

Cobre-te todo o negro da noite. 
Da luz da tua esperança resta-te
uma pincelada no vidro dos olhos.
Uma chama ao longe na vila
avisa-te do festim que não  
foste convidada Leoa Ocre. 

O Cheiro a carne assada em
espetos trouxe-te até aqui. 
À tua frente um barulho festivo
e uma savana engolida por estrelas
que pontuam as tuas lágrimas. 

Brilha esse teu olho rodeado
de carvão negro
Um desejo de ser mulher. 

Quem são esses seres que ao
longe festejam a morte de teus
filhos? Dos seus belos corpos vejo
apenas as suas peles esvoaçando  
com o vento. 

Leoa Ocre engolida pela noite
ocultas a tua dor mas a tua
doçura ainda não foi roubada. 

Vítor Teves


Reclames

1.

vende-se
uma preta
muito moça com cria
sabendo lavar perfeitamente
e bem desembaraçada para
o serviço doméstico
é muito sadia
e o motivo da venda
é não querer servir mais
a seus antigos senhores

 

2.

vende-se
uma mulata
de 38 anos
com um filho
de 3 anos
de cor clara e
compra-se
uma negrinha
de 10 a 12 anos

 

3.

vende-se
uma família de escravos
ponha um escravo a trabalhar por você
temos uma família completa
o caminhão, a pick-up e a veraneio
essa família de escravos
é forte e resistente
em economia
nem sem fala
você só paga a manutenção
de seu escravo
isto é, gasolina e óleo
se ele reclamar alguma coisa
leva-o imediatamente à
assistência técnica
que dá logo um jeito nele
rapidamente ele volta a trabalhar
de graça pra você
atendemos diariamente
até 20 horas
sábados
até 17 horas
e inclusive
aos domingos
até 13 horas

 

4.

casal evangélico
precisa adotar
uma menina
de 12 a 18 anos
para cuidar de um bebê
de 1 ano
que possa morar
e estudar
ele empresário
ela também empresária
apresentar-se com
os pais ou responsáveis

 

5.

contratamos
trabalhador rural
carteira assinada
para receber salário
ou
remuneração de qualquer espécie


Torpor, O Cheiro dos cuscos nas bombachas, A caixa

TORPOR

Eu não queria ouvir o que ela tinha para falar. Como num transe, eu apenas via o mexer dos lábios murchos da velha, sua dentadura frouxa, e o bailar de sua língua saburrosa. Tudo sem som. Eu não escutava nadica de nada. O buço da velha lhe sombreava o lábio, e se misturava com os pelos que lhe saíam pelas ventas. Vez em quando algum perdigoto da bruaca me atingia o rosto. Eu permanecia imóvel. Eu não queria ouvir nada. Nadica de nada. No pátio um dos piás chutou a pelota, que entrou pela porta da cozinha, bateu no pé do fogão a lenha, depois no pé da mesa, espantou o gato que passava preguiçoso, veio girando, girando, girando, até que esbarrou em mim, me tirando do torpor. Lá fora começava um chuvisqueiro finíssimo, parecido com neve. E eu que não queria ouvir o que ela tinha para falar escutei a última frase do falatório da velha espanhola: O velho está morto.


O CHEIRO DOS CUSCOS NAS BOMBACHAS

Enquanto todos brincavam de campinhos, e de ser Batista, Zico, Sócrates, Cerezo, De León ou Falcão, eu preferia ficar com a cuscada. Eu queria ser ninguém. Me perder entre os guaipecas vadios e pronto. E só.

Eu abraçava os cuscos e sentia o coraçãozinho lá deles batendo junto ao meu.

Depois os gritos cessavam. Paravam os chutes. O futebol acabava. Os guris iam embora, cada um para sua casa, levando lembranças de dribles, defesas e gols lá deles… E os vira-latas também se iam, seguiam seu rumo.

Eu, a caminho do rancho, levava nada. Só o cheiro dos cuscos nas bombachas.


A CAIXA

 Ele chegou faceiro, depositou a caixa sobre a mesa e chamou toda a família para que víssemos o que havia conseguido no centro da cidade, na saída do trabalho. Foi uma pechincha, disse. Falou que se tratava de um animalzinho frágil, que faria muito bem a todos. Disse que o bichinho comia pouco, e se chamava Paz. Pediu para que todos se aproximassem. Disse que abriria a caixa. O guri menor arregalou bem os olhos e abraçou a perna do velho. Quando o pai abriu a caixa o bicho voou, e desapareceu por um vão da cumeeira. Mal tivemos tempo de ver a cor do animal. A Paz, tão desejada pelo velho, foi embora de nossa casa, e ainda cagou sobre nossas cabeças. O pai nunca mais foi o mesmo.


Sala De Espera

Quando é que os dias se tornaram numa sala de espera bafienta, escura,
Com mobília dos anos 70, onde zumbe já faminto o caruncho dos ossos,
Esperando que a porta se lhes abra e seja chamado o nome
À consulta kármica, para se receber um frasquinho com meia dúzia de dias felizes,
Depois deste volte cá e espere, a porta da rua está sempre aberta,
E lá fora ninguém, nada, a saída definitiva para um dia infinito e vazio,
Quando é que todas as revistas se tornaram sobre vidas desinteressantes,
Como espelhos ou então exemplos de todos os fracassos que se acumularam
Em nome de te tornares no que hoje és, algo afundado num sofá
Com as mãos sobre os joelhos, procurando encontrar em que linha te despistaste,
Como quem perdido num dia de chuva, procura encontrar o caminho
De volta, com um mapa ao contrário de uma outra cidade,
Quando é que surgiu esta vontade de saltar por cima de bocados enormes de vida,
Estações inteiras, companhias decentes, a fruta quase toda para o lixo
Na esperança de uma gota destilada de um Sol que se sinta tocar
Algo que enterramos há muito, bem fundo, só porque não se sabia, como nada se sabe
E por cima de toda a ignorância, erguemos este castelo de certezas e esperamos.

Turku