Mini Priapeia

a M.C.V./ CY

                        I

 Se um grão caísse sobre

este pequeno poema como

entenderíamos o tamanho?

Perdido aqui, o grão seria o

corpo vertical de um Homem

e todo este pequeno poema

uma enorme e majestosa piça.

 

                       II

 Ascilto, o desejado loiro, sabia

ou não apertar com vigor o

membro oculto de Hiriam Keller?

Esse músculo variável onde

as mandíbulas do desejo

coexistem com a língua e a cítara!

 

                           III

 Os homens, quando valem a pena,

são até ao umbigo, se Priapo

para com eles foi generoso,

senão fiquemos pelo joelho!

Que o fértil caralho de Priapo

seja água para as bundas e

as bocas dos famintos!

Poussin - Hymenaeus travestido durante um sacrifício a Príapo, pintada por Nicolas Poussin entre 1634 e 1638.jpg

Poussin - “Hymenaeus travestido durante um sacrifício a Príapo”, 1634-38. (Pormenor).

Daniel Francoy, "Identidade" ou economia do desalento (nota de leitura)

Identidade Daniel Francoy.jpeg

“Que improvável trazer
o dom da alegria.” (Identidade)

 Daniel Francoy, colaborador da Enfermaria 6, nasceu, desse segundo nascimento que nós consideramos primeiro, em 1979, vive em Ribeirão Preto e é uma voz emergente da nova poesia brasileira (atesta-o, por exemplo, o 3.º lugar do Prêmio Jabuti para o livro que aqui me traz). Identidade foi a sua primeira obra publicada no Brasil (Urutau, 2016), antes disso escolheu Lisboa, editora Artefacto, para lançar Em cidade estranha / Retrato de mulheres (2010) e Calendário (2015). De si, esboçando um pouco da sua identidade, diz: “Meus poemas falam sobre a minha relação de indivíduo com a cidade, o meu estar no mundo”. Ou: “As relações estão cada vez mais áridas e pobres”, daí a necessidade de escrever todos os dias, outra forma de eleger um mantra (ACidadeOn).

Procurei em Identidade, de que gostei muito, a palavra, linha ou estrofe que melhor resumisse a primeira leitura que fiz. Nas palavras hesitei, sem solução, entre “morte” e “sujidade”; nas linhas escolhi “Um estouro no bocal da lâmpada / lança o quarto nas trevas” (“Casa: Anotações”). Há outras mais patentes, mas esta ressoou com uma precisão assustadora nas memórias que vão esboçando o meu quarto escuro. As “trevas”, esse velho termo que inventamos para retirar todas as estrelas da noite, e o “estouro”, essa destruição fulgurante sem remédio, o genético virado do avesso, obra de um demiurgo alucinado, marcam a ferros quentes o desígnio deste livro. Mas, claro, foi também importante seguir a seta de sentido lançada pelo título: “identidade”. E se Fernando Pessoa não é exposto diretamente (também porque este nome designa, acima de tudo, uma constelação matriosca), ele destaca, com uma “luz fria” (oximoro recorrente), a dispersão, a evanescência, o desaparecimento dos hábitos que desenham Ítacas banais, onde se espera morrer mais do que vencer e ser feliz. Portanto, o título funciona, no mínimo, em câmara escura, ou, no máximo, na amplificação da certeza mais ignorada: somos seres para a morte, são as pulsões mortíferas que esquissam uma identidade condenada a fracassar, como tudo o que desaparece (e se há algum permanecer, ele dá-se como “uma lenta deriva”).

Autorretrato

Diante de mim, na parede
em que aparecem os primeiros sinais
do tempo infiltrado, há uma prateleira
ainda por arrumar.
Virá alguém um dia e dirá
é uma casa com a beleza
das ruínas e então
serei como qualquer pessoa que morreu
quando eu ainda não era nascido.

É por isso que Daniel Francoy escreve “com o avental sujo de sangue”, e as facas chamam-se “morte”, “crueldade”, “violência” (“que nunca se resolve, sôfrega / por deitar fogo em tudo”), “frutas ácidas”, “impuro delírio”, “cansaço”, “espectral”, “luz fria”, “seringa suja”, “solidão” (“Se tenho irmãos, se caminhamos / juntos, ignoro: / tornou-se o poeta de amanhã / mais solitário do que os assassinos.”). O manual de estilo vai para lá destas lâminas, Francoy é um poeta preciso, sóbrio, elegante, clássico (permitindo-me abusar da língua). Se fala da cidade como um buraco negro, da vida como uma espera, cansativa, da morte, é porque a realidade é isso mesmo (desculpem-me os perspectivistas). É verdade que por vezes, como no cinema, se escurece o local para realçar melhor um qualquer aspecto, e é possível apanhar Francoy com a lanterna na mão. Mas a sua economia poética geral não indica nenhuma redenção (a não ser, talvez, aquela que indiretamente recolhe, por sua conta e risco, o leitor estético, como acontece, por exemplo, com Voyage au bout de la nuit, Heart of Darkness ou o Livro do Desassossego). Fora essas micro-iluminações, um manto niilista originário, placenta do mundo, envolve cada estrofe deste livro. Espalhou-se uma metafísica negra sobre a vida, que parece medrar especialmente no falso refúgio da cidade (onde agora vive o Minotauro). Mais, Daniel Francoy, até um certo ponto contra Fernando Pessoa, não é pessimista em relação ao futuro, mas em relação à origem do projecto humano (sem as justificações estafadas de quedas teológicas), ao delírio humanista que esfarrapou o humano, pondo-o a correr atrás de uma cenoura que conduz a lado nenhum.

Mostrará isto um misantropismo insolúvel? Talvez, mas como em Fernando Pessoa, um “Misantrópico amante da humanidade” (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação). Nas linhas de sentido mais ocultas (fui eu que as escondi?), há uma espécie de empatia por omissão. Subsistem forças morais que barram a vulgarização do genocídio, se é, como diz, “ridícula a certeza de ser bom”, continua a socorrer-se o mendigo. Ainda se ama, mesmo que seja só “por hábito, por fome”.

A solução para os fracos

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Peçonhento, manhoso e tantos outros piropos de cariz luminoso regurgitou Camilo aquando da apoteótica entrada pela microscópica porta da tasca de seu proscrito amigo Zacarias, o mais conceituado e consistente distribuidor de prazer sexual por entre o mulherio casado do município. Matilde, madame de respeito e virtude, caíra no engodo de requerer os préstimos de Zacarias, sem prestar atenção ao detalhe, para todos irrelevante menos para o marido, de ser casada com Camilo, dono de napoleónica figura, pelo menos em termos de calvície, volume da barriga e estatura. 

Não obstante os três pares de estalos, o divórcio e o processo em tribunal exigindo exílio em África para a traidora e decapitação para o patifório amigo, a desonra viera para ocupar, quase por inteiro, o espaço mental de Camilo, o pobre de espírito, que da traição em diante daria em bêbedo de aguardente e fumador daqueles de acender o cigarro no cigarro acabado de chupar. Idas ao médico, recomendações de exercício, visitas a prostíbulos, miminhos sexuais da dona Rute, prostituta reformada para quem a tristeza dos outros se curava a partir de coito não remunerado. Nada removia o encornado do limbo. Camilo não esquecia, não perdoava o amigo Zacarias — já Matilde lhe sobressaltava menos a mente. Zacarias pedia perdão, quinhentas vezes de joelhos, de rojo, murmurando por favor, meu amigo, olvida meu pecado. Não, exclamava Camilo, às vezes encolerizado, outras vezes, muito por causa da bagaceira, mais pacificado. 

Camilo pedia punição terrena para o ex-amigo, mas o dia do julgamento final, da sentença máxima, do desterro, dos trabalhos forçados, da chacota pública, tardava como os milhões de dólares a entrarem na conta bancária do pobre. A justiça atingiria Zacarias no preciso dia em que traidor e traído se avistaram na tasca. Camilo sugava seu cigarro, ao mesmo tempo que com a língua raspava os restos de cera depositados no dedo mindinho, soprava adjetivação contra o inimigo, como se a palavra o fosse tombar ou enfraquecer, quando, quase do nada, um homem enegrecido, gigantesco, poderoso e medonho acariciou a nuca de Zacarias com um murro que lhe furou o osso e o matou logo ali. Eunuco, eis o nome desse bisonte de dois metros de altura que, também ele ferido na sua honra de marido, viera em busca do malandro para lhe entregar o poder da lei. Zacarias morto. Camilo vingado. A nossa história termina aqui, mas o suplício de Camilo estender-se-ia até ao túmulo: não há solução para os fracos. 

 

vamos provar o sol

com que então acaba

com que então acaba aqui

mas recomeça em breve

assim que acordarmos
vamos provar a canela
vamos provar o sol
e depois vão-nos perguntar
por onde é que andámos
e nós vamos desatar a correr pelas ruelas
como aqueles dois miúdos da aldeia de pescadores
que chegam vindos da praia
ao pôr-do-sol das nove
vamos desatar a correr pelas ruelas
e vamos dizer-lhes
que perguntem ao vento
que perguntem às nuvens já rubras
que a nós
não nos apanham
que é tão fácil intuir pelo impalpável
como pelas nossas caras
e não vão perceber nada
como poderiam perceber
se nunca estiveram de veias enlaçadas
uns aos outros
pouco importa
vamos pelas ruelas
ninguém nos descobrirá
vai pela esquerda
eu vou pela direita
encontramo-nos pela calada da noite
se não hoje
amanhã
ou noutro dia qualquer
entre o vento e as nuvens


agosto 2018


Fotografia: joão coles

Fotografia: joão coles

Alguns sacos de água com seres que vieram da praia

(desenhos de Ana Abreu)

1.

 Está ali o mar, ninguém nos ensina
aprendemos  muito de repente
e muito devagar

Seguimos esquecidas instruções
recolher o que dá à praia
(assim se diz), o que fica
a morrer, entre a primeira
e a derradeira água

Vibrasse ainda num saco
de improvável transparência
e seria milagre (é o termo)
essa mesma e
remota ondulação

Um tudo nada mais tarde
o distraído fervor das etiquetas

 

 2.

O distraído fervor das etiquetas
destino sumário das coisas
suspensas e atadas

Nem sabemos se as hastes vivas
agitam o desespero
(flores da água) ou sequer
suspeitam de quanto jaz  
na rotação do mundo

Calaremos as ondas que batem
(assunto arrumado), são agora
trabalhos de inspiração e asfixia
deixar cegos os nós, as cataratas
como seixos que encham os olhos

Fosse esta memória
do mar a transparência

 

3.

 Do mar a transparência
que a água em si retém
recomeçada e turva

O que partiu revela
outras densidades
(memórias e antenas)
apura íntimas correntes
como se em tudo regressasse

Ou fica por colecções
de etiquetas e figuras
esperando matérias carcomidas
(da maresia os ossos pequeninos)
e haverá quem diga que

ninguém nos ensina
e está ali o mar