"Maria" de Bertolt Brecht - um poema de Natal

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Tradução: J. Carlos Teixeira

Maria

A noite do seu primeiro parto tinha sido
Fria. Nos anos seguintes, porém,
Esqueceu inteiramente 
O gelo nas vigas da mágoa e a fornalha fumegante 
E o sufoco das secundinas pela manhã.
Mas mais do que isso, esqueceu a vergonha amarga
De não estar só
E que é tão própria do pobre. 
Principalmente por isso,
Anos depois fez-se festa, na qual
Tudo havia.
O grulhar cru dos pastores calou-se. 
Mais tarde, a história fá-los-ia reis. 
O vento, que era muito frio,
Fez-se canto dos anjos. 
Sim, do buraco no teto por onde o gelo entrava, ficou apenas
A estrela que por aí espreitava.
Tudo isto
Veio do rosto do seu filho, que era simples,
Amava o canto,
Chamava os pobres até ele,
E tinha o hábito de viver entre os reis 
E de ver à noite uma estrela pairando sobre si.


Maria

Die Nacht ihrer ersten Geburt war 
Kalt gewesen. In späteren Jahren aber
Vergaß sie gänzlich
Den Frost in den Kummerbalken und rauchenden Ofen
Und das Würgen der Nachgeburt gegen Morgen zu.
Aber vor allem vergaß sie die bittere Scham
Nicht allein zu sein
Die dem Armen eigen ist.
Hauptsächlich deshalb
Ward es in späteren Jahren zum Fest, bei dem
Alles dabei war.
Das rohe Geschwätz der Hirten verstummte.
Später wurden aus ihnen Könige in der Geschichte.
Der Wind, der sehr kalt war
Wurde zum Engelsgesang.
Ja, von dem Loch im Dach, das den Frost einließ, blieb nur
Der Stern, der hineinsah.
Alles dies
Kam vom Gesicht ihres Sohnes, der leicht war
Gesang liebte
Arme zu sich lud
Und die Gewohnheit hatte, unter Königen zu leben
Und einen Stern über sich zu sehen zur Nachtzeit.

Relato de Gustavo Soares

Dorothea Lange, Eloy, Arizona, 1934

Dorothea Lange, Eloy, Arizona, 1934

Diz Gustavo Soares, escreve, num pequeno caderno de apontamentos que me veio parar às mãos, mais propriamente à secretária, num primeiro momento, por procedimento de ofício, e depois, passados dois dias, efectivamente às mãos, escreve Gustavo Soares ter feito do seu local de trabalho, ao longo dos anos e por ardis cuja moralidade me escusarei de avaliar, plataforma de sedução, de engate (segundo escreve), tendo como alvo jovens do sexo feminino, frequentadoras dos banhos termais de Santana, onde até há bem pouco o indivíduo trabalhava como funcionário, repartindo o horário laboral entre tarefas administrativas, atendimento ao público e serviços de manutenção geral. Escreve, cito: fiquei a saber da parte de um conhecido, de um quase semi-amigo, psicólogo ou psiquiatra de profissão, que os indivíduos do sexo feminino, nomeadamente as mulheres mais jovens, com passado complicado no que à relação com o pai diz respeito, principalmente por morte ou abandono deste, têm maior propensão a deixar-se seduzir por homens mais velhos, não exactamente por idosos, mas por indivíduos cuja idade, estatuto e aparência física possa preencher na sua psique o lugar deixado vazio por uma figura paternal ausente. Como eu. Continua: esse dado, associado a uma necessidade premente de satisfação sexual, por me encontrar de momento a solo nesta vida (escreve mesmo assim, a solo), inspirou-me a conceber uma estratégia com vista à obtenção de alguma informação mais concreta relativa à paternidade de uma ou outra frequentadora deste charco, de modo, como se depreenderá, a aumentar as hipóteses de sucesso das minhas planeadas investidas. Sob o pretetxto de uma reformulação e actualização das fichas de inscrição do estabelecimento, pude abordar, numa primeira fase, três moças de considerável potencial para os meus objectivos, tendo-lhes então solicitado novo preenchimento do formulário em questão, ao qual havia acrescentado, por minha própria iniciativa e sem o conluio ou sequer o conhecimento de qualquer outro colega, o campo “Filiação” (numa primeira versão, amadoramente referido como “Nome do Pai / Nome da Mãe”, tendo igualmente sido considerada a hipótese, porventura menos discreta e logo abandonada, de pretender recolher mais dados pessoais acerca do pai da jovem em questão, de forma a avaliar o grau de proximidade entre os dois). Tendo havido pronta colaboração das jovens em causa, sensíveis às costumeiras burocracias dos estabelecimentos de recreio e terapia do Estado, quis a sorte ter uma delas apenas preenchido o nome da mãe (escuso-me, por algum sobrevivente dever de confidencialidade, a revelar aqui quaisquer nomes), sugerindo orfandade, corte de relações, ou pura e simplesmente um desconhecimento da identidade do pai, fruto de abandono em tenra idade ou de promiscuidade sexual materna. À primeira oportunidade que tive, saía a moça em questão do balneário em direção à sopa (a maior e principal piscina de água quente no recinto), interpelei-a a esse propósito (Peço desculpa, Menina S., se me permite), justificando a diligência pela necessidade de manter nos registos formulários devida e integralmente preenchidos. Pude então obter da senhorita a sentida e honesta confissão de que não, não podia dizer-me o nome do pai, pelo simples facto de o desconhecer por completo. Terá aí começado, nesse momento de espontânea abertura, uma relação de crescente intimidade, por mim potenciada sempre que possível, com o propósito já aqui exposto, confessa Gustavo Soares no seu relato.

Descreve Gustavo Soares ao pormenor o aspecto físico da acompanhante (nas suas palavras, a mulher que me acompanhava e, mais adiante, por evidente escrúpulo profissional, a utente, a cliente), concentrando-se com especial interesse na ossatura, e avaliando também a feliz adaptação de carnes e músculos às protuberâncias ósseas. Tudo aquilo tão fascinante, ainda que ao mesmo tempo distante do foco principal do seu relato. Ou talvez eu me equivoque por completo, não saiba de todo, sim, estou porventura enganado e este caderno de notas e impressões, na sua caligrafia cuidada, a dar-se toda a ler por qualquer um, não pretenda fixar os contornos principais de um caso de polícia, desse negligente descuido que os nossos serviços de vigilância cometeram no espaço público de umas termas municipais, mas sim registar aquela figura feminina (sou eu que assim a chamo) nas mais variadas poses e movimentações, sim, em todas as diversas poses que obrigam o corpo a torcer-se ou endireitar-se, como quando Gustavo Soares, levando-a pela mão pelos corredores ilicitamente iluminados dos banhos e chegando ao salão da piscina principal, descobriu os nossos agentes nos preparos e empreendimentos que a mim mais interessa registar. Conta Gustavo Soares, logrei convencer a utente, após um bom número de encontros crescentemente românticos, a cometer delito de trespasse, a saber, penetrar comigo o espaço termal fora do horário de abertura, fazendo dele, por este meio, privado espaço de recreação nocturna. Queria tirar-lhe a roupa e beijá-la muito, admite. Primeiro tirar-lhe as peças de roupa, depois beijá-la imenso nas minhas partes preferidas, em particular nos recantos e ângulos que já lhe admirara. Joelho, escreve, dobra de joelho, leitoso interior de coxa, ventre, colo, carnes axilares. Já ilicitamente infiltrados no interior das termas, relata Gustavo Soares, ao dobrar ligeiramente a esquina do corredor, provenientes do bebedouro na direcção da piscina mais quente, pude imediatamente vislumbrar dois homens dentro de água, em silêncio, ocupados com uma qualquer instalação de cabos eléctricos que não pude no momento perceber. Detenho o passo e com o corpo impeço também que a utente prossiga, embalada atrás de mim. Vai para falar mas já eu estou em cima dela e ponho-lhe a mão sobre a boca, sem violência, antecipando-me com elegância, porque já sei que seguramente haveria de dizer alguma coisa, perguntar o que se passa, não é por aqui?, qualquer coisa, não tendo visto, como eu, dois indivíduos na piscina, de fato de banho, com água a meio torso, junto aos tabuleiros de xadrez em mármore, que no centro da piscina costumam entreter os clientes mais idosos, ocupados eles, os dois sujeitos, com fios e pequenos dispositivos. Viro-me para ela, coloco-lhe a mão direita sobre a boca e com esquerda, quase ao mesmo tempo, envolvo-lhe a cintura de adolescente, puxando-a para mim, para mantê-la sob controlo, imobilizada, consciente portanto de uma certa gravidade de circunstâncias, embora sem o temor ou tensão extrema resultantes da noção de um perigo, descreve assim Gustavo Soares, virando aqui a página do seu caderno. E na folha seguinte continua, puxo-a para mim e de imediato sinto a proeminência do ílio na minha coxa, numa agradável pressão de ossos, empolada pela aventura da situação. Segredo-lhe, não digas nada, estão ali pessoas, e sem que disso esteja de início consciente, percorro-lhe com os dedos da mão esquerda o vale (sim, Gustavo escreve vale) que ao fundo das costas antecipa as nádegas volumosas. Segredo-lhe isto, menos em jeito de alerta que de pedido caridoso, e passo o olhar, num relance, pela fascinante elevação óssea por detrás da orelha de leite. Recordo a primeira vez em que pude contemplar-lhe o que vim a saber chamar-se processo mastóide do osso temporal.

Recordei nesse momento? Ou talvez agora, que escrevo este relato, para memória futura, deleite ou desplante de alguém que não conheço. Foi no nosso segundo encontro, sentados num banco do Jardim de Santana, ela a falar-me do pai desconhecido, desse não-pai que ali me servia de poderoso aliado, e eu a olhar-lhe a face de perfil, o descomunal comprimento das pestanas maquilhadas, o movimento dos lábios na verbalização dos revezes da existência. Enumera Gustavo Soares, o olhar virado para diante, à procura talvez desse pai perdido no mundo, o cabelo arrumado por detrás da orelha sublime por dedos lestos e nervosos. E depois, entrevisto por entre os cabelos dourados, aquela maciça orla de crânio, montículo redondo de osso a anunciar a planura do pescoço, decorado por um sinal muito pequeno e muito escuro, descaído sobre o lado direito. A luz da tarde colaborava. E após o pai (tenta aqui Gustavo Soares recriar-se no conceito do já enunciado não-pai, mas sem grande sucesso, arriscando despai, impai, ambas as soluções rasuradas), ao mesmo tempo que por dentro me regozijo na descoberta daquele tesouro, passa ela de um momento para o outro a queixar-se da mãe, olhando-me apenas por um segundo, para se certificar da minha atenção. Estou mais atento que nunca, absorvido por completo, e ela agora desencosta-se do banco e fica ligeiramente dobrada para a frente, com as mãos unidas sobre as coxas, e o melhor osso do ano revela-se ainda mais, num ângulo mais favorável. Eu a escutá-la, não obstante, que a mãe realmente não sabia como amar uma filha, que na verdade nunca soubera o que era o amor, e que ela agora temia um dia ser mãe e também não saber como é, como se faz. Tenho nesse instante o meu cérebro partido ao meio, escreve assim mesmo Gustavo Soares. Dois processos cognitivos desenvolvem-se em simultâneo, como sempre acontece quando estou com ela. A forma e o fundo. Nesse banco de jardim, mais tarde no corredor nocturno dos banhos termais e também da última vez que a vi, nesse dia que, em podendo escolher, preferiria nunca mais recordar. Dois registos diversos, mais concomitantes. As coisas dela e a minha coisa. Sim, o cérebro a querer respeitar reflexões de espírito, assuntos importantes, mas sequioso da imediatez da carne, escreve Gustavo Soares, muito sério e ponderado, com a tinta preta da caneta já sem o fôlego inicial.

Muda para o azul, prossegue. Liberto-a, primeiro a mão da boca e logo a seguir o braço da cintura. Ela encosta-se à parede do corredor, aparentemente tranquila, sem aquela perigosa urgência de ver pelos seus próprios olhos. Eu sim que preciso. Quero ver mais pelos próprios olhos. Quero, devo. Ainda que fora do horário de serviço, sou funcionário deste estabelecimento termal, lembra Gustavo Soares. Preciso de ver, preciso de entender, quem se move no meu domínio. Dois indivíduos de fato de banho instalam um qualquer aparelho no interior de um ralo de escoamento, na face superior da estrutura central da piscina, com os seus bancos e tabuleiros de xadrez. Estão agora a repôr a tampa do ralo e parecem fazer testes de som. Auriculares nos ouvidos, receptor na mão. Um deles diz, fui a casa da vizinha pedir ovos mas ela não estava. A minha acompanhante encontra-se também toda à escuta e a estas palavras franze o sobrolho numa expressão de estranheza. O mesmo indivíduo acrescenta então, na Argentina o gado bovino supera em cabeças o número de habitantes. Quero explicar à utente que os homens estão a testar um aparelho de escuta, e não a fazer enigmática conversa de circunstância. Quero explicar-lhe, pois está quase a rir-se, ignorante da gravidade da situação, por isso puxo-a um pouco mais para junto de mim, para o limiar do meu ângulo de visão, para que também ela veja, para que se inteire e assim saibamos os dois a mesma coisa. Sinto-lhe no corpo um estremecimento, creio que percebe o que afinal se passa. Não sei se terá completa consciência, mas estas situações não são desconhecidas. Máquinas de ouvir e registar. Gente detida e interrogada por algo dito em confidência. Tenho ouvido dizer, e de repente, sem que o tenha previsto, sinto um rasgo de indignação atravessar-me o corpo e estou para entrar no recinto de rompante e pôr um termo a tudo aquilo. Estou afinal no meu direito, sou funcionário do estabelecimento, apesar de a desoras, em flagrante prática de delito ligeiro. Mas quando estou para avançar sinto-a puxar-me o braço. Olha para mim, com uma expressão de gravidade a tender para um pedido que não pode ali verbalizar. Está a dizer-me que não, que não faça nada, que o melhor é agora virar costas e sair dali . Penso que não quer ver-me em perigo, ver-nos aos dois em perigo. Olho para ela e percebo. Desejo por um lado confrontar aquelas presenças insultuosas, mas ao mesmo tempo sei que isso ditaria o final abrupto dos meus planos com ela. E desse modo, eu próprio preso, morto ou no mínimo desmascarado, não poderia concretizar o meu sonho. Aquilo que eu ainda não lhe disse, que ainda não lhe tive coragem ou palavras certas para dizer (será preciso?), mas que tenho mesmo de alcançar, pois é da natureza dos sonhos, ou da própria natureza deste em particular, a absoluta necessidade de concretização, para que no meu caso algo faça sentido e eu possa acreditar ainda que nem tudo é estrita efabulação da mente, e sempre é possível alguma coisa verter-se em realidade, em momento que depois se recorde e, como num ciclo que se repita, trate por sua vez de alimentar a cabeça por muito tempo.

Fecho o caderno, pois o parágrafo seguinte vem antecedido de uma enorme rasura de meia página. Palavras ilegíveis que desse modo me fazem parar, suspender a leitura, para reflectir. Desconheço os motivos da redacção deste relato e na verdade não sei o que fazer com ele. Devo extrair destas notas, de acordo com o procedimento, o essencial para os nossos serviços. O chefe diz, o tutano. Só que eu não entendo porque Gustavo Soares nos conta tanto ou me conta mais do que eu precisaria de saber. Quer mostrar-nos conhecer as nossas transgressões, mas desconheço porque nos revela as dele. É que assim fico confundido e já não sei o que é realmente importante naquelas linhas. Sabemos que se demitiu do trabalho nas termas municipais no final do mês passado e que no dia seguinte partiu para parte incerta, tendo enviado por correio este caderno, ao cuidado do nosso director. Estou em crer que devo tão somente registar as circunstâncias em que os nossos instaladores foram detectados na execução das suas tarefas. Requerer informação acerca do actual estado de funcionamento do sistema de registo e gravação do estabelecimento termal de Santana. Recomendar averiguações junto dos funcionários do dito estabelecimento, a fim de avaliar a extensão do conhecimento acerca das nossas actividades de vigilância. E consoante os resultados dessas averiguações, recomendar ou não o desmantelamento das escutas. Ou então ir à procurar dela, da senhorita S. Ou simplesmente não fazer nada, cruzar os braços à luz baça de Outono, e esperar que Gustavo Soares reapareça ou se dilua no tempo. Esquecer o homem, deixá-lo em paz e esperar até que tenha logrado realizar o dito sonho. Viro a página.

É muito de manhã e ela dorme ainda. Está deitada ao meu lado, com uma das pernas de fora, joelho subido à altura do ventre e cobertor preso entre as pernas. Vem-me à cabeça transmitir-lhe algumas regras no que ao dormir juntos diz respeito, em particular a proibição de se reter ou monopolizar o cobertor comum, o qual deve, em condições ideais, ocupar sempre toda a extensão do leito, sem deslocações excessivas ou escusadas entradas de ar. Penso que irá perceber. A primeira luz do dia alastra pelo quarto empoeirado. Tento reconstituir um sonho, mas não consigo. A presença dela domina-me. Passo os olhos por uma marca de nascença que já me é bem conhecida. Na coxa, um pouco acima do joelho. Sei que se aparenta com uma qualquer ilha do nosso planeta, tenho a certeza. Folheei certo dia todo um atlas diante dela, à procura da ilha perfeita e contentei-me na altura com uma grã-bretanha esguia e deformada à esquerda. Agora penso, devo continuar à procura. Talvez na imensidão do pacífico descubra a amplificação física de uma perna despida. Ela dorme profundamente e dentro das calças de pijama intuo a possibilidade de concretizar com ela o tal sonho de sempre. Está muito duro, o grande barco, e húmido na ponta. Já muito molhado da contemplação de lençóis desfeitos e terras britânicas. Saio da cama, tiro-o para fora e coloco-me de pé, diante dela, do seu rosto adormecido. E começo então a passar-lho muito lentamente pelos lábios semi-cerrados, primeiro o de cima, depois o de baixo, muito devagar, em jeito de maquilhagem lenta ou combate ao cieiro. Entusiasmo-me muito aos brilhos que lhe ponho na boca, com ela a dormir numa paz de fazer inveja. E imagino então que, a meio de um sonho enigmático, todo feito de fragmentos desconjuntados, ela entreabre os lábios para pronunciar uns quantos projectos de palavra, pedidos incompreensíveis, mas sem urgência, não, sem qualquer angústia ou alvoroço. E eu então passo-lho também muito ao de leve pela fileira dos dentes, várias vezes, de um lado para o outro, envolvido por lábios de seda, inconscientes. Depois volto a guardar o grande barco e beijo-lhe a testa despenteada. Deixo-a dormir e vou fazer café.

4 subornos à luz do dia

CINCO FEMINISTAS NA COZINHA

 

                                       para a Marta U Crnom

À décima quarta reunião, a Olga
esqueceu-se da chave do salão.
Como era difícil remarcar outra,
a Maria sugeriu o único espaço
mais alargado de sua casa: Uma
cozinha de luz branca com mesa
redonda, quatro latas Campbell,
de Warhol, na parede, e, atrás da
porta, um calendário com um
Coração de Jesus abençoando.
 
A teresa não achou piada, a Rita,
aluada como sempre, disse que
sim, sem pensar no sortilégio.
A Ana, calada, gostou muito do
espaço luminoso e, sobretudo,
silencioso. Andara a ler tantas
teses, sem parar, na faculdade,
e a comer sandes a semana toda,
que sentiu saudades de cozinhar.
Contudo, ao entrar na cozinha
disse: Ah! Que saudades do Tédio!
 
O “Tédio”, no fundo, não era mais
do que: “saudades de ter tempo
para cozinhar em condições! E ter
a tarde toda para ler o que,
realmente, gosto: Woolf”.

 

 CARTA A UM AMIGO BRASILEIRO

 

                                           para o Daniel Floquet

 

Por onde se olha, o chão é escuro,
parece sempre escuro, sem nenhuma
gota de luz ou pequena e cintilante
esperança. Mas, amigo meu, lembra
a folha isolada na árvore da triste
 
Avenida, aquela que resiste a toda a
força incessante do vento. Aquela
que diz sempre Não, Não, Não.
Aquela que suporta toda a memória
no seu frágil e pequeno corpo.
 
Quando vier o verão e a força já
não mais for possível, o seu corpo
sofrido, leve, macerado, será
a onda sonora do revibrante
renascer de um novo Mundo.
 
Caída a última folha sobre a terra
morta, a memória, permanecida no
seu corpo frágil, trará à vida o
fresco tapete verde da Avenida,
por onde passeará esta esperança.

 

Σαλλοω

“factus est Rex dolorum”
Vivaldi, RV 638.

                                                  para o João Coles

 

Cansada, a voz esperava que os sinos
cobrissem a sua mais profunda dor.
O vazio irremediável, daquele que tem
em si toda a doçura do Ser, revibrava
em onda sonora, a mais intensa, sobre
a planície impura dos olhos do Corvo.
 
No âmago, a pena negra caía além do
corpo. Esperando o tempo silencioso, a
pétala vermelha purificava a pesada dor.

 

SELENE

 

                                                  para a Tatiana Faia

 

A cegonha,
esvoaçando na mais imprevisível planície, dança
para, no esquecimento, romper até ao vácuo
de todo o voo.
Corre, foge além do rio,
da leve água que escorre, da
mera neblina branca que evita o
aparecimento do horizonte.
 
O lago tingido de leite
corre nas entranhas, veias,
crostas de feridas insaráveis,
abertas  na mais abrupta incompreensão.
 
O cavalo relincha. Não há quem o
pare, dura pedra! O dedo do olho desliza
em cada prega da crina.
Quem te consegue sossegar?
Relinchando a dor
somente
 
navega na mais intensa noite
da perdida
pátria.

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Pier Paolo Pasolini, "Os jovens infelizes"


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Tradução: João Coles


Um dos temas mais misteriosos do teatro trágico grego é a predestinação dos filhos em pagar pela culpa dos pais. Não importa se os filhos são bons, inocentes, pios: se os pais pecaram, têm de ser punidos. É o coro – um coro democrático – que se declara portador de tal verdade: e enuncia-a sem a introduzir ou ilustrá-la, como lhe parece natural. Confesso que este tema do teatro grego sempre o aceitei como algo alheio ao meu conhecimento, que aconteceu «algures» e «noutro tempo». Não sem alguma ingenuidade escolástica, sempre considerei este tema como absurdo e, por sua vez, ingénuo, «antropologicamente» ingénuo.

Mas mais tarde chegou o momento da minha vida em que tive de admitir pertencer, sem escapatória, à geração dos pais. Sem escapatória porque os filhos não só nasceram, não só cresceram, mas alcançaram a idade da razão, e o seu destino, portanto, começa a ser inelutavelmente aquele que deve ser, tornando-se adultos.

Observei com tempo nos últimos anos estes filhos. Ao fim e ao cabo, o meu juízo, por muito que me pareça também injusto e impiedoso, é de condenação. Procurei muito compreender, fingir não compreender, contar com as excepções, esperar por alguma mudança, considerar historicamente, isto é, além dos juízos subjectivos do mal e do bem, a realidade deles. Mas foi inútil. O meu sentimento é de condenação. Os sentimentos não mudam. São eles que são históricos. É isso que experienciamos, que é real (apesar de toda a insinceridade que possamos ter com nós próprios). Afinal – ou seja hoje, dias primeiros de 75 – o meu sentimento é, repito, de condenação. Mas posto que, talvez, condenação é a palavra errada (ditada, talvez, pela referência inicial ao contexto linguístico do teatro grego), tenho de a especificar: mais do que uma condenação, o meu sentimento é, de facto, uma «cessação de amor»: cessação de amor que, com efeito, não dá lugar ao «ódio» mas à «condenação».

Eu tenho algo de geral, de imenso, de obscuro a reprovar aos filhos. Algo que fica aquém do verbal: que se manifestem irracionalmente, no existir, ao «experienciar sentimentos». Agora, posto que eu – pai ideal – pai histórico – condeno os filhos, é natural que, subsequentemente, aceite de algum modo a ideia do seu castigo.

Pela primeira vez na minha vida consigo assim libertar da minha consciência, através de um mecanismo íntimo e pessoal, aquela terrível, abstracta fatalidade do coro ateniense que reitera ser natural o «castigo». Acontece que o coro, dotado de tanta imémore e profunda sabedoria, acrescentava que aquilo de que os filhos eram castigados era a «culpa dos pais».

Pois bem, não hesito nem um momento em o admitir; isto é, em aceitar pessoalmente tal culpa. Se eu condeno os filhos (por causa de uma cessação de amor para com eles), e portanto lhes pressuponho um castigo, não tenho dúvidas de que tudo isto acontece por minha culpa. Enquanto pai. Enquanto um dos pais. Um dos pais que não se tomaram como responsáveis, primeiro, do fascismo, depois de um regime clérico-fascista, falsamente democrático, e que, por fim, aceitaram a nova forma de poder, o poder dos consumos, a derradeira das ruínas, a ruína das ruínas.

A culpa dos pais que os filhos têm de pagar é, portanto, o «fascismo», seja nas suas formas arcaicas, seja nas suas formas inteiramente novas – novas sem equivalentes possíveis no passado? É difícil para mim admitir que a «culpa» é esta. Talvez por razões privadas e subjectivas. Eu, pessoalmente, sempre fui antifascista, e não aceitei nunca o novo poder de que realmente falava Marx, profeticamente, no Manifesto, acreditando que falava do capitalismo do seu tempo. Quer parecer-me que há algo de conformista e demasiado lógico – ou seja, de não-histórico – ao identificar nisto a culpa.

Já ouço à minha volta o «escândalo dos pedantes» – seguido da sua chantagem – ao que estou para dizer. Já consigo ouvir os argumentos deles: é retrógrado, reaccionário, inimigo do povo, que é incapaz de compreender os elementos mais dramáticos de novidade que existem nos filhos, incapaz de compreender que estes são, ainda assim, vida. Pois bem, penso eu, desde que também eu tenha direito à vida – pois, mesmo sendo pai, não é por isso que deixo de ser filho. Além do mais, para mim a vida pode manifestar-se egregiamente, por exemplo, na coragem em desvelar aos novos filhos o que realmente sinto para com eles. A vida consiste antes de mais no impertérrito exercício da razão: incerto nos partidos tomados, e muito menos no partido tomado pela vida, que é um qualunquismo[1] puro. É melhor ser inimigo do povo do que inimigo da realidade.

Os filhos que nos rodeiam, especialmente os mais jovens, os adolescentes, são quase todos eles monstros. O seu aspecto físico é quase aterrador, e quando não é aterrador é incomodamente infeliz. Pelames horríveis, cabeleiras caricaturais, carnaduras pálidas, olhos apagados. São máscaras de uma certa iniciação bárbara. Ou então são máscaras de uma integração diligente e inconsciente, que não faz ter dó.

Depois de terem erguido contra os pais barreiras destinadas a relegar os pais ao gueto, os filhos encontraram-se eles mesmos enclausurados no gueto oposto. No melhor dos casos, estão agarrados aos arames farpados desse gueto, olhando para nós, todavia homens, como mendigos desesperados, que pedem algo apenas com o olhar, porque não têm coragem, nem talvez a capacidade de falar. Estes nem nos melhores, nem nos piores casos (são milhões) têm expressão alguma: só a ambiguidade feita carne. Os seus olhos em fuga, o seu pensamento perpetuamente alhures, têm demasiado respeito ou demasiado desprezo juntos, demasiada paciência ou demasiada impaciência.

Aprenderam algo mais do que os seus coetâneos de há dez ou vinte anos atrás, mas não o suficiente. A integração não é um problema moral, a revolta codificou-se. No pior do casos, criminosos puros e duros. Quantos são estes criminosos? Na verdade, podiam ser quase todos. Não há um grupo de rapazes que se encontre pela rua que não pudesse ser um grupo de criminosos. Estes não têm luz alguma nos olhos: os traços são traços contrafeitos de autómatos, sem que nada de pessoal os caracterize vindo de dentro.

A estereotipia faz deles traiçoeiros. O silêncio deles pode preceder a um trépido pedido de ajuda (que ajuda?), ou pode preceder a uma facada. Eles não são donos dos próprios actos, que é o mesmo que dizer dos seus músculos. Não conhecem bem qual a distância entre causa e efeito. Regrediram – sob o aspecto exterior de uma maior educação escolástica e de uma melhor condição de vida – para uma rudez primitiva. Se por um lado falam melhor, ou seja assimilaram o degradante italiano médio – por outro lado, são quase afásicos: falam velhos dialectos incompreensíveis, ou calam-se, lançando de quando em vez gritos guturais e interjeições todas elas de carácter obsceno.

Não sabem sorrir nem rir. Sabem apenas rir com desdém ou casquinar. Nesta enorme massa (típica, sobretudo, uma vez mais!, do inerme Centro-Sul) existem elites nobres, às quais pertencem naturalmente os filhos dos meus leitores. Mas estes meus leitores não quererão afirmar que os seus filhos são rapazes felizes (desinibidos ou independentes, como acreditam e repetem certos jornalistas imbecis, comportando-se como enviados fascistas num lager). A falsa tolerância também tornou significativas, no seio da massa dos homens, as mulheres. Elas são geralmente, pessoalmente, melhores: vivem efectivamente um momento de tensão, de libertação, de conquista (ainda que de modo ilusório). Mas no quadro geral a sua função termina ao ser regressiva. Uma liberdade «oferecida», com efeito, não pode vencer nelas, naturalmente, os hábitos seculares da codificação.

Claro: os grupos de jovens cultos (de resto, muito mais numerosos que em tempos) são adoráveis porque dão dó. Estes, por causa de circunstâncias que para as grandes massas são até agora somente negativas, e atrozmente negativas, são mais avançados, subtis, informados do que os grupos análogos de dez ou vinte anos atrás. Mas o que podem fazer da sua fineza e da sua cultura?

Portanto, os filhos que vemos à nossa volta são filhos «castigados»: «castigados», enquanto isso, pela sua infelicidade, e mais tarde, no futuro, quem sabe de quê, de quais hecatombes (este é o nosso sentimento, insuprimível). Mas são filhos «castigados» pelas nossas culpas, isto é, pela culpa dos pais. É justo? Era esta, na verdade, para um leitor moderno, a pergunta, sem resposta, do motivo dominante do teatro grego.

Pois bem, sim, é justo. O leitor moderno viveu uma experiência que lhe torna finalmente, e tragicamente, compreensível a afirmação - que parecia tão cegamente irracional e cruel – do coro democrático da antiga Atenas: ou seja, que os filhos têm de pagar pelos pecados dos pais. Efectivamente, os filhos que não se libertam da culpa dos pais são infelizes: e não há sinal mais decisivo e imperdoável de culpa do que a infelicidade. Seria demasiado fácil e, num sentido histórico e político, imoral, que os filhos se justificassem – naquilo que neles há de feio, repelente, desumano – pelo facto de que os pais erraram. A herança paterna negativa pode dar-lhes uma justificação pela metade, mas pela outra metade são eles os responsáveis. Não há filhos inocentes. Tiestes é culpado, mas também o são seus filhos. E é justo que sejam castigados também por aquela metade de culpa alheia da qual não foram capazes de se libertar.

Permanece sempre, todavia, o problema de qual é na verdade a tal «culpa» dos pais. É isto que substancialmente, ao fim e ao cabo, importa aqui. E é tão importante na medida em que, tendo provocado nos filhos uma condição tão atroz e um consequente castigo tão atroz, deve tratar-se de uma culpa gravíssima. Talvez a culpa mais grave cometida pelos pais em toda a história da humanidade. E estes pais somos nós. Coisa que nos parece incrível.

Como já aludi entretanto, devemos libertar-nos da ideia de que tal culpa se identifica com o fascismo velho ou novo, isto é, com o efectivo poder capitalista. Os filhos que hoje são tão cruelmente castigados pelo seu modo de ser (e no futuro, claro, por qualquer coisa mais objectiva e terrível), são também filhos de antifascistas e de comunistas. Portanto, fascistas e antifascistas, patrões e revolucionários, têm uma culpa em comum. Todos nós, de facto, até hoje, com um racismo inconsciente, quando falámos especificamente de pais e filhos, pensámos sempre que estávamos a falar dos pais e dos filhos burgueses.

A história era a sua história. O povo, de acordo connosco, tinha uma história à parte, arcaica, na qual os filhos, simplesmente, como ensina a antropologia das velhas culturas, reencarnavam e repetiam os pais. Hoje mudou tudo: quando falamos de pais e filhos, se por pais continuamos a presumir os pais burgueses, por filhos presumimos que sejam tanto os filhos burgueses como os filhos proletários. O quadro apocalíptico que esbocei acima, dos filhos, engloba burguesia e povo.

As duas histórias, portanto, uniram-se: e é a primeira vez que isto acontece na história do homem. Tal unificação sucedeu sob o signo e vontade da civilização do consumo: do «progresso». Não se pode dizer que em geral os antifascistas, e particularmente os comunistas, se tenham deveras oposto a uma unificação do género, cujo carácter é totalitário – pela primeira vez verdadeiramente totalitário – apesar de o seu carácter repressivo não ser arcaicamente policial (e quando muito recorre a uma falsa permissividade).

A culpa dos pais, portanto, não é apenas a violência do poder, o fascismo. Mas também: primeiramente, a remoção da consciência, por parte de nós antifascistas, do velho fascismo, termo-nos comodamente libertado da nossa profunda intimidade (Pannella) com este (termos considerado os fascistas «os nossos irmãos parvos», como diz uma frase de Sforza relembrada por Fortini); segundo, e sobretudo, a aceitação – tão culpada quanto inconsciente – da violência degradante e dos verdadeiros, imensos genocídios do novo fascismo.

Porquê tal cumplicidade com o velho fascismo e porquê tal aceitação do novo fascismo? Porque há – e eis o ponto da questão – uma ideia condutora sincera ou desonestamente comum a todos: ou seja, a ideia de que o mal maior do mundo é a pobreza e que por isso a cultura das classes pobres deva ser substituída pela cultura da classe dominante.

Noutras palavras, a nossa culpa enquanto pais consistiria no seguinte: em acreditar que a história não é nem possa ser outra senão a história burguesa.

In Lettere luterane

1 NT: o “qualunquismo” está associado ao movimento político Fronte dell'uomo qualunque (Frente do homem qualquer, ad litteram), que nasceu da revista homónima publicada em Dezembro de 1944 por Guglielmo Giannini. O “qualunquismo” caracteriza-se pela desconfiança nas instituições, nos partidos políticos, na classe política e na política em geral, que é considerada um obstáculo à autonomia e à livre escolha do indivíduo. No debate político, o termo “qualunquista” é geralmente utilizado de modo pejorativo. É uma atitude condenada por indivíduos politicamente activos na sociedade, como Pasolini, que sublinham os riscos da renúncia em participar num sistema democrático.

Pós-verdade e redes sociais

A Morte de Sócrates de Jacques-Louis David, 1787

A Morte de Sócrates de Jacques-Louis David, 1787

Agora que o mundo parece inflamar-se sem remédio, depois de décadas a acumular material incandescente (avaria do elevador social, degradação ambiental irreversível, migrações massivas, pirâmide demográfica invertida, fragmentação cultural, desconsideração pelos factos...), é fundamental retomarmos, filosoficamente e politicamente, a questão da verdade. Seguirei de perto as reflexões de Myriam Revault d’Allones, filósofa francesa, e do seu último livro La Faiblesse du vrai. Ce que la post-vérité fait à notre monde commun (Seuil, Outubro 2018).

O dicionário de Oxford define a pós-verdade como a desvalorização dos factos, menos importantes do que a sua apreensão subjectiva. É isto que permite aos discursos políticos modelar a opinião pública, apelando às emoções muito mais do que à realidade dos factos. O que importa é o impacto. A era da pós-verdade é também a do pós-factual. Não se acomode, porém, esta nova ordem epistemológica na fórmula nietzschiana de que “não há factos, apenas interpretações” (nota de 1886-87); tal postulado não elimina ou dissolve a verdade, denuncia somente que os factos brutos, ou puros, não significam nada. Para fazerem sentido têm de ser ordenados e contextualizados, decifrados e interpretados. Assim, foi ainda em nome da verdade que Nietzsche defendeu o exercício de desconfiança. Inserindo-se no que se chamou “filosofias da suspeita”, Marx, Nietzsche e Freud, contestação da omnipotência do sujeito ou da ilusão de uma consciência inteiramente transparente. O que se propôs foi uma arte da interpretação que permitisse uma aproximação mais efectiva à verdade, nada que tenha que ver com fórmulas do tipo “a cada um a sua verdade” ou “é a minha verdade”.

A pós-verdade remonta à emergência de um modelo político assente na opinião e decisão do grande número, isto é, à emergência da democracia. O processo de condenação à morte de Sócrates (no relato platónico, sobretudo do Fédon), filósofo, é importante dizê-lo, devotado incondicionalmente à descoberta da verdade, decretado pela cidade democrática de Atenas. O que fica desse texto, que representaria uma parte importante do senso comum dos cidadãos atenienses, é que o sacrifício da verdade é o corolário de uma sociedade democrática governada por um povo irresponsável e iludido, instalando-se para a posteridade uma suspeita alargada sobre a prática política. Muitos séculos depois, 1984 de George Orwell reaviva essa preocupação, mostrando o resultado de uma sociedade onde toda a referência à verdade tivesse desaparecido. Uma sociedade totalmente negacionista (onde fosse lícito e habitual enunciar opiniões que neguassem a realidade) impediria ao mesmo tempo a organização de um pensamento sobre o real e a troca fértil de opiniões e experiências sensíveis. Uma subjectivação e manipulação generalizadas anularia a possibilidade de se desenvolver uma sociedade livre, fraterna e feliz.

Hoje, vive-se a ressaca, em vez do desenvolvimento, da modernidade que a partir do século XVI, e sobretudo do movimento Iluminista mais tardio, instaurou o primado do pensamento crítico sobre o dogmatismo das religiões da revelação. A compreensão humana passou a ser guiada por leis racionais e a verdade, relacionada com os factos da realidade, um desígnio que se vai cumprindo à medida que o processo de esclarecimento, “iluminação”, faz emergir da obscuridade a verdade dos factos. A ressaca (esse mal-estar que aparece depois do frenesim) deve-se em grande medida à modernidade não ter cumprido a promessa (mais imaginada do que enunciada) de se atingir uma verdade total, ou quase total, e da aquisição do saber ser difícil e demorada, acrescentando-se que em muitos casos há um elitização dessa responsabilidade, justamente devido à complexidade de parcelas significativas da realidade, o que obriga à profissionalização do conhecimento.

A esta ressaca acrescenta-se o poder das redes sociais em irradiar informações não confirmadas, ou verificadas, contraditórias, infundadas e mesmo declaradamente mentirosas, as fake news (os franceses também usam o termo “infotox”). Ora, é nas redes sociais que muita gente se informa (a maioria nos menos de 30 anos), onde a falta de verificação (uma democratização informativa pífia) e o poder de qualquer notícia com impacto emotivo para se viralizar são o modo de operar dessas plataformas. Segundo Myriam Revault d’Allones, as “redes sócio-numéricas fazem circular incessantemente pseudo-factos, respondendo antes de mais ao ponto de vista de alguém que pensa e, sobretudo, deseja que sejam verdadeiros”. Estes factos reforçam crenças já existentes, podendo falar-se, para esta autora, em “bolhas cognitivas”, já que os algoritmos que selecionam as informações que consultamos propõem uma visão do mundo conforme às nossas expectativas. O actual “mercado cognitivo”, ao reforçar acriticamente as crenças dos utilizadores, facilita o ensimesmamento cognitivo e emotivo. Dificultando o pensamento racional e factual, centro nevrálgico das sociedades democráticas tal como tem vindo a ser imaginadas e desejadas. Algo que poderá estar a mudar, preferindo-se agora em muitos sítios, e muitas mentes, regimes políticos mais simples, autoritários e comunitaristas.