Ascensão

1

a Sr.ª Bouvard
decidiu organizar
um festival de poesia
e pediu-nos
um saco de livros
pagamos os portes
e devolvemos
todos os que não forem vendidos
nós dissemos
ok

2

o evento foi um sucesso
um urso foi domesticado
por uma leitura a capella
de The Wasteland
houve fogo-de-artifício vegan
e uma competição
onde os concorrentes
recitavam de memória
poemas de Herberto Helder
enquanto comiam malaguetas
o vencedor
recebeu um voucher
para uma sessão de spa
e foi levado em triunfo
ao hospital mais próximo
tarde demais
lamentou um cronista
no jornal local
só a acção rápida dos bombeiros
impediu
que o fogo alastrasse

3

todos os nossos livros
ficaram por vender
e ainda estamos à espera
que os nos devolvam
no seu lugar veio
uma mensagem
da Sr.ª Bouvard
quase um ano depois
estamos a organizar
um festival de poesia
não nos querem enviar
um saco de livros?

4

o muito aguardado
tomo poético
da Sr.ª Bouvard
viu por fim a luz do dia
causando enorme comoção
entre os guardiães
da Palavra Poética

houve quem rasgasse
a camisa metafórica
e bramasse
aos céus metafóricos
o dia puro e claro
foi defenestrado
ototoi popoi da!
a Palavra Poética
precisa de ser purificada

5

mas o que fazer?
até o coração mais puro
precisa de directrizes

sacrifício humano?

hecatombe?

pelo menos
uma queimada de livros?

os tempos já não estão
para essas coisas
o que importa
é que nos sintamos bem
connosco próprios
decreta o oráculo
com mais seguidores no youtube
e depois ensina
como colorir
dentro das linhas

6

por isso na edição seguinte
do festival de poesia
improvisou-se um altar
e a Sr.ª Bouvard
em vestes de sacerdotisa
presidiu à cerimónia
lendo um poema do seu novo livro

aquele com o verso
tra la spiga e la man qual muro è meso?

no final
houve sessão de autógrafos

Oshiri-san

as tuas coxas nipónicas
convidam ao teu
tori afunilado de bambu

as tuas coxas nipónicas
sugam todo o
vinho doce das vindimas da
minha casa

oshiri-san
o meu mês de outubro foi
muito pouco apropriado
para um rapaz de dezanove anos

ainda nem tinha fermentado o
pó desta terra europeia e sem samurais
e já me queria homem cosmopolita
fluente em kanji
contanto que levasse
bolinhos de bacalhau na lancheira
para o nosso piquenique a dois

agora vejo claramente

o teu funil encharcado 
em todo o seu atrevimento
não era um dorama mexicano -
mas também sempre foi verdade que
o teu abismo e o meu não abismo eram como
dois origamis de tremoços
duas gueixas ao sol

Charles Bukowski, "um poema é uma cidade"

@ René Burri

@ René Burri

 Tradução: João Coles

um poema é uma cidade repleta de ruas e esgotos
repleta de santos, heróis, pedintes, loucos,
repleta de banalidade e bebida,
repleta de chuva e trovoada e períodos de
seca, um poema é uma cidade em guerra,
um poema é uma cidade a perguntar porquê a um relógio,
um poema é uma cidade sob chamas,
um poema é uma cidade armada
são barbearias repletas de bêbedos cínicos,
um poema é uma cidade onde Deus cavalga nu
pelas ruas abaixo qual Lady Godiva,
onde cães ladram à noite e afugentam
a bandeira; um poema é uma cidade de poetas,
muito parecidos uns com os outros
invejosos e rancorosos…
um poema é esta cidade agora,
a 50 milhas de nenhures.
9:09 da manhã,
o gosto a licor e a cigarros,
nem polícia, nem amantes pelas ruas,
este poema, esta cidade, fechando as suas portas,
barricada, quase vazia,
de luto e sem lágrimas, envelhecendo sem dó,
as duras montanhas rochosas,
o oceano como uma chama de lavanda,
uma lua destituída da sua grandiosidade,
a musiquinha de janelas partidas…

um poema é uma cidade, um poema é uma nação,
um poema é o mundo…

e agora meto isto debaixo de vidro
para escrutínio do louco editor,
a noite é alhures
e senhoras acinzentadas fazem fila,
um cão segue outro até ao estuário,
as trompetes anunciam as forcas
enquanto homens pequenos tresvariam sobre coisas
que não conseguem fazer.


a poem is a city

a poem is a city filled with streets and sewers
filled with saints, heroes, beggars, madmen,
filled with banality and booze,
filled with rain and thunder and periods of
drought, a poem is a city at war,
a poem is a city asking a clock why,
a poem is a city burning,
a poem is a city under guns
its barbershops filled with cynical drunks,
a poem is a city where God rides naked
through the streets like Lady Godiva,
where dogs bark at night, and chase away
the flag; a poem is a city of poets,
most of them quite similar
and envious and bitter …
a poem is this city now,
50 miles from nowhere,
9:09 in the morning,
the taste of liquor and cigarettes,
no police, no lovers, walking the streets,
this poem, this city, closing its doors,
barricaded, almost empty,
mournful without tears, aging without pity,
the hardrock mountains,
the ocean like a lavender flame,
a moon destitute of greatness,
a small music from broken windows …

a poem is a city, a poem is a nation,
a poem is the world …

and now I stick this under glass
for the mad editor’s scrutiny,
and night is elsewhere
and faint gray ladies stand in line,
dog follows dog to estuary,
the trumpets bring on gallows
as small men rant at things
they cannot do.

Carta a Violante de Cysneiros

“Folhas mortas e flores vivas

   Pó da terra e diamantes”

          - Antero de Quental

 

Ribeira Grande 11 de Janeiro de 2019.
A caridade entre nós querida Violante
é a mais branca pérola perdida algures
no meio do Atlântico. Se a vires entre
as mãos de um marinheiro finge que
nunca a viste. Não te quero em maus
lençóis. Quero-te bem. Fala-me dos
teus pequenos poemas e daquilo que
te preocupa. Eu deste lado sou uma
mulher de cabelos embebidos em whis
ky. Prefiro embebedar-me a submeter
-me a esse frio covil de homens. Es
crevo-te ansiosa para que me enten
das deste lado do espelho. Que posso
eu dizer-te da nossa pequena ilha? O
ulisses ainda não regressou, passa
pouco por cá e a Eleonor teima
em dizer que nada disto é poesia.
(E tem muita razão neste caso).
Acrescentaram-se casas estradas
pontes e mudaram três vezes a
placa do Gaspar que saiu do seu
jardim. O Raúl Milhafre manda visi
tas e continua a ler apenas o Antero
que para ele chega o que entendo.
Mas para meu espanto disse-me ele
no outro dia que muito apreciou o
poema da Barbie da Lourenço. Teve
espírito aberto para a novidade e
gostou da jovialidade da Lourenço.
Manda notícias pequena querida!
Como está a Rosalina a Natividade
e a Dorvalina? A essas três mortas
manda-lhes flores se as houver por aí.
Aqui tirando as hortênsias azuis e
brancas tudo murcha! É do marasmo!
Mas para não te apoquentar mais fica
descansada pequena: Nada mudou.
Agora elas pintam as unhas e os lábios
são de vermelho intenso mas o esterco
é o mesmo. Olha a filha do Padre José
já não é puta. Ganhou as eleições e é
vê-la na procissão do Senhor toda
emproada. Casou com o baboso do
Pedro Rui e os dois governam a cidade
com a sua pequena empresa de Cortes
& Enchidos
. Metem ao bolso o dinheiro
da festa e ainda os subsídios do governo.
O professor De Mello já saiu do armário
além de paneleiro agora virou surfista
coisa que sempre foi entre as palmeiras
de Sant’Ana e as naves de S. Sebastião.
Da tua e sempre Sagrada Barbara Stron
ger. Ps -manda cumprimentos ao Silveira.

Barbara Stronger

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Morte da tragédia e outros (ir)racionalismos

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Friedrich Nietzsche não se cansou de criticar o Iluminismo grego, cujo paradigma foi Sócrates (que é muito mais do que uma singularidade, neste nome está a grande personagem filosófica de Platão e a realidade nascente, pós-homérica, da Grécia Clássica). O seu racionalismo optimista tiranizou o mundo através da lógica e da moral (a superestrutura verdade=bem). O trágico, naturalmente inverosímil e desenhado para o culto do sofrimento, foi combatido a golpe de silogismos. Em O Nascimento da Tragédia, 1872, Nietzsche, intempestivo, mas um heterodoxo lúcido, rebela-se contra um Ocidente nascido e criado a partir desse Iluminismo. Nele a filosofia também demanda a felicidade, a vontade de verdade, de tudo conhecer, é a esperança da Realidade incarnar na realidade (ou vice-versa). Mais tarde, no Crepúsculo dos Ídolos, 1888, regressa ao tema em “O Problema de Sócrates”, assegurando que este inventou a tirania racional contra o predomínio dos instintos, elevando a racionalidade até ao absurdo, uma racionalidade a qualquer preço, irrealista, fria, oportunista. Pelo contrário, Nietzsche pede-nos para não recuarmos diante da imaginação, por mais aterradora que seja.

Não é por isso, contudo, que se deve remeter imediatamente Nietzsche para um irracionalismo insolúvel. A sua obra testemunha bem a vontade de ser ainda mais claro (um claro-obscuro) do que a razão Iluminista. O que ele não faz é deixar-se iludir pela auto-suficiência e pelo autocontentamento das racionalidades científica e filosófica, ou censurar o ilogismo intrínseco, orgânico, da vida e o carácter interesseiro das nossas práticas cognitivas (critica várias vezes a máxima de Espinosa “Não rir, não lamentar, nem amaldiçoar, mas compreender” – Non ridere, neque lugere, neque detestari, sed intelligere –, apelida esta visão de “charlatanismo matemático”, visto que o ser humano, numa posição reinvestida há pouco por António Damásio, não conhece sem emoções e sem o corpo). Nietzsche não repudia, pois, a razão, quer antes aprofundá-la até a tornar plenamente crítica (sabendo que só o sobre-homem o conseguirá), superando o criticismo kantiano. Claro que neste processo se insinuam vários perigos (de tanto questionar o alcance da razão podemos acabar rendidos a uma espontaneidade estéril ou a aceitar emotivismos exacerbados, violentos ou pusilânimes), mas julgo que neste autor, ao contrário do que se pensa, há uma boa convivência entre o racional e o emocional, a mente e o corpo, foi isso que lhe permitiu ser um magnífico leitor do seu tempo (antecipando os nacionalismos mortíferos, o domínio da cultura pop, o poder do não-consciente, os movimentos fascistas...). O que Nietzsche recusa à racionalidade é o monopólio da significação, já que para compreender são necessárias as emoções e o contributo fisiológico do corpo (a que ele chama, em Assim Falou Zaratustra, “grande razão” – “Der Leib ist eine grosse Vernunft”). Isto permite-lhe atender à mudança, ao flexível, à novidade e à resiliência.

Curiosamente, André Malraux apelida elogiosamente Nietzsche de “o maior irracionalista do seu tempo”. Num diálogo com o realizador Jean Vilar em 1971, refere que Nietzsche não se deixa colonizar por ideologias, que nem o nazismo o conseguiu: “a grandeza de Nietzsche é a sua potência irracional, a extensão do seu pensamento.” Martin Heidegger, em Caminhos de Floresta, “A Palavra de Nietzsche ‘Deus Morreu’”, usa Nietzsche para expressar uma das suas teses mais glosadas: a razão, tão venerada, é afinal a “mais obstinada opositora do pensar”. Portanto, em vez de, como eu, valorizarem o racionalismo, o outro racionalismo nietzscheano, Malraux e Heidegger, podia também citar Georges Bataille ou Pierre Klossowski, realçam a importância do seu irracionalismo, único e revolucionário.

É talvez também aqui que, mudando-se o que tem de se mudar, encontro João Barrento e o seu magnífico A espiral vertiginosa – ensaios sobre a cultura contemporânea (Cotovia, 2001). Regressando ao eterno tema da morte da tragédia, Barrento segue Nietzsche na denúncia da perda irreparável para a vida humana decorrente da quebra do compromisso estético com a tragédia. Os gregos sabiam bem que as tragédias eram somente performativas, não havia aqui qualquer ingenuidade. E sabiam também que a potência da ficção, a superioridade da imaginação, ontem como hoje, se insinua profundamente nas linhas da vida. Ainda agora, depois de séculos de vacinas lógicas, choramos sob os efeitos de um filme lamechas. Os gregos foram os primeiros espectadores estéticos, e isso perdura, o Ocidente é o berço da ficção, esta alimenta uma parcela importante do mundo (numa situação diversa, como é que o Game of Thrones poderia ter tanto sucesso?).

É por isso que Barrento tem esta brilhante oração fúnebre, que podia ter sido escrita por Nietzsche: “No mundo de paixões que era o da tragédia antiga, a dor – tal como a beleza e a alegria, o canto e o êxtase –, é matéria-prima da vida ritualizada. Depois, a vida foi-se dessacralizando, tornou-se mais confortável, mais baça... e mais longa. Ficámos mais sós. Sós, não porque nos faltassem os outros, muito pelo contrário. Ficámos sós porque fomos amputados de alguma coisa que era parte de nós. O homem civilizado olha para o mundo, o mundo está em estado de dor quase permanente, e em vez de responder com um lamento (como terá feito nas origens a natureza, antes de perder a fala), fica em silêncio.” (A espiral vertiginosa – ensaios sobre a cultura contemporânea)