Tadao Andõ, habitar no desconforto

Tadao Ando 2.png

Numa entrevista à revista Philosophie Magazine em Novembro de 2017, o arquitecto Tadao Andõ revela que nunca estudou arquitectura e que não a compreende. Apesar disto, recebeu o prémio Pritzker em 1995 e é, sem qualquer dúvida, uma estrela da arquitectura mundial, considerado, é assim que o vê esta revista de filosofia, como o Corbusier feliz. Pode dizer-se que Andõ procurou, vá lá saber-se a partir de que convicções, construir edifícios não em função de uma linha, ou de linhas, estética, não preocupado com a utilidade, mas impondo uma relação horizontal entre eles e os seus habitantes. Habitar uma casa de Andõ obriga a sujeitar-se claramente às suas formas e dinâmicas.

Tadoa Ando 1.png

A entrevista à revista francesa teve como mote principal a casa Azuma. À pergunta sobre por que razão o acusam de construir edifícios onde é difícil viver, Andõ diz saber que não tem uma boa reputação e que o conforto não é importante. É preciso, acrescenta, que o habitante se pergunte a si próprio como viver nela com o mínimo de conforto. O que ele deseja é construir “espaços propícios a inspirar perspectivas ou paisagens interiores”. Daí a importância dos interstícios que relacionam as partes funcionais dos edifícios, a que chamou “espaços fundamentais das emoções”. Desta forma, assegura que “separa a arquitectura da sua função”.

E dá o exemplo da casa Azuma, entalada entre duas habitações antigas de madeira, que podia ter destruído no processo de construção.  Na abertura que conseguiu fazer, “criou uma caixa de betão”, com um pátio interior que no rés-do-chão separa a cozinha e a sala, e no primeiro andar os quartos. Para se passar de um espaço a outro é preciso atravessar o pátio e abrir o guarda-chuva se estiver a chover, nele “Circulam ar, água, vento, luz.” Uma casa sem climatização, “operando uma inversão do espaço, pondo o exterior no interior.” “Para viver num tal ambiente é preciso contar com a sua própria vitalidade, a sua energia e perseverança, aperfeiçoar-se mental e fisicamente, numa espécie de treino estóico.”  Talvez por isso tenha suscitado muitas críticas, fora do “grupúsculo que a adora”.

Por isso, não é estranho que Andõ considere a arquitectura como “a arte de modelar [agencer] o mundo graças à geometria”. Uma arte efectivada à base de betão armado, o seu material preferido, trabalhado de forma única e desenhado por linhas geométricas estratégicas. Tudo para acentuar uma singular e inorgânica percepção do tempo. Sem que haja, regressamos à sua falta de credenciais académicas (condição essencial da sua liberdade artísticas?), um manual de construção ou de reflexão. Andõ demora-se mais nas perguntas do que nas respostas, defende que há múltiplos mundos igualmente interessantes, acredita numa realidade dinâmica, considera que a vida deve ser pouco confortável.

Gosto destes seres que na linha do velho estoicismo resistem ao canto medusante da felicidade ingénua, da, como agora quase todos lhe chamam, “qualidade de vida”, forma última de um niilismo que deixa os humanos colados ao sofá, julgando que a convergência de pensamento e de acção ou o assobiar para o lado são mais vitais do que os seus contrários, acreditando que o Estado Providência é uma espécie de deus realmente e exclusivamente bondoso.


Teste

Tu estavas a ver o filme
E eu estava a fazer contas

Tu estavas a ver o filme
Como eu acho que vês filmes
E eu sempre sem posição
Com um ábaco no colo
E os cálculos todos riscados

Tu a olhar prò ecrã
E eu a olhar-te para a mão
Já a faltarem-me dedos
E a querer os teus emprestados
E a tentar parecer calmo
E copiar pelo do lado
Para que não percebesses.

Tu estavas a ver o filme
E eu perdido em matemáticas
Com esperança de que no escuro
Não reparasses em mim

Enquanto olhavas para o ecrã
E aprendia a tua cara
Como se fosse na escola
E houvesse um teste no fim.



De Sebastião Belfort Cerqueira, Monda, Edições sempre-em-pé, 2019



Francisca Camelo, Photoautomat

photoautomat.jpg

Francisca Camelo

Photoautomat

poesia

Enfermaria 6, Lisboa
Maio de 2019, 56 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

8€


entra, é um convite;
mas à saída leva-te contigo:
aqui só eu não sou de passagem.


Francisca Camelo

Nasceu no Porto em 1990.

É co-fundadora d'A Bacana, contribuidora regular da Enfermeira 6, tem poemas espalhados nas revistas Flanzine, Gueto, Tlön, Nervo, Três três, na zine MAIS PORNÔ, PFVR, nas Antologias Caderno 5: os pastéis de nata ali não valem uma beata, Lluvia oblicua - Poesía portuguesa actual e no Poemanifesto 2.0.18, entre outros.

Publicou os livros Cassiopeia (Apuro Edições, 2018) e Photoautomat (Enfermaria 6, 2019).

Francisca.jpg

De robe Amarelo

“Ver é delírio”

Ferreira Gullar

 

“dispara o olho tentacular
sempre aceso”

               Murilo Mendes

                                                           a Joana Matos Frias

                                         

                                                       I

A pintura não se faz sozinha, nem a poesia, nem a crítica de arte!
Nem num dia, nem numa linha. Nem Roma, nem Pavia.
Pouco importa tão óbvia afirmação. Risca. Comecemos outra vez.
Xul Taif: Do ponto o impulso rasga a pele!
                                                 
     II

 Um olho sobre
Um olho.
Duas narinas escuras, levemente curvadas,
dançam entre si como dois átomos; uma dança eterna se não as apanhasse o pintor
com a sua câmara lenta - Um frame congelado : dois pontos.
Caindo do nariz ao queixo, os lábios grossos marcam presença; e do queixo a meio corpo
cai um bipe com dois pequenos seios.
Na sua cabeça triangular não há cabelo mais bem penteado. Ou seriam já as marcas de um
futuro acidente? Uma cabeça esmagada numa passadeira de piões! Deixa o Gozo. Risca.
 
                                                        III
 
Comecemos pelo mosqueteiro,
pelo chapéu,
uma paleta ainda branca.
Sob a aba dois olhos:  um para a donzela, outro para nós leitores.
Uma barba definida. Não é uma barba! Sombra, uma Sombra que é luz!
O perfil marcado cai ao triângulo laranja do seu corpo. Risca. Risca.
                                                  
   IV

 A Pomba, o centro (enorme), une dois corpos. Não,
Três corpos!
Dois dentro do seu mundo, outro
além mundo.
Risca. Risca.

                                                       V

Fora da tela há um homem vestido de robe amarelo que
olha para a objetiva.
É o tempo de descansar um pouco. Pisar o chão, beber um chá!
Atrás de si décadas e décadas de esforço físico e pensamento.
Tudo atrás dele pouco importa: a Mulher, a Pomba, o Cavaleiro.
O importante foi chegar aqui! Vivo para esta fotografia.
 
Quando o fotógrafo sair vou dar um beijo `a Jacqueline,
despir este canário e enfiar-me naquela banheira quente,
pois o meu dia já está feito! Mais um Mosqueteiro!
 
Fechados os olhos na banheira, a mulher de bipe com seios murmurou ao Mosqueteiro:
Protege a entrada,
que ninguém o chateie mais
para que amanhã ele venha fresco
retocar-me e aumentar-me os seios!
                                                         
   VI

 A força deste homem, diante da minha objetiva, é este amarelo divino.
Ele um Deus e eu um mero homem tentando não tremer com a mão!
                                                      
    VII

 Sobre a tela branca, o velho inscreveu nova metamorfose!
Fundiu o seu espírito livre na Pomba, despiu-se de cavaleiro
e idolatrou a gás e a sombra aquilo que sempre amou: a Mulher.
 
E Deus, à sua semelhança, de robe amarelo, observa calado
as linhas do Tempo, as do passado e as do presente:
as do começo da tela às do fim deste poema.
 
                                                      ***

-Belmondo, you shall not misuse the name of the Lord
 your God[ard].
- Too late! _________ Corta, diz Elie Faure!

                                                                                                         

Captura de Ecrã (9167).png

 

  

In Memoriam Agustina Bessa-Luís (1922-2019)

Morreu Agustina Bessa-Luís, uma das maiores romancistas portuguesas de todos os tempos. Tentamos balançar aqui a tristeza, recordando a sua inteligência aguda e mordaz através de citações de livros dela que fomos coleccionando ao longo do tempo. Há uma expressão num poema de Miguel Hernández, em que ele fala de um dia triste de mim até ao lobo. É qualquer coisa como isto essa notícia. Agustina, que dizia que escrevia para desiludir com mérito, seguirá sendo um tesouro nacional.

agustina.jpg

Escrever é isto: comover para desconvocar a angústia e aligeirar o medo, que é sempre experimentado nos povos como uma infusão de laboratório, cada vez mais sofisticada. Eu penso que o escritor com maior sucesso (não de livraria, mas de integração social e profunda) é aquele que protege os homens do medo: por audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração. Mas porque se escreve, não se sabe exactamente. Porque a poética precisão de um acto humano não corresponde totalmente à sua evidência. Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas. Depois de tudo, escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida.

Contemplação Carinhosa da Angústia, Guimarães Editores, 2000 (2ª ed.).

***

Francamente - porque pensam que eu escrevo? Para incomodar o maior número de pessoas, com o máximo de inteligência. Por narcisismo, que é um facto civilizador. Para ganhar a vida e figurar no Larousse com o mesmo realismo utópico aplicado a Madame Pompadour. Que, sendo pequenina e abonecada, ali se apresenta como «grande, bien faite». A fama de uma pessoa confunde o juízo, como o amor fabuloso e o erotismo pedante.

Escrevo para desiludir com mérito, que é a maneira de se fazer lembrar com virtude.

Contemplação Carinhosa da Angústia, Guimarães Editores, 2000 (seg. ed.)

***

Da energia humana ninguém sabe nada ainda. Ela converte os homens em joguetes fantásticos, dá-lhes voz e razão, segreda-lhes as verdades ocultas no cosmos, e enche-lhes o vazio cérebro de respostas sublimes ao próprio destino. E faz com que a terra produza frutos maravilhosos, entre os quais a força do que se espera indefinidamente.

Conversações com Dmitri e Outras Fantasias, Relógio d'Água, 1992

***

Foi em Brindisi. Não sei se me expliquei bem, as letras não servem às vezes o coração da realidade. Mas penso que um rosto humano é feito de momentos assim, de continuidade, de paixão que não serve aos homens senão para que resistam ao seu grande espanto de viver. Assim é. Vejo Brindisi ao cair da tarde, cidade portuária e desenganada, com grandes bonecas encaixadas às portas, vestidas de azul e rosa. Como meretrizes honestas e sem alma. E os inglesinhos de compridos cabelos, de queixos agudos, feios. A excentricidade deles, os moços de bordo em mangas de camisa, a fuligem nos bancos do convés, a partida de Brindisi à noite e o rulho do mar à noite. E aquele imóvel rosto, aquela recusa fria, o sádico encanto do amor que resistia a participar e a ser. E a beleza, prodígio para sempre pobre e desamparado, não embarcara em Brindisi. Não embarcava em parte nenhuma, eu tinha a certeza disso.

Conversações com Dmitri e Outras Fantasias, Relógio d'Água, 1992

***

Queria, em vez de vaguear pelas capitais embandeiradas, viver num tempo limpo e sem exasperação, em que eu pudesse ler os versos de Neruda sem me ocultar dos que têm o coração alvo demais; ou que pudesse entrar numa igreja sem que me chamem reaccionária. Porque é que uma rã, de ventre redondo e húmido, canta livremente nos arrozais e não lhe dizem: «Qual é o teu partido, o teu credo, o teu clã?» Eu não quero ser outra coisa, senão esse pequeno verde, sem gramática demasiado oficial, sem copiosos sentimentos além das estações, o medo das águias imorredoiras ou das cobras meio adormecidas.

Embaixada a Calígula, Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira (eds.), Guimarães, 2009.