Poesia e filosofia: Victor Gonçalves e Tatiana Faia em Conversa

Simone de beauvoir em Les deux magots (Robert doisneau, 1944)

No contexto do Café Filosófico organizado mensalmente por Victor Gonçalves e pela livraria Snob os nossos editores Victor Gonçalves e Tatiana Faia encontraram-se para conversar um pouco sobre os elos que aproximam e afastam a poesia e a filosofia.

De Eduardo Lourenço às cartas de amor de Simone de Beauvoir a Albert Camus, parando na edição recente, em tradução de Victor Gonçalves, de Para Uma Moral da Ambiguidade de Simone de Beauvoir. Como escrever poesia e filosofia, o que é um bom poema ou um bom texto filosófico, são algumas das perguntas que pontuam esta conversa onde se perde o fio à meada. Como viver talvez seja a pergunta que junta a filosofia e a poesia.

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Mais 3 sobre pouco ou nada

À Espera no Mecânico

 

Timidamente, com a voz cansada dos últimos anos,

Pergunta se lhe querem também comprar os pneus do carro,

Pois sabe, amanhã acaba a validade da minha carta,

O jovem não percebe à primeira, então num esforço

Ainda maior, repete, que depois de amanhã,

Não poderá conduzir mais, quase humilhado,

Um elefante que caminha em direção ao isolamento

Do cemitério, longe da sociedade activa,

Humilhado pela proximidade da inevitabilidade,

Antes desta se concretizar, um fim anunciado,

Viver além do prazo de vencimento ou da utilidade,

Ao que o jovem responde que não, não se apercebendo

Que o interesse era ele tornar-se testemunha também,

Daquele fim, daquela data que o afastará mais da vida.

 

30.03.2023

Turku

Aquele Bolo com um Compal

 

Não sei medir a felicidade plebeia de atravessar aquela ponte

Sobre altura e nada, em direção a casa dela, a mulher mais exótica

Da vila, modelo na Coreia, meia galega, neta da minha vizinha,

Alta como um sonho quase possível, um bolo e um Compal

Que ela pagou num café quase vazio, que interessa saber tocar

Chopin num desafinado piano herdado dum apelido

Menos comum e um antepassado que em vez de caçador

De javalis e bebedor de vinho xistoso, o descobridor dum calhau

Vazio no meio do medo e da incerteza, viver sem medir apelidos,

Peças de música imortais, todos os clássicos que não se leram,

Um bolo e um Compal depois do trabalho da meia galega,

Antes de nos fecharmos naquele quarto alugado às escuras,

Para cá do Marão, desenrolando suspiros e gemidos,

Desvendando espasmos e dilatações com o espanto da juventude,

Até adormecermos ao som de um cantor Pop, longe das ondas

E deste corpo que hoje arrasta a tinta pela página fora,

Como se fosse tempo, tentando apanhar ao menos

Um momento, uma migalha daquele bolo com um Compal.

 

Turku

27.03.2023

Tons de Branco Sujo

 

Aonde me levam as insónias nesta Primavera

Que não se deixa vir, a caminho de sua casa

Na festa da vila no Verão e as calças brancas

De joelhos na terra no Largo da Feira

E num gorgolejo de cerveja e música pimba,

Venho-me sem glória, com uma pressa de matraquilhos,

Este corpo que agora tão estranho àquele

Que dentro do teu, nesta Primavera coberta

Duma insónia fria e branca como o esquecimento.

 

Turku

29.03.2023

Elogio da gralha

Du côté de chez swann, in à la recherce du temps perdu, corrigido por Proust

As gralhas (acaso) são mal-amadas, até mais do que os erros (ignorância), muitas vezes acompanhados por um código de punição bem estabelecido, permitindo o conjuro para redimir o infrator e, sobretudo, o algoz (a pedagogia parva da palmatória assentava neste princípio). Já as gralhas, fruto do desleixe ou do fortuito, são menos imputáveis, mas mais censuráveis.

As que resultam do desleixe evidenciam o descuido na redação ou na edição. Este défice de brio é pouco desculpável, mesmo nos casos em que ocasiona uma inventividade linguística fértil (foi quase sempre desta forma que as línguas se mantiveram vivas). É comum criticar-se, sem direito a contraditório, a indigência ou a pressa (a aceleração e dispersão da modernidade impedem o escrutínio atento, realizado, em grande medida, depois da primeira revisão, é preciso olhar noutro tempo para o mesmo texto: escrever num dia, rever noutro, e noutro, e noutro...) que originam a falha. Mas uma parte da crioulização do latim para o português teve origem nesta imperfeita economia linguística, simultaneamente corruptora e criadora.

A gralhas fortuitas têm, por seu turno, mais alcance e, por isso, são vitais para que uma língua renove os campos de sentido com enxertos bem mais afastados das guias originárias. Kant, na «Dialéctica Transcendental» da Crítica da Razão Pura desconsidera a inventividade linguística, fixar sentidos (é esse um dos grandes objectivos do livro) supõe fixar a linguagem, daí dizer, com todas as letras, que uma língua morta é preferível a outra cheia de neologismos. Mas Kant quis criar um sistema filosófico, neste caso sobre as possibilidades, todas as possibilidades racionais, do conhecimento.

Sabendo-se hoje que os sistemas podem, e devem, ser curto-circuitados, que as reservas de sentido são infinitas e a racionalidade humana finita, que os limites de uma língua devem ser empurrados além das suas fronteiras para que aquela não estagne e desapareça, ninguém, com um juízo que queiramos frequentar e emular, sonha escrever numa língua morta e ser revisto por pensamentos algorítmicos, humanos ou artificiais, a quem não escapasse qualquer gralha.

Mas nos efeitos práticos, este romantismo da resolução dissolvente, da acção que aceita o imprevisto, mais, que o ama, da escrita jovial que foge aos imperativos do autor, que não se submete imediatamente ao leitor, há consequências que podem destruir um génio juvenil, um escritor promissor. Mantém-se a responsabilidade individual, apesar do muito que ultrapassa o plano traçado por cada indivíduo, e é bom que se mantenha, sem escrutínio e punição (simbólica) não haveria mundo. Mas quem avalia a qualidade de um texto apenas pelas gralhas e erros transforma-se num funcionário da redução, do empobrecimento, da mesquinhez. Não defendo, em contraste, uma tolerância sem freios, mas aponto para a grandeza que julgo existir no passar pelas gralhas, pelos erros (por alguns deles) como por algo de irrelevante para a qualidade, ou falta dela, do que se lê.

Assim, quando virem uma gralha ou um erro que pareçam fatídicos não os deixem ser fatais, ou melhor, não os tornem fatais. Vejam, antes, se têm a força de um vector de transformação da língua e do pensamento.

ouvir uma canção pela última vez

Jovem tocando Cítara, DETALHE de um Vaso de Terracota, CA. 490 a.C. atribuído ao chamado Pintor de Berlim
(Vaso Oriundo da Ática, Hoje No METROPOLITAN MUSeum of art, Nova IorquE)

 

...ἔνθά τε Μοῦσαι
ἀντόμεναι Θάμυριν τὸν Θρήϊκα παῦσαν ἀοιδῆς
Οἰχαλίηθεν ἰόντα παρ᾽ Εὐρύτου Οἰχαλιῆος:
στεῦτο γὰρ εὐχόμενος νικησέμεν εἴ περ ἂν αὐταὶ
Μοῦσαι ἀείδοιεν κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο:
αἳ δὲ χολωσάμεναι πηρὸν θέσαν, αὐτὰρ ἀοιδὴν
θεσπεσίην ἀφέλοντο καὶ ἐκλέλαθον κιθαριστύν...

...lá onde as Musas
encontraram Tâmiris, o Trácio, e o canto lhe calaram,
vindo da Ecália, de casa de Êurito, o Ecálio —
pois ufanara-se ele de as vencer, se contra ele cantassem
as Musas, filhas de Zeus detentor da égide;
mas elas na sua cólera o estropiaram e lhe tiraram
o canto sortílego, fazendo-o esquecer a arte da lira...

 Ilíada 2.595-600 (tradução de Frederico Lourenço)

 

para o RTM

 

estou a ouvir esta canção pela última vez

estou a ouvi-la não na ecália
onde as musas castigaram o poeta tâmiris
fazendo-o esquecer-se de como compor
uma canção interminável
como a ilíada ou a odisseia
porque ele se vangloriou
de ser capaz de cantar
melhor do que elas 

mas na cave de um pub
em st michael’s street, oxford
esse mesmo
com as três cabras
no escudo à entrada
ao lado da farmácia
e do lado oposto
à loja de burritos 

na mesma rua onde muito antes
de se tornarem pais de três filhos
havia um bar por baixo de uma loja de bicicletas
a que o aris vinha com a maria para ele a ouvir
passar a música que ele tinha trazido
com ele de alexandria num velho computador
que quando avariou foi para nós
a morte de todas as canções da cidade velha
da promessa da memória de todos os cafés
onde ainda as poderia ter escutado kavafis 

é a última vez que estou  
a ouvir esta canção
e não a posso cantar
porque tenho a garganta arranhada
as luzes estão todas apagadas
e mais do que escutá-la
o meu ouvido persegue o pulso
da sua melodia
que está a bater
dentro do meu peito
sei mal a letra
e no escuro outras vozes
seguem a minha
cantam com um sentimento tão belo
que não há palavras para o descrever 

sinto esta falta de palavras
com a mesma falta de vergonha
com que o rapsodo íon diz a sócrates
que um poeta
é inútil
não sabe de verdade
nada de medicina (a sua ciência não curaria ninguém)
ou de carpintaria
(seria incapaz de construir uma mesa
ou de reparar uma cadeira)

ao certo sei que me espanta intuir
que estas palavras foram tão amadas
neste planeta
que atravessaram uma longa corrente
até serem a energia que juntou
as pessoas que estão
nesta sala mais do que para a ouvir
para não a deixar morrer 

porque o trabalho de uma canção
talvez seja perturbar
o equilíbrio entre a luz e o escuro
que se pode encontrar nela
ou talvez nem seja trabalho nenhum
apenas o nosso cuidado
o nosso prazer desinteressado nela
no que ela faz a um corpo num instante 

e assim as pessoas que se juntaram
para a escutar
mais do que dançarem ao seu som
decifram-na com o corpo
expressam-na em movimentos
feitos de tanto amor e loucura
que a canção
se torna em quem
a está a dançar 

agora que a estou a escutar pela última vez
sei que preciso de me esquecer dela
como às vezes os amantes têm de se esquecer
de uma paixão proibida
ou os poetas receber o seu castigo
mas claro é escusado dizer
que não sou eu que a apago
é ela que me apaga a mim
e me reescreve para mais tarde
mudando-me com o seu desaparecimento

afinal nunca estive
certa de como é que isto se faz
e agora que hei-de
chegar ao silêncio
que a estou mesmo a ouvir pela última vez
alegra-me entender
que a história que esta canção conta
é a de uma pessoa que compareceu
no sítio errado
arriscando qualquer coisa de importante
por razões indecifráveis
para as quais não há explicação nenhuma

Oxford, 11 e 12 de Março de 2023

O homem é um lobo para o homem

Esta é uma das sentenças mais famosas da história da filosofia. Mas é também uma das mais mal compreendidas, quer pelos otimistas quer pelos pessimistas antropológicos, e das mais controversas. Facilita, seguramente, a entrada na filosofia de Thomas Hobbes (1588-1679), mas por uma porta lateral que afunila o processo hermenêutico, reduz, quase até à caricatura, o leque das interpretações possíveis sobre o seu pensamento de base contratualista.

Diga-se que a fórmula não foi inventada por Hobbes. Trata-se de uma daquelas locuções em latim que são transmitidas e comentadas entre autores ao longo da história, de Plauto a Bergson, passando por Rabelais, Montaigne, Schopenhauer... e Hobbes. Ele é somente um dos elos da longa cadeia formada por quem julga, ou não, que «o homem é um lobo para o homem» («Homo homini lupus est»).

A expressão não está no Leviatã (1651), a sua obra mais famosa e importante, serve de epígrafe a De Cive (Do Cidadão), publicada em 1642. Após ter evocado as Guerras civis romanas, escreve: «Não há dúvida de que ambas as fórmulas são verdadeiras: o homem é um deus para o homem e o homem é um lobo para o homem. O primeiro se compararmos os cidadãos uns aos outros, o segundo se compararmos os estados uns aos outros. Naquele, o homem consegue imitar Deus na justiça e na caridade, as virtudes da paz. Neste, mesmo os homens bons devem, devido à depravação dos ímpios e à necessidade de proteger-se, recorrer às virtudes bélicas, à força e à astúcia, ou seja, à rapacidade dos animais.»

Esta ambivalência é muitas vezes esquecida, algo que nem De Cive nem o Leviatã autorizam. Mas a simplificação tendenciosa elucida-nos sobre duas coisas: 1- preferimos o drama da acusação radical e sem remissão (Hobbes como teorizador das ditaduras que esmagam a liberdade individual porque não acreditarem na bondade humana, perdendo, por isso, quase sempre a contenda com o otimista antropológico que foi Rousseau — mais uma simplificação); 2- há séculos que mantemos viva uma pulsão acusatória intraespecista que alimenta e justifica o ódio e a vingança da economia relacional humana, a agressão interpressoal.

Todos os movimentos peace and love da história, de Cristo a Mahatma Gandhi, passando pela embriaguez hippie ou alguns prémios Nobel da Paz, são, pelo destaque que merecem e a rapidez do esquecimento, epifenómenos que conjuram unicamente uma pequena parcela da má consciência (também eu peco!) que diariamente tecemos. As estrelas dançantes, vivendo em perene jovialidade, são seres raros e distantes, talvez Sísifos brincando com berlindes, fora de alcance para o nosso desejo de emulação. Estarão «6000 mil pés acima do mar e muito mais acima de todas as coisas humanas!»[1] Aqui em baixo, continuamos desconfiados e acusadores.


[1] Friedrich Nietzsche, Fragmento Póstumo de 1881, 11[141]; KSA 9, 494. (6000 Fuss über dem Meere und viel höher über Allen menschlichen Dingen!).