O homem é um lobo para o homem

Esta é uma das sentenças mais famosas da história da filosofia. Mas é também uma das mais mal compreendidas, quer pelos otimistas quer pelos pessimistas antropológicos, e das mais controversas. Facilita, seguramente, a entrada na filosofia de Thomas Hobbes (1588-1679), mas por uma porta lateral que afunila o processo hermenêutico, reduz, quase até à caricatura, o leque das interpretações possíveis sobre o seu pensamento de base contratualista.

Diga-se que a fórmula não foi inventada por Hobbes. Trata-se de uma daquelas locuções em latim que são transmitidas e comentadas entre autores ao longo da história, de Plauto a Bergson, passando por Rabelais, Montaigne, Schopenhauer... e Hobbes. Ele é somente um dos elos da longa cadeia formada por quem julga, ou não, que «o homem é um lobo para o homem» («Homo homini lupus est»).

A expressão não está no Leviatã (1651), a sua obra mais famosa e importante, serve de epígrafe a De Cive (Do Cidadão), publicada em 1642. Após ter evocado as Guerras civis romanas, escreve: «Não há dúvida de que ambas as fórmulas são verdadeiras: o homem é um deus para o homem e o homem é um lobo para o homem. O primeiro se compararmos os cidadãos uns aos outros, o segundo se compararmos os estados uns aos outros. Naquele, o homem consegue imitar Deus na justiça e na caridade, as virtudes da paz. Neste, mesmo os homens bons devem, devido à depravação dos ímpios e à necessidade de proteger-se, recorrer às virtudes bélicas, à força e à astúcia, ou seja, à rapacidade dos animais.»

Esta ambivalência é muitas vezes esquecida, algo que nem De Cive nem o Leviatã autorizam. Mas a simplificação tendenciosa elucida-nos sobre duas coisas: 1- preferimos o drama da acusação radical e sem remissão (Hobbes como teorizador das ditaduras que esmagam a liberdade individual porque não acreditarem na bondade humana, perdendo, por isso, quase sempre a contenda com o otimista antropológico que foi Rousseau — mais uma simplificação); 2- há séculos que mantemos viva uma pulsão acusatória intraespecista que alimenta e justifica o ódio e a vingança da economia relacional humana, a agressão interpressoal.

Todos os movimentos peace and love da história, de Cristo a Mahatma Gandhi, passando pela embriaguez hippie ou alguns prémios Nobel da Paz, são, pelo destaque que merecem e a rapidez do esquecimento, epifenómenos que conjuram unicamente uma pequena parcela da má consciência (também eu peco!) que diariamente tecemos. As estrelas dançantes, vivendo em perene jovialidade, são seres raros e distantes, talvez Sísifos brincando com berlindes, fora de alcance para o nosso desejo de emulação. Estarão «6000 mil pés acima do mar e muito mais acima de todas as coisas humanas!»[1] Aqui em baixo, continuamos desconfiados e acusadores.


[1] Friedrich Nietzsche, Fragmento Póstumo de 1881, 11[141]; KSA 9, 494. (6000 Fuss über dem Meere und viel höher über Allen menschlichen Dingen!).