Como chegar a Ítaca

Vaso Katraki, Família de Pescadores (1963)

Sabe-se que não é fácil chegar a Ítaca. Definitivamente não se chega a Ítaca nem lendo o final da Odisseia de Homero nem o de Odisseia: uma sequela moderna de Kazantzakis, nem sequer indo à procura de Ulisses no Canto 26 do Inferno de Dante. Isso também não resolve nada, embora esse possa bem ser o Ulisses mais certeiro de todos, aquele que é até mais homérico do que o Ulisses de Homero.

Tenho alguns problemas com Ulisses. O maior deles começou naquelas páginas de As Núpcias de Cadmo e Harmonia em que Roberto Calasso narra a vingança deste sobre Palamedes. Talvez não muita gente se lembre deste aspecto do mito quando se fala do Ulisses homérico, mas esse Ulisses que se vislumbra nos Cipria, um dos livros que colige outras histórias do mundo de Homero, é o das vinganças hábeis e ardilosas, longamente planeadas, o mesmo que no final da Odisseia é capaz de chacinar todos os pretendentes e todos os que ajudaram os pretendentes. Apolodoro e Higino, autores mais tardios, haveriam de contar a história da vingança sobre esse tal de Palamedes que, diz Calasso se não me falha a memória, era o único no mundo arcaico que tinha exactamente a mesma inteligência que ele.

Ulisses não se parece em quase nada com os reis que vão para Troia. Para começar, é um rei pobre. Confirmam-no o catálogo das naus no Canto 2 da Ilíada (o livro mais chato do poema), que diz que Agamémnon era comandante de cem navios e que Ulisses era o comandante de um contingente de guerreiros cefalónios e de apenas doze navios de proa vermelha. Talvez a pobreza de Ulisses também se vislumbre na sua preocupação, ao longo da Odisseia, com a economia, que é uma palavra que vem de oikos, grego para casa, de não perder os seus despojos de guerra e de angariar mais pelo caminho. 

Os mitos contam que quando os gregos vieram em busca de Ulisses a Ítaca, ele se fingiu de louco para que não o arrastassem para uma guerra em que ele não queria combater porque não era a dele. Há qualquer coisa, parece-me, de dionisíaco na figura de Ulisses. Vê-se isso nesta recusa inicial, inaudita entre os outros capitães dos gregos. Percebe-se aqui como ele ama viver e sobreviver através de todos os desaforos. Há qualquer coisa de absurdamente desmedido (desmedido também no sentido de fora dos limites sociais) no seu amor a uma arte de perdurar e de ser. Isso assoma no seu desespero melodramático, nas muitas lágrimas derramadas pelo caminho, durante a longa viagem de regresso, mas essa coisa desmedida talvez apareça sobretudo naqueles versos no Canto 13 da Odisseia em que ele pede a Atena que ela o ame mais quando ele regressar a casa e tiver de enfrentar os pretendentes do que em qualquer momento anterior de qualquer uma das suas aventuras. Ou quando ele recusa a imortalidade que Circe lhe oferece para, em vez disso, voltar a casa. Como é belo ser um mortal e poder ir morrer junto de quem nos amou, regressando através de quase tudo, com uma clareza que ultrapassa o próprio medo de morrer. E que sorte extraordinária conseguir encontrar isso no decurso de uma vida, que às vezes é tão curta e tão cega que não dá para quase nada.

É Palamedes quem interrompe o curso doméstico em que Ulisses estava, a mulher e o filho e a pequena prosperidade de Ítaca, e muda o seu caminho para sempre, porque é Palamedes quem, enquanto Ulisses se faz de louco diante dos dignatários dos gregos, fingindo-se de boi e lavrando com um arado um campo, sugere que se coloque no seu caminho o filho de Ulisses, o bebé Telémaco. Ulisses então não tem como continuar a fingir e tem de parar com o teatro. Mas ele não se esquece de Palamedes e não só causa a sua morte em Troia como lhe dá uma morte infame.

Já em Troia, Ulisses forja uma carta do rei Príamo, na qual promete a Palamedes uma determinada soma em ouro se este traísse os planos dos gregos. Ele esconde depois essa mesma soma na tenda de Palamedes. Palamedes é denunciado a Agamémnon, o ouro é encontrado na sua tenda e os gregos apedrejam-no até à morte. De todos os meus problemas com Ulisses, o primeiro é esta história. É precursora, em termos de cronologia mitológica, da chacina dos pretendentes, mas sobretudo da chacina, desnecessária e excessivamente cruel, das escravas que trabalhavam em sua casa. É um daqueles gestos que expõe a raiz profunda da crueldade humana enquanto paixão demasiado arcaica. Não é rara em Ulisses. É um traço da sua natureza. Surge, por exemplo, no modo como ele espanca violentamente Tersites no Canto 2 da Ilíada. Há na figura de Tersites qualquer coisa da alma de um sátiro, o que está também provavelmente inextricavelmente ligado ao facto de que ele vem de uma classe social mais baixa do que as outras personagens que intervêm no episódio da briga entre Aquiles e Agamémnon, mas Ulisses silencia Tersites à pancada, batendo-lhe violentamente com o ceptro nas costas.

Há, ainda na Ilíada, o modo como ele trata Dólon, o espião troiano cujo nome partilha a etimologia com a palavra dolo. Como ele e Diomedes no Canto 10 do poema, um canto que se chama “Canção de Dólon,” que tende a ser visto como uma anomalia no poema porque é um livro que estamos quase certos de que é apócrifo, existindo sobretudo para que reparemos em Ulisses. O livro conta como os dois gregos capturam Dólon, de como ele lhes implora que o poupem, oferecendo-se para pagar o seu próprio resgate. Ulisses diz-lhe para ele não se preocupar com a morte, fá-lo contar-lhe todos os segredos dos troianos e deixa que Diomedes o degole no fim, quando Dólon está de joelhos, prestes a fazer o gesto ritual dos suplicantes: tocar os joelhos e a barba daquele a quem se suplica. A descrição mais precisa de Dólon não vem na Ilíada mas em Memorial de Alice Oswald, um livro que colige e expande os epitáfios das muitas personagens menores que surgem no poema:

What was that shrill sound
Five sisters at the grave
Calling the ghost of DOLON
They remember an ugly man but quick
In a crack of light in the sweet smelling glimmer before dawn
He was caught creeping to the ships
He wore a weasel cap he was soft
Dishonest scared stooped they remember
How under a spear’s eye he offered everything
All his father’s money all his own
Every Trojan weakness every hope of their allies
Even the exact position of the Thracians
And the colour and size and price of the horses of Rhesus
They keep asking him why why
He gave away groaning every secret in his body
And was still pleading for his head
When his head rolled onto the mud 

Acho às vezes que a história da carta de Palamedes corre o risco de ser apócrifa porque se menciona a tecnologia da escrita e esta parece ser, no mundo homérico, rara e insipiente. A única vez em que é mencionada, no Canto 6 da Ilíada, é também na história de traição e vingança. O herói Beleforonte transporta com ele a carta que ordena a sua própria morte às mãos de um aliado do rei Proteu, porque Anteia, a mulher deste, acusara falsamente Belerofonte de a tentar violar. A melhor discussão deste episódio é, claro, a de Anne Carson em Eros, the bittersweet.

Há um mito das origens obscuras que atribui ao próprio Palamedes, em conjunto com Cadmo, a invenção de algumas das letras do alfabeto. Também se lhe atribui a invenção do jogo dos pessoi, espécie de precursor dos jogos das damas e dos dados, para que os soldados gregos matassem o tempo em Troia. Palamedes terá sido então responsável, antes de Ulisses o matar, pela inauguração da longa, e frutífera, relação entre o vício, o desejo, a esperança e a inteligência.

Não sei, e talvez não haja maneira de saber, se Cesare Pavese terá pensado nesta tradição quando faz Circe dizer, no diálogo “Le streghe” de Dialoghi com Leucò:

Quello che mai prevedo è appunto di aver preveduto, di sapere ogni volta quel che farò e quel che dirò – e quello che faccio e che dico diventa così sempre nuovo, sorprendente, come un gioco, come quel gioco degli scacchi che Odisseo m’insegnò, tutto regole e norme ma così bello e imprevisto, coi suoi pezzi d’avorio. Lui mi diceva sempre che quel gioco è la vita. Mi diceva che è un modo di vincere il tempo.

Às vezes, relendo esse livro de Pavese, acho, como muitos críticos de Cesare Pavese acharam, que Ulisses é a figura central e tutelar deste que talvez seja o seu melhor livro. Pavese dizia sobre os Dialoghi que eles coligiam as personagens e as situações do mundo clássico que tinham capturado a sua imaginação enquanto aluno de liceu. Ulisses aparece, de resto, num diálogo anterior, “L’isola,” onde conversa com Calipso, no momento em que, em Ogígia, ela lhe oferece a imortalidade e insiste para que ele a aceite. A ler Pavese repara-se, nas linhas finais do desse diálogo, que Ulisses é o herói, na ordem do mundo, para todos os pós-guerra (os diálogos foram escritos entre 1945 e 1947):

ODISSEO Saprò almeno che devo fermarmi.
CALIPSO Non vale la pena, Odisseo. Chi non si ferma adesso, subito, non si ferma mai più. Quello che fai, lo farai sempre. Devi rompere una volta il destino, devi uscire di strada, e lasciarti affondare nel tempo…
ODISSEO Non sono immortale.
CALIPSO Lo sarai, se mi ascolti. Che cos’è vita eterna se non questo accettare l’istante che viene e l’istante che va? L’ebbrezza, il piacere, la morte non hanno altro scopo. Cos’è stato finora il tuo errare inquieto?
ODISSEO Se lo sapessi avrei già smesso. Ma tu dimentichi qualcosa.
CALIPSO Dimmi.
ODISSEO Quello che cerco l’ho nel cuore, come te.

Há qualquer coisa de espantoso nesta última linha. Ulisses define, com este lirismo intenso e oracular que é o tom característico dos Dialoghi, a coisa em que mortais e imortais se igualam. E talvez esteja aqui a dizer que não há maneira de abandonar Ítaca, porque ela nunca o abandona.

Kavafis sabia isso sobre Alexandria enquanto Ítaca. Naquele que é talvez o seu poema mais famoso e mais citado, escrito originalmente em 1910, lemos que é preciso abandonar Ítaca, amar a longa viagem, para no regresso entender o que significam as Ítacas. Este plural em Kavafis, Ιθάκες, de resto, sempre me divertiu. É de uma ambiguidade que expande o mundo e consegue, ao mesmo tempo, ser intimamente kavafiana. O plural aqui tem, claro, a força retórica do universal, mas acidentalmente deixa implícito que existem várias Ítacas possíveis, desarruma Ítaca um pouco da sua sentimentalidade absoluta de lugar único. No último verso desse poema até Ítaca de alguma maneira viaja, ήδη θα το κατάλαβες η Ιθάκες τι σημαίνουν. Quando o mais natural na ordem do verso seria que Ítacas fosse a última palavra, em vez disso é a expressão “que significam.” O verso significa, à letra, “então terás entendido as Ítacas o que significam.”

Nunca estive em Ítaca. Ainda não consegui lá chegar. O mais perto que me senti de Ítaca, não geograficamente falando, foi na ilha de Corfu, cujos habitantes reclamam ter sido a ilha dos Feaces. É uma das ilhas da Grécia com uma das capitais mais belas que conheço, mas é hoje incrivelmente pouco hospitaleira, pouco real, completamente monopolizada pelo turismo. Nem os fantasmas de Lawrence Durrell e Henry Miller se entreveem quando passamos pelos lugares por onde eles andaram, nem mesmo sequer quando nos sentamos nos bares dos terraços dos hotéis onde eles se sentaram, onde não teriam, hoje, dinheiro suficiente para se embriagarem tão completa e confortavelmente como o fizeram no tempo em que por lá andaram.

Acho que um dos momentos mais extraordinários da Odisseia tem qualquer coisa a ver com embriaguez. É o encontro do filho de Ulisses com Helena, transformada em farmacologista, drogando os soldados para que eles se esqueçam da dor que trouxeram de Troia.

Helena sobrevive à guerra, reinventa-se ao lado de Menelau. Mas e Penélope? O que dizer dela quando pede a Ulisses que não se zangue, quando lhe faz o teste final para tentar entender se ele é mesmo ele – percebemos então que há pelo menos mais uma personagem, além de Palamedes, cuja inteligência é como a de Ulisses –, pedindo a uma serva que mude de lugar a cama de ambos, imóvel para sempre porque esculpida num carvalho ainda no centro da casa, e ele com angústia se zanga, porque que homem podia ter mudado de lugar uma cama que ele mesmo construíra? E ela pede-lhe para que ele não se zangue, que se os deuses já não os tinham deixado em paz para passarem a juventude juntos, que ao menos ficassem juntos durante a velhice. Existe uma outra odisseia nesses versos de Penélope, entendemos o que é que foi perdido, porque é que Ulisses queria ir enganar os gregos e não queria partir. Porque é que ele nunca é exactamente como eles, nem na Ilíada nem na Odisseia.

Foi no pequeno museu municipal de Kerkyra, ao mesmo tempo o nome grego de Corfu e o nome da capital da ilha, às moscas para lá do jardim com as estátuas de Gerald e Lawrence Durrell, que vi pela primeira vez as mulheres dos mitos antigos e as mulheres contemporâneas da pintora Vasso Katraki (1914-1988), a sua Antígona sepultando o irmão e as camponesas anónimas e as mulheres grávidas, corajosas e sozinhas, ou mulheres com os filhos, ou retratos esquemáticos de famílias, com qualquer coisa de neorealista, que fazem pensar em migrações sasonais, casas e regressos, que ela desenhou entre o período da Guerra Civil e da Ditadura dos Coronéis.

Quando estive no pequeno porto de Fiskardo, em Cefalónia, onde se pode apanhar o barco para o também minúsculo porto de Frikes em Ítaca, essas imagens de Vasso Krataki ainda não estavam comigo, eu ainda não as tinha visto. Não cheguei a apanhar esse barco para Ítaca. Mas nadei nas correntes ao longo dessa extensão de costa, onde a água é de um azul transparente, e a nossa sombra é reflectida no fundo do mar. Tatiana Salem Levi tem uma descrição muito precisa, em Vista Chinesa, desse tipo de mar, ela diz que ele “não se parece com o pórtico de um reino profundo e misterioso.” Mas as correntes nessa costa de Fiskardo enganam bem: afastarmo-nos um pouco basta para sentimos a força obliterante do mar e o receio de não conseguir voltar à praia. É fácil então pensar nos muitos naufrágios de Ulisses. Tenho tido a intuição, em certos momentos de viagens, em horas letárgicas, passadas em barcos e aviões, de que estamos aí tão isolados, tão inacessíveis, que não fazemos exactamente parte do mundo dos vivos. É só à chegada ou no regresso que tornamos a existir. Este é, claro, em parte, o drama de Ulisses.

Por causa da geografia de Ítaca descrita na Odisseia, muitos arqueólogos suspeitam que Ítaca e Cefalónia estavam ligadas na antiguidade, e que a Ítaca homérica ficava, na verdade, em Cefalónia, uma ilha hoje quase sem passado, com apenas duas aldeias antigas, porque é muito propícia a terramotos. O maior dos mais recentes, na década de 1950, destruiu a ilha quase por completo.

Nunca vi, então, Vathi, a bela cidade que é hoje a capital de Ítaca. Concluí, no entanto, por cálculos não muito complicados, que a maneira mais fácil de lá chegar, a partir de Atenas, é apanhando o comboio para Patras, que faz a sua travessia por uma paisagem que não vejo há quase tanto tempo quanto Ulisses não viu Ítaca: através do golfo de Corinto, com os seus ecos dos mitos em torno de Édipo e com os laranjais do Peloponeso do outro lado. Chegando a Patras é depois fácil apanhar o barco para o porto de Aetos. Há pelo menos um barco por dia.

 

Oxford, 16 e 18 de Junho de 2023

Que Túmulo em que Talhão

Para homenagear João Moita pelo prémio APE de poesia 2023 atribuído ao livro Que Túmulo em que Talhão, editora Guerra e Paz, recuperamos a recensão que Victor Gonçalves fez para a Enfermaria há cerca de um ano. O texto foi revisto.

A poesia repete-se e reinventa-se permanentemente, é, como as outras artes, reacionária e progressista, tem um pé no passado e outro no futuro. Se, por um lado, pelo menos desde o modernismo, desapareceram quase todas as restrições formais; por outro, permanecem campos específicos, edições e prémios, por exemplo, que não a deixam confundir com o resto da ficção. Há, até, a crença popular (pouco justificada) do talento poético da cultura portuguesa, provando o reconhecimento de um ethos que a diferencia no mundo das artes da palavra.

A obra de João Moita (ele recusa tê-la, cada livro, diz, é um começo, mas a bandana de Que Túmulo em que Talhão seleciona Fome — Enfermaria 6, 2015/17 — e Uma Pedra sobre a Boca — Guerra e Paz, 2019; juntando-se a isso um trabalho profundo de tradução poética: Antonio Gamoneda, Saint-John Perse, Arthur Rimbaud, Pierre Louÿs, Paul Verlaine, Walt Whitman) tem a marca da inclemência, há sempre uma tensão que atravessa o que é dito e mostrado. Um sopro frio sacode o espúrio e o sagrado (o que se considera como tal), como nos cínicos gregos, que para serem autênticos tanto se lhes dava como se lhes deu. Neste sentido, talvez a poesia de João Moita seja dedicada a Deus, impotente ou tolerante perante o mal, um evangelho do negativo. Por isso, capturando sem falhas o concreto e o sensorial, Que Túmulo em que Talhão foi composto com símbolos incomuns: foice, bafio, ranço, peçonha, salobra, asfixia, vertigem oblíqua, gangrena, podridão, emboscada, putrefação, morte, cadáver, chiqueiro, epidemia, matança, veneno, negrume, lamaçal, vísceras, visco, pestilento, tumor, bafo, entulho, escuridão, náusea, indigesta, fome, mórbido. A solidão pobre, o tédio, as iras domésticas, uma paz que sufoca… Talvez para melhor confinar a linguagem à função de descrição física e de localização. Ou achar que são as melhores palavras para ir para lá da linguagem.

Não sei se João Moita quis exprimir ou expulsar sentidos que o compõem ou se deixou que algo emergisse através (sim, atravessando-o) dele. Die Sprache spricht («A linguagem fala», Martin Heidegger, que admirava Hölderlin e achava que o Ser habita na poesia). Respeitando a sua vontade de desaparecer por trás dos livros que vai escrevendo, avanço a hipótese de uma linguagem da Lezíria assomar na ponta da sua caneta, ditando o fulgor amoral, patético, repugnante, viril, cruel… da vida/morte. Um livro que podia, assim, não ser assinado, mesmo reconhecendo que a linguagem da lezíria não escolheu o João por acaso. Creio saber que ele não gosta nem da embriaguez dionisíaca nem do humanismo apolíneo, tomados nesta dicotomia simplista, é também avesso, quando se concentra no individual, tanto à autocomiseração quanto à autoglorificação. Daí compreender-se que tenha procurado «representar a natureza em toda a sua esplendorosa indiferença e amoralidade».

Quis também «Eximir o sujeito poético ao poema». Sim, e não. Por um lado, contra ele, é indesmentível que estabelece um discurso direto com o leitor no primeiro poema, um prelúdio disparado imperativamente. Quer introduzir-nos no desencanto, para enquadrar a leitura do livro, e abrir horizontes de expetativas existenciais. E o sujeito poético emerge noutros lugares: pp. 64 («será a minha vida»), 67 («augúrio / que não decifro»), 76 («onde me detenho», «minha vida»), nas pp. 79 e 82 ainda mais claro, repete-se um «eu» e aparece um «ouço». Como o futuro foi anulado, culmina num «eu» a imolar-se na última estrofe do livro:

E eu,
couraçado pela solidão,
busco companhia
no milheiral
benzido
pelas chamas.
(p. 82)

Por outro lado, a favor do que disse, é surpreendente encontrar tão poucas vezes o sujeito poético, e nada de metapoesia (ultimamente tornou-se um vício, sobretudo nos jovens artífices). Mais, o humano quase se ausenta de Que Túmulo em que Talhão, «crianças da vila», «homem dobrado» e pouco mais. E mesmo quando aparece uma «mãe», é de gatos que se trata. Este desaparecimento desvia o protagonismo para a lezíria, sentimos que a desolação do ecossistema precisa da escassez humana, talvez exposta em contraluz nos mistérios da ausência-presença. Sem nós, a Lezíria viveria numa amoralidade exultante. É por isso que a luz direta que João Moita diz lançar sobre a natureza talvez não morra aí, ela acerta na Lezíria, certamente, mas reflete-se em algo para lá dela, e nesse além está, acredito, o humano, mas também o divino. Terei sucumbido ao magnetismo da ausência?

Expressionismo niilista. O único consolo — numa remissão tão frugal que é preciso ter a força de um estoico experiente — está, pontualmente, na indiferença. Mesmo quando não compõe uma imagem de fealdade e desarmonia, acaba por escrever: «acocoradas sob as telhas / as sombras preparam / uma emboscada». Quem se lembraria de mostrar num poema que

O frio eriça
as vísceras dos frangos,
enxameadas de moscas
para a postura
dos ovos.
(pp. 31-32)

No mesmo poema — do capítulo «A Vila», o outro é «Os Campos» — retoma episódios de elementos naturais que invadem a polis decadente, percorrida pelo destino do desaparecimento: «o sonar de um morcego / varre a ignomínia do quintal». Neste caso, o metafórico ganhou a relevância exata de um lirismo negro, como sucede na estrofe que se segue:

O sol lança chispas
sobre o caixão.
Jazem azuis e bolorentos
os limões,
como as chagas
imputrescíveis
da devoção.
(p. 33)

Há nisto um ver as coisas a partir de um ângulo pós-convencional, mas há também a vontade de inverter a pastoral, e desde logo uma das figuras mais emolduradas, a aurora: «Amanhece na campina / como o caruncho alastra / no sudário» (p. 39) Uma lírica perfurante para chegar à vida nua campestre, ou um neorrealismo desumanizado:

Coalha de lêndeas
o pêlo das grandes
ratazanas,
mosquitos sedentos
mugem os úberes
das vacas da charneca,
rodopiam,
em sua grande
transumância,
as pedras frias
do entardecer.
(pp. 50-51)

A aurora, o belo crepúsculo dos românticos, a terra, a luz, o céu…, nada disto tem suficiente força redentora para fazer frente ao poeta, ou aos poemas. Nem mesmo a metafísica resiste ao teste de esforço hermenêutico:

Cai varado
um deus
como um limão
na aridez
da charneca.
(p. 59)

É a segunda vez que limões e divino se cruzam, não o limão jovial dos cocktails, mas o da acidez que também apodrece, e antes cai desamparado. É por isso que me senti assombrado pela ideia da decomposição (termo que o João usa), do orgânico, seguramente, mas também a decomposição de uma certa forma de escrever poesia. É assim que ousa criar esta surpreendente analogia: «o negrume de um céu / de amoras pisadas.» (p. 69) Uma traição ao hábito, a que alguns chamam inventividade. Mas pode também ser, deixem-me arriscar, uma extrema fidelidade aos pormenores, envolvidos, dia e noite, num bafo pestilento.

Parque Eduardo VII

Sentado num banco, a dominar a cidade,
deveria acalentar meus sonhos de grandeza,
ver-me rei do que avisto, até à Arrábida; em vez disso,
sinto cobrir-me um manto, um peso estranho
que traz algum alívio à raiva e à teima dos últimos dias,
nos quais abri e folheei obras curiosas
sobre como fabricar uma bomba nuclear
(coisa cara e que, confesso, não será o que me falta
para a vida, agora, pendente das estatísticas;
com a curva de estupidez a subir, vertiginosa).
Estes enormes obeliscos encimados por louros,
hão-de estar alinhados com o cais das colunas,
numa grandiosa perspectiva à la française,
(Isto suponho, não estudei o assunto),
o que sei é que andam escavadoras lá em baixo
a revolver o Tejo e a transformar o cais, talvez,
numa marina, num polo de atracção acrescida
para as hordas de turistas que (pois é, desapareceram)
hão-de voltar cheias de apetite. Deus não permita.
Entre os enormes falos coroados, havia, no Natal,
um presépio gigante, não sei se ainda há,
o que há, aqui na minha frente, é uma asserção em pedra
do pénis em ruína do João Cutileiro, bem escorado,
e que terá causado escândalo e polémica,
sem que eu me tenha comovido um pêlo.
Porque nem todos os pénis chegam a falo,
e o pobre amontoado, junto aos quatro obeliscos
altíssimos, perde à partida a luta pelo símbolo
e nem chega a ser insulto, para não falar em arte.
Que me perdoem os que amam a obra, eu amo
Lisboa e, pelos vistos, finjo honrá-la, falando.
Já vejo que a tarde não me cura totalmente
a raiva que crescia. Não me vale o peso do manto inverso,
faltam-me uns olhos melhores, dois faróis
que me lessem por dentro até eu adormecer.

17/11/2020

Cormac McCarthy, elogio fúnebre

Morreu Cormac McCarthy, os que lerem este texto sabem-no já quase de certeza, o autor de livros que redesenharam uma parcela importante da literatura americana e mundial, que temos a sorte de estar inteiramente traduzida em português continental por Paulo Faria.

A Enfermaria escolheu fazer o elogio fúnebre pedindo emprestada a palavra a Isabel Lucas, Paulo Faria, A.O. Scott (The New York Times) e Eduardo Lago (El Pais). Dos dois primeiros, resumimos muito o que publicaram há poucos dias no jornal Público (deixamos os links e esperamos que possam ler os artigos na íntegra, vale a pena); dos segundos, propomos uma tradução de Victor Gonçalves (também com o link para os originais).

Isabel Lucas diz que os livros de McCarthy contêm qualquer coisa de indomável, são um retrato do caos humano. «Obra fundamental para a literatura deste tempo.» Morreu, refere ainda, um escritor de outro tempo, pré-digital, enamorado pelos sentidos das coisas tangíveis. (Artigo aqui)

Paulo Faria, por sua vez, tradutor e discípulo, assegura que «uma imensa tristeza desce sobre nós.» Alarga também este desaparecimento a «um certo tempo, uma certa literatura». Uma literatura alimentada pelo mundo das coisas próximas, sem qualquer tipo de computação a mediar entre o fora (mundo físico) e o teclado da máquina de escrever. Ele que era um cientista amador, atento, pois, à vanguarda teórica. (Artigo aqui)

By A.O. Scott (The New York Times)

  • June 14, 2023 (aqui)

Uma página de Cormac McCarthy pode por vezes ser tomada como ou poesia ou como prosa: as frases curtas; a pontuação esparsa; a margem direita recortada. A dicção, especialmente nos livros que se seguiram a Blood Meridian [Meridiano de Sangue] (1985), é ao mesmo tempo austera e lírica, despida do ruído da vida moderna e sintonizada em frequências elementares e metafísicas. Mesmo na sua expressão idiomática mais precisa — gerúndios com g's soltos, «could of» por «could have», «it was» em vez de «there was» — a sua linguagem pode parecer intemporal:

«The boy stood up. He looked off up the meadow. There were two ravens sitting in a barren tree. They must have flown as they were riding up. Other than that there was nothing.
Where do you reckon the rest of the cattle have got to?
I dont know.
If they’s a dead cow in the pasture will the rest of the cattle stay there?»
McCarthy, como todos os escritores, pertenceu ao seu tempo, mesmo quando, talvez mais intensamente do que a maioria dos escritores, se esforçou por criar uma obra que lhe sobrevivesse. Numa crítica astuta e céptica de No Country for Old Men [Este País não é Para Velhos] (2005) no The New York Review of Books, Joyce Carol Oates observou que «tal como o seu quase exacto contemporâneo John Updike escreveu com uma ternura extática sobre o amor físico heterossexual, também McCarthy escreve sobre a violência física com uma atenção que não se encontra em nenhum outro escritor sério que eu conheça, excepto Sade».

A autora prossegue citando uma passagem memoravelmente sangrenta — «He lay half headless on the bed with his arms outflung, most of his right hand missing» — num livro notavelmente brutal, mas é a justaposição desses nomes improváveis que chama a atenção. Colocar McCarthy, o moralista taciturno da fronteira do Sudoeste, na companhia de Updike, o sensualista de língua prateada dos subúrbios americanos, pode parecer quase perverso, a não ser que se considere a quase coincidência dos seus aniversários como algo mais do que mera coincidência.

E devo dizer que o considero. A comparação casual de Oates contém uma verdadeira visão histórico-literária. Estes dois escritores fazem parte de um grupo geracional que reescreveu o genoma da prosa americana, alargando o seu leque temático e recalibrando, ao nível do estilo e da sintaxe, o que ela podia fazer. Hesito em afirmar que os ensaístas e escritores de ficção nascidos na primeira metade da década de 1930 constituem uma grande geração literária, mas consideremos esta meia dúzia de nomes, listados por ordem cronológica de nascimento: Toni Morrison (1931); Updike (1932); Susan Sontag, Philip Roth e McCarthy (todos em 1933); e Joan Didion (1934).

Poder-se-ia continuar a avançar pela década, acrescentando à lista (para começar) Don DeLillo (1936), Thomas Pynchon (1937) e a própria Oates (1938). Mas aqueles seis constituem um cânone formidável por si só. Não que se assemelhem remotamente uns aos outros: cada um representa uma sensibilidade singular e uma voz original, uma personalidade própria que é inconfundível e inimitável.

O que partilharam foi a capacidade de sintetizar influências heterogéneas — os grandes romancistas europeus do século XIX, as vanguardas transnacionais do século XX, Moby-Dick e Henry James, Hemingway, Faulkner e Huckleberry Finn — com uma confiança que pode parecer, no nosso ansioso momento actual, quase uma arrogância. Divergindo dos cânones do realismo americano e dos dogmas do modernismo internacional, embora incorporando aspectos de ambas as tradições, não se filiaram a nenhuma escola ou movimento. Sem coordenação, e com uma idiossincrasia tenaz, redesenharam as fronteiras do mainstream literário.

Em comparação com os outros, McCarthy foi um pouco tardio — o último de entre eles a alcançar o reconhecimento da crítica, a celebridade (que desdenhava) e o estatuto de grande escritor. A sua ascensão coincidiu com uma mudança na sua escrita em termos de região, género, forma e precursor essencial. Passou do Sul para o Oeste, do gótico fronteiriço para o épico fronteiriço, do lúgubre para o oracular, de Faulkner para Hemingway.

A Trilogia da Fronteira — All the Pretty Horses [Belos Cavalos], The Crossing [A Travessia], e  Cities of the Plain [Cidades da Planície] — alargou o seu número de leitores, em parte porque, sem piscar o olho ou ser paternalista, explorou uma estirpe potente e mítica da cultura popular. São romances de cowboys, cheios de estoicismo viril, violência implacável e evocações elegíacas e quase sentimentais da natureza, da geografia e da história dos índios:

«In the evening he saddled his horse and rode out west from the house. The wind was much abated and it was very cold and the sun sat blood red and elliptic under the reefs of bloodred cloud before him. He rode where he would always choose to ride, out where the western fork of the old Comanche road coming down out of the Kiowa country to the north passed through the westernmost section of the ranch and you could see the faint trace of it bending south over the low prairie that lay between the north and middle forks of the Concho River.»

Ao ler estas frases de All the Pretty Horses, pode ver o filme a desenrolar-se na sua cabeça. A versão para o ecrã de 2000 — dirigida por Billy Bob Thornton e protagonizada por Matt Damon e Penelope Cruz —- não é excelente, mas McCarthy tem sido mais bem servido por Hollywood do que a maioria dos seus contemporâneos. Morrison pode ser o único laureado com o Prémio Nobel do grupo, mas até agora McCarthy é o único cuja obra deu origem a um vencedor do Óscar de melhor filme. Os irmãos Coen, que adaptaram No Country for Old Men, descreveram o processo de escrita como «Joel segura o livro aberto pela lombada» enquanto Ethan o reescreve, e parece haver uma afinidade natural entre o trabalho posterior de McCarthy e as inclinações do cinema contemporâneo.

No Country, The Road e The Counselor [O Conselheiro] — um conto pós-apocalíptico encabeçado por duas histórias de crime hard-boiled (a última escrita directamente para o ecrã) — constituem uma segunda trilogia, preocupada com a persistência do mal e o colapso da ordem moral. Esta é definida, de forma bastante explícita, como uma crise do patriarcado, uma erosão da autoridade dos pais e dos seus homólogos, uma perda da possibilidade de heroísmo.

O conservadorismo desta visão é evidente e sugere outra ligação geracional, entre McCarthy e Clint Eastwood, que nasceu em 1930 e cuja mistura de pessimismo metafísico, humor duro e estilo despojado faz com que alguns dos seus últimos filmes pareçam mesmo McCarthyescos. Ambos podem parecer — e têm-se apresentado como — os últimos de uma raça. Mas cada um deles inventou algo novo. Eastwood deu nova vida a formas cansadas. McCarthy escreveu livros que pareciam ter existido sempre.

Obras mais influentes de Cormac McCarthy

Blood Meridian [Meridiano de Sangue] (1985). Baseado vagamente em eventos históricos, o romance acompanha um jovem fictício de 14 anos, referido apenas como «o garoto», enquanto ele percorre o sudoeste americano. «Blood Meridian deixa claro que o Sr. McCarthy sempre nos pediu para testemunhar o mal, não para o compreender, mas para afirmar a sua realidade inexplicável», escreveu Caryn James na sua crítica para o The Times.
All the Pretty Horses [Belos Cavalos] (1992). Este best-seller é uma história de aventuras sobre um rapaz texano que parte com o seu amigo para o México. «A atracção magnética da ficção do Sr. McCarthy vem em primeiro lugar da extraordinária qualidade da sua prosa», escreveu Madison Smartt Bell na sua recensão.
The Crossing [A Travessia] (1994). O romance começa numa pequena fazenda de gado no Novo México, nos últimos anos da Depressão, e segue Billy Parham, um vaqueiro adolescente que atravessa repetidamente a fronteira com o México. «The Crossing é um milagre em prosa, um original americano» [an American original], escreveu Robert Hass na sua recensão.
No Country for Old Men [Este País não é Para Velhos] (2005). Esta história rápida e violenta centra-se num assassino frio como gelo, num xerife de uma pequena cidade e num cidadão comum que tropeça numa mala de couro com mais de 2 milhões de dólares. "No Country for Old Men é uma variação tão estimulante destas ortodoxias [de roman] noir como qualquer fã do género poderia esperar», escreveu Walter Kirn na sua recensão.
The Road [A Estrada] (2006). O livro é um relato desesperado de um rapaz e do seu pai que atravessam a paisagem fria, miserável, cheia de cadáveres e cinzenta de um mundo pós-apocalíptico. «O Sr. McCarthy convocou as suas visões mais ferozes para evocar a devastação. Dá voz ao indizível num conto de advertência conciso que é demasiado potente para ser entorpecente», escreveu Janet Maslin na sua recesão.
A.O. Scott é crítico geral da Book Review. Entrou para o The Times em 2000 e foi crítico de cinema até ao início de 2023. É também o autor de Better Living Through Criticism.

EDUARDO LAGO (El Pais)
Nova Iorque - 13 JUN 2023 - 21:52 CEST (aqui)

Cormac McCarthy morreu ontem na sua casa em Santa Fé, Novo México, aos 89 anos. A morte foi anunciada por um comunicado da sua editora, a Penguin Random House, que não indicou uma causa específica. O lugar de McCarthy na literatura do seu país é irrepetível. Um dos rasgos que definem a sua obra narrativa é a sua capacidade para explorar em profundidade o lado negro da natureza humana. Fê-lo numa dúzia de romances espantosos, tão poéticos e pungentes como brutais, tornando a leitura das suas obras uma experiência estética tão poderosa como angustiante, mas, em última análise, redentora, por aquilo que era, no fundo, uma fé profunda nos valores do humanismo e na capacidade da arte para os reafirmar.

Podem distinguir-se várias fases na sua carreira. A primeira, a mais enigmática e sombria, inclui romances como o semi-autobiográfico Suttree, integrado nos bosques do Tennessee e no cenário urbano de Knoxville. Esta fase da carreira de McCarthy termina com uma obra-prima absoluta, Blood Meridian. De leitura hipnótica, mas capaz de afastar muitos pela desolação selvagem das imagens, este romance dá-nos a medida do seu talento. Para Harold Bloom, foi um dos maiores romances americanos de todos os tempos, um herdeiro directo do que Melville alcançou nas suas próprias investigações sobre a natureza do mal. O protagonista, o juiz Holden, é a reencarnação de Ahab, o centro de gravidade de Moby Dick. Esta não é uma literatura para pusilâmines. A certa altura, as hostes sanguinárias que desfilam nas suas páginas deparam-se com uma árvore de cujos ramos pendem os corpos espetados de vários bebés.

Nascido em Providence, Rhode Island, em 1933, foi um dos quatro grandes nomes que definiram o rumo da literatura americana do nosso tempo, juntamente com Don DeLillo, Thomas Pynchon e Philip Roth. O quarteto, validado por figuras como Harold Bloom e David Foster Wallace, é problemático, pois ancora o código estético exclusivamente em figuras masculinas, brancas e heterossexuais. Isto deve ser interpretado como um sinal de carácter apocalíptico, o mesmo que preside à sua obra.

Com ele desaparece outro dos pilares de uma forma de entender a literatura que é hoje insustentável. Apesar de tudo, McCarthy continua a ser leitura obrigatória, pela grandeza da sua escrita e pela honestidade da sua indagação radical acerca da natureza humana. A sua morte deixa um vazio profundo. Reservado, recluso, ciumento da sua privacidade até ao paroxismo, Cormac McCarthy fazia parte do círculo de lendários reclusos literários a quem, por tanto o desdenharem, a grande maioria dos seus colegas escritores cobiça tudo: o dinheiro, a fama, a atenção, a veneração do público e dos media. Tal como J. D. Salinger ou Thomas Pynchon, Cormac McCarthy escreveu de costas para os seus leitores, ignorando as modas e as exigências comerciais, fiel exclusivamente a si próprio e às exigências da sua vocação artística. É a coragem de tal postura que deve ser apreciada.

Até pouco antes do seu 60º aniversário, era um pobretão. Viajava numa carrinha a cair aos bocados, escrevia em quartos de motel e até cortava o seu próprio cabelo quando era preciso. Os seus livros vendiam entre 2.000 e 3.000 exemplares, na melhor das hipóteses, apesar da imensa estatura literária de todos eles, incluindo várias obras-primas. Os críticos sérios viram desde o início que McCarthy estava ao nível do melhor que a literatura americana tinha produzido.

A segunda fase da sua obra começou com uma mudança significativa. Com a publicação de Belos Cavalos (1992), o primeiro volume da sua Trilogia da Fronteira, a vida do romancista sofreu uma viragem inesperada. Os prémios começaram a chegar. Os seus livros chegaram a vender-se aos milhões. Hollywood começou a cortejá-lo. Por instigação do seu agente, deu a primeira entrevista da sua vida. Incomodados com a sua celebridade, muitos dos seus fãs sentiram-se traídos, e é verdade que, embora o mérito literário da Trilogia seja inegável, ao entrar numa zona mais luminosa, o trabalho de McCarthy perdeu algum do seu vigor. Cidades da Planície, o último volume da Trilogia, foi publicado em 1988.

Futuro pós-apocalíptico

No século XXI, McCarthy publicou Este País não é Para Velhos (2005) e A Estrada (2006). Com A Estrada, uma narrativa sobre um futuro pós-apocalíptico em que os Estados Unidos surgem como um país habitado por sobreviventes envolvidos em práticas funestas como o canibalismo, Cormac McCarthy ganhou o Prémio Pulitzer e foi convidado para o programa de televisão de Oprah Winfrey. McCarthy aceitou de bom grado o convite. Algo parecia ter mudado no escritor anteriormente esquivo. Na noite da gala dos Óscares, onde triunfou o filme Este País não é Para Velhos, em que Javier Bardem desempenha um papel inesquecível que lhe valeu o Óscar de Melhor Actor Secundário, estava acompanhado pelo seu filho de oito anos. A Estrada foi transformada num filme realizado por John Hillcoat e protagonizado por Viggo Mortensen, Charlize Theron e Robert Duvall.

Seguiram-se 16 anos durante os quais McCarthy não publicou nada, embora durante todo esse tempo escrevesse incessantemente. Todos os dias ia para o Instituto de Santa Fé, onde era o único escritor num mundo ocupado exclusivamente por cientistas. Foi a sua aproximação à ciência que definiu uma estranha mudança de personalidade. Nessa altura, Cormac McCarthy já não era dono de si. Tinha entrado na lenda.

A publicação simultânea de O Passageiro e Stella Maris foi um novo tipo de desafio. Como disse Czeslaw Milosz quando falou do «segundo espaço», McCarthy já tinha passado para o outro lado da vida e estava a escrever a partir daí. Nem todos foram capazes de o seguir, embora houvesse entre os seus leitores alguns tão apaixonados como sempre. São, no fundo, dois grandes livros, apesar das suas irregularidades.

Com McCarthy, não desaparece apenas um grande narrador, mas também uma forma de enfrentar a obscuridade com as armas mais difíceis de sustentar, as que são empunhadas em nome de um ideal alheio às leis que regem o mundo.

Quatro a começar com S

I

é nos dias de chuva
que penso mais em ti
o calor
muito sol
tempo de praia
deixavam-te impaciente
– clima para infiéis
dizias

com o frio era pior
ficavas quieta
e um pouco mais pequena

e depois vinha a chuva

era a altura das árvores incharem
os montes que se viam da janela
pareciam dromedários a dormir

e então tu querias ver
o teu perfil
ficava encastoado na vidraça
atento ao gotejar no parapeito
ao horizonte
a esfumar-se em teu bafo
e assim
permanecias
vais ficando
uma orla marejada
e um rol de coisas
vindas
à memória