A chegada a casa

A chegada a casa. Despe-se do casaco e atira as chaves para cima do bibelô de louça chinesa barata - tilintam-lhe os passos pelo grande corredor - na casa de banho lava com a toalha os olhos manchados de contornos de negro. Toma um duche demorado e quente, sai em carne viva no que até poderia ser uma sensação falsa de rubor. Mas que no caso não é. Deita-se no sofá sem ligar o televisor, sem ligar a rádio, sem se baralhar no seu silêncio com nenhum som. Recusa jantar, acariciar o pelo postiço do bicho embalsamado que tem plantado no centro de um pé direito razoável. Mas isso não é o pior. Força-se a adormecer ali, entre o estado prostrado e o selo que se fecha posteriormente. Já nem se lembra se as feridas se lambem ou se os selos são pedaços que se colam autónomos às cartas. Deixa-se deixar, teimando entre a mudança das horas ou o filme que de outras janelas nunca ninguém vê. A não ser, a falta que lhe fazia em desfazer a falta que já é. Porque o carteiro deixou de tocar? Chega a casa, e todos os dias anota a mesma pergunta numa parede de cera. O tempo voa, é o que todos lhe dizem. Mas onde não moram asas e o canário perdeu o pio, restam de quatro paredes o abandono de uma sirene anestesiada. Morta, talvez. Azul, é a cor que se lembra. E depois, um tom esbatido. Talvez do corpo, sem mais o que despir, estátua que ainda resiste. Sem visitas.