Voo MH370

Escrevo sobre o desaparecimento do voo do Boeing 777 MH370 da Malaysia Airlines, começando por pedir desculpas, principalmente aos que sofrem pela putativa morte (passagem incompleta, sem luto) de familiares ou amigos, estejam seguros de que não se trata de um capricho crítico. Assumo também que não tenho informação privilegiada sobre o acontecimento, baseio-me na leitura matinal de alguns jornais do velho e novo continentes democráticos (nisto sou hegeliano: ver os jornais ao início do dia é a minha “oração matinal”. Embora haja milhares de quiosques digitais que disponibilizam notícias; bem  longe, pois, da antiga solenidade calma de um exemplar coerentemente preso a uma linha editorial, impresso em grandes folhas de papel, difíceis de dobrar para os neófitos, sujando as mãos de tinta... perdoem-me esta pequena nostalgia do analógico).

Devo também dizer que o acontecimento tem simultaneamente traços de tragédia e de fait divers. É trágico porque um castigo desproporcionado caiu como um raio maligno sobre os passageiros, familiares e amigos desse voo. É um fait divers porque absorve um conjunto de desejos, de medos, de mistérios que o senso comum projecta insistentemente sobre ele, tecendo conversas de café e aberturas vampirescas de telejornais. Além disso, numa espécie de terceiro excluído, deixou de ser possível fazer com ele uma notícia relativamente objectiva porque a sua actualidade/realidade resulta mais das projecções dos espectadores do que de uma consistência ontológica interna (a especulação mitológica sobrepôs-se às hipóteses factuáveis). Isto advém, bem entendido, do campo misterioso que o envolve (indelével mesmo quando, caso aconteça, se ilumine racionalmente).

Como adquiriu o voo MH370 estatuto de fait divers globalizado? O desaparecimento deste Boeing já não é um simples facto a quem faltam causas, mas um discurso infinito sobre causas possíveis, a maioria exaustivamente trabalhadas pela imaginação. Discurso alimentado por duas fontes: a) no paradoxal apagão de um objecto tão grande e tão conectado numa época onde tudo parece ser rastreado por tecnologias digitais de posicionamento; b) no fascinante incómodo pensar a forma como os passageiros viveram os minutos da queda até ao esmagamento (partindo do princípio que isso sucedeu). Um mergulho deste tipo permite viver o impensável: a previsão real, próxima, da morte. Pode até fazer-se um countdown com uma margem de erro inferior a um minuto.

Dentro destes dois territórios de sentido, ou de falta dele, situam-se outras perplexidades que adensam o enigma. A possibilidade de terem sido os pilotos a perpetrar o acidente – guardiões, comandantes quase omniscientes e omnipotentes – traz para o acontecimento uma linha de irracionalidade insustentável. Além disso, seria afinal a maldade humana e não um qualquer castigo icariano a causar o desastre. Há também as enigmáticas últimas palavras de um dos pilotos, desejando “boa noite”. Numa época em que nada parece poder escapar às tecnologias de geolocalização, este “boa noite”, indício suspeito de que se acredita na bondade da noite, das trevas, parece abrir para certas sagas trágicas.

Desaparecer dos radares, sem deixar rasto, um avião quase do tamanho de um campo de futebol, de todos os radares que saturam os comprimentos de onda comunicativos do mundo reagindo à mais pequena movimentação, constrói por si só um novo mito. E é a partir dos mitos que os paralogismos das teorias da conspiração, da fé mais desgarrada, da política demagógica dos semi-deuses totalitários, mas também da humanidade comum cansada de explicações, complexas mas irredutíveis, da ciência, se alimentam. Este mito, que ganhará força à medida que se prolongar o desaparecimento, veio resgatar parte do mundo de uma lógica causal que tem tanto de precisa quanto de fastidiosa, por vezes, muitas vezes, devido, paradoxalmente, à sua incapacidade de fazer sentido para uma grande parte da população.

Contra este desenvolvimento do mito, para conjurar o inexplicável, a fragilidade do humano e da sua tecnologia, atente-se na vontade de encontrar fragmentos tangíveis do acidente, para que se explique finalmente segundo as leis da física ou da psicologia o que parece inexplicável (também pelos familiares, mas isso é residual). Além disso, nesta época filotecnológica é preciso desfazer a possibilidade de algo tão grande passar por incógnito, escapar à vigilância das máquinas mais sofisticadas de sempre na coscuvilhice do planeta. Felizmente, diz alguém ao meu lado, que ainda há o “inconsciente”. Agora quase sem a Psicanálise para o monitorizar, para o bem e para o mal, parece termos regressado ao que o poeta romântico Eichendorff dizia: “Mas tu, livra-te de acordar o animal selvagem que dorme no teu peito, não se vá evadir de súbito e desfazer-te a ti próprio.” (Schloss Dürande).