Redoma

 

Para a Rita

  

Falou-se tanto disto naqueles meses que enjoei. Houve quem ficasse farto e indiferente de tanta informação; a desinformação, as acusações pífias e as omissões cruzadas, a mim, causaram-me náuseas. Em Atenas, na sede do Parlamento Mundial, só anarquistas e colectivistas foram activamente contra; os escandinavos (voto quase sempre neles), os liberais, os conservadores, até algumas correntes libertárias foram a favor, chegaram mesmo a compromissos para os artigos da lei final. Desvalorizei que os populistas (ou, como se auto-intitulam, os «democratas de proximidade»), para além de mais estridentemente a favor, tivessem sido fundamentais nas negociações. Infelizmente para mim, nem sempre vendo cara a minha confiança.

 Até da educação e da cultura desviaram fundos para tornar possível a Renovação Democrática, como apelidaram o programa transnacional, o «plano de educação pública mais eficiente e ambicioso da História». Sem dúvida que é eficiente e ambicioso. Também é renovador: querem-nos como que de outra natureza. Com suficientes estudos académicos e a tecnologia certa em mãos não há como demover a vontade política, nem o reforço policial e securitário que a possibilita. E se a vontade política é a de, apregoam, tornar-nos mais empáticos, menos capazes de magoar os outros, quem ousa criticá-la em público? Nem lhe dariam tempo.

 Há cinco anos, cumpridos hoje, recebi a carta com que simpaticamente me compeliam a ser operado. Não tinha na altura, e não tenho hoje, dinheiro para a multa caso me apanhassem sem aquela coisa no cérebro. Naquele tempo obrigavam-nos a ter o chip e a punir os outros com um comando, decidindo de forma consciente (não esquecerei esta sordidez). Aplicávamos democraticamente choques eléctricos, mais leves ou mais fortes, dependendo de quão ofensivamente nos abordassem. Tanto quanto soube, a malta do politicamente correcto vivia dividida, mas eram tão pequeninos, a ponto de nunca expressarem dúvidas em público. Através do chip, o Sistema de Segurança Mundial detectava e registava automaticamente vocábulos atentatórios e tinha o poder de convocar judicialmente quer quem os proferisse, quer quem os ouvisse e não os punisse aplicando a voltagem adequada. A imprensa do sangue nunca viveu tão feliz: relatava abusos ultrajantes, desde vinganças arrepiantes aos crimes dos ultra-zelosos que humilharam familiares e amigos. Depois da confusão inicial, e dos processos que entupiram os tribunais de meio mundo, os inúmeros protestos pareceram-me servir de algo.

 Mas foi pior o que se seguiu, o que temos hoje. Não há comando, mas actualizaram o software do chip, agora ligado directamente aos neurónios. Acabaram os julgamentos arbitrários, só corrigíveis, mas nunca reparadores, pela Justiça; agora somos como doninhas mecanizadas: reagimos ao inesperado lançando imediata e inconscientemente secreções eléctricas sobre quem nos aborda de modo minimamente inesperado. Isolamo-nos, policiamos cada palavra que gostaríamos de proferir. É esta, sobretudo esta, a renovação com que nos tornaram mais democráticos: fraternos por compulsão, acabamos fechados nos nossos pensamentos, que raramente verbalizamos. Respeitamo-nos por educação (coisa que basta aos partidários da ordem acima de tudo), enquanto dentro de nós desfalecemos de medo, e elogiam-nos como a primeira civilização verdadeiramente democrática.

 Tenho a sorte de saber mais: até o belo, até o infinitamente belo, tem de existir no seio do podre. Recentemente tive a suprema felicidade de encontrar a mulher da minha vida (sei-o porque me é óbvio), a única pessoa com quem não tenho medo de conversar. Falo-lhe como se me falasse ao espelho; só por descuido poderia magoar uma pessoa que só me tem dito o que eu lhe diria se me tivesse ela feito as mesmas perguntas. Só com ela me sinto aliviado do auto-controlo que me implantaram no corpo. Ainda não chocámos, o que nos vem distinguindo da quase totalidade das relações humanas nestes dias. Isso tem-nos tornado inseparáveis, ainda que conscientes de que o risco de nos magoarmos é directamente proporcional ao nosso amor, que cresce dia após dia. Mas nada disso nos tem demovido de continuar.

 Ouvi um qualquer deputado, não lembro de que país, dizer que o fim último da Renovação Democrática é a pureza de sentimentos e comportamentos com eles concordantes. Sou por vezes crédulo, como disse, mas duvido quase sempre das intenções de quem me governa – porque tem, e sabe que tem, poder sobre mim, e porque se chegou a essa posição de poder foi porque o convidaram e aceitou, quis-se poderoso. É por isso que nem o sublime desta relação saboreio despreocupadamente: sou um privilegiado, sim, e aspiro as palavras dela como oxigénio. Mas, porque a amo, sinto-me duplamente auto-censurado, não só por não me livrar do juízo deles em mim, como todos os outros mortais, mas sobretudo por nada poder fazer (sem que me magoem) contra esta busca colectiva de pureza prostituída, que atemoriza e adia o amor. Por isso escrevo.