Alfred Jarry, Os dias e as noites. Capítulo III: Outro dia

Livre, Sengle é condenado à morte, e sabe a data. E eis que voga a sua cama de ferro branco, em forma de gôndola. Sengle, como o rei oriental, está enfaixado até à cintura numa bainha de mármore negro, que continuará a crescer à sua volta, e que lhe lembra um passeio que deu num bosque com o irmão, num estado de espírito tal como se tivesse tomado haxixe. O seu corpo caminhava sob as árvores, material e bem articulado; e ele não sabia o que de fluido voava por cima, como uma nuvem feita de gelo, deveria ser o astral; algo de mais ténue se deslocava, mais acima, em direcção ao céu, a trezentos metros, a alma talvez, e um fio perceptível ligava os dois papagaios de brincar.

«Meu irmão», disse ele a Valens, «não me toques, porque o fio se prenderá nas árvores, como quando se corre com um papagaio por entre os fios do telégrafo; e parece-me que, se isso acontecesse, eu morreria».

Ele lera, num livro chinês, sobre a etnologia de um povo desconhecido, cujas cabeças conseguiam voar até às árvores para capturar as presas, e se reuniam a elas pelo desenrolar de um novelo de fio vermelho, regressadas, então, e adaptadas aos seus colarinhos sangrentos. Mas o vento não podia soprar de certo quadrante, porque o cordão se romperia e a cabeça voaria por sobre o mar.

Como o seu irmão Valens, que ele sabe estará longe durante dez meses, Sengle, livre, rejeita-se soldado e revive o seu passado como o presente de Valens, como impressões que lhe agradam e são, portanto, as únicas verdadeiras da sua alma. E eis aqui uma sala de examinação por onde ele já passou, e cuja recordação regressa à cama branca em forma de gôndola.

Num vasto estúdio vermelho e cinzento, sob o oásis de um grande candeeiro. Severus Altmensch, o eunuco judeu; Freiherr Suszflasche, o célebre esteta alemão; o publicista Bondroit; uma jovem rapariga, modelo de profissão, chamada Huppe; o próprio Sengle.

Tendo Huppe explicado a Sengle que lhe seria agradável ver e possuir o seu corpo, como tinha feito com Raphaël Roissoy, e antes com Bondroit, e que não esperava ter o do esteta alemão, respondeu-lhe Sengle que lhe seria mais agradável ver – ainda que não fosse possível que Hupe o usasse – o do eunuco judeu Severus Altmensch, pois não se sabia se lhe faltava tanto que fosse eunuco, ou apenas o suficiente para o declarar judeu. Pensaram, então, num artifício. Propôs-se este jogo, lícito num estúdio, de tirar à sorte quem subiria nu para a mesa de modelo; e sem truques – embora Sengle previsse o resultado –, a sorte calhou a Severus Almensch. Tendo este recusado a obedecer, Sengle agarrou-o pelos ombros – com a ponta dos dedos –, e Huppe despiu-o.

Severus Altmensch surgiu nu, excepto nos pés, ainda mais disformes por se adivinharem dentro de umas botas exageradas. Peito vazio, barriga saliente como a aresta de um tetraedro, braços como duas ripas, pernas de fauno – de um fauno que tivessem castrado, por pudor, numa estampa –, e todos os membros se articulavam em direcções imprevistas. Crescia-lhe por todo o lado uma astracã encaracolada, de vicunha, ou lama, uma lã que lembrava lanolina; e, com as suas unhas como garras, desensarilhava, em direcção ao peito, o púbis triangular do seu ventre enorme com a ponta voltada para cima.

Huppe queria dar-lhe todos os prazeres; Severus teve agudos gritos, seduziu e mordiscou-a no seio. Ela não conseguiu qualquer efeito, pois ele era masoquista, fetichista e legalista, e contorcia-se no tapete enquanto mamava no bico de um pavão empalhado.

Segundo a ordem do sorteio, era a vez de Freiherr Suszflasche se despir, e era quase tão ignóbil, atrasado, com vinte e quatro anos, e maturidade de doze, conforme o exige Schopenhauer em casos tais. Raphaël Roissoy, de traços belos e beicinho, o corpo efeminado do São João Baptista de Da Vinci.

Bondroit, bem; e o último, Sengle, o mais harmonioso – consideraram –, e o corpo mais casto, apesar do ar excessivamente de modelo de estúdio do seu bigode principiante.

E como só havia seis corpos nus, não havia qualquer atentado público ao pudor. De repente, tocou a campainha – e Bondroit, todo nu, foi abrir –; era Moncrif, duma fealdade vermelhusca, e quase tão enrugado como Severus Altmensch. O recém-chegado, estupefacto, temendo um paradoxal estupro, foi sentar-se, enfarpelado, como sempre, em diversas capas. E todos lhe tiveram um profundo horror, pois, sétimo, ainda que vestido, ele constituía o ATENTADO.

E os seis desapareceram no fumo do grande candeeiro, cujo vidro se partira; e escandalizados com a presença do Sétimo, todos correram para as suas roupas, pés descalços sobre as fissuras.