Atentados de Bruxelas

I Começo por uma declaração: tenho cada vez mais dificuldades em distinguir o bem do mal, mas ainda não consigo estar para lá dessa velha dicotomia. Isto não provém, como em algumas pessoas que conheço, de uma sobre-racionalização, que a partir de uma grelha lógica cheia de bondade consegue mecanicamente acusar tudo o que pulse fora dela e santificar o que se encaixa nos seus pressupostos. Para mim, pensar o bem e o mal é só uma parte de uma hermenêutica bem mais geral, onde devem estar os horizontes de expectativa da época (um Zeitgeist feito de sensos comuns) e os acidentes extremos que sacodem a nossa consciência moral.

II Por isso, se houve alturas em que me felicitava por simultaneamente não ter nem senso comum nem corpo, hoje sou um irredutível céptico proposicional, isto é, acredito pouco nas belas e justas frases (a não ser esteticamente), tudo o que penso tem de passar o teste da realidade (das realidades, não creio numa verdade fixa exterior ao homem, plena de sentido definitivo). O teste das realidades é o meu “tribunal da razão”. Incorporei, assim, o senso comum nas minhas interpretações, é ele (ou eles) que constrói parte da realidade de que vos falo, é por ele, portanto, que a posso recuperar. 

III Os terroristas de 22 de Março em Bruxelas, essa “cidade livre, onde o humor, o desrespeito, uma maneira particular de não se levar a sério, contrasta com o que os bárbaros têm na cabeça: certezas de pacotilha, o ódio ao outro, a violência dos ‘puros’.”, dizia o director do Le Monde no dia seguinte aos atentados, vieram abanar o meu sentimento de segurança e de confiança, do primeiro decorre o segundo. Como continuar a acreditar que o ser humano, a totalidade desta espécie que justificou a bondade de uma multiplicação incontrolável com narrativas religiosas, prefere, de longe, o bem ao mal? As ideias que me assaltam não asseguram que eu seja outro, uma alteridade de bondade em relação à maldade dos terroristas. André Macedo, no editorial do Diário de Notícias de 23 de Março, associa o “proselitismo islâmico agressivo” com o “niilismo geracional que nos trouxe até aqui”. E isto faria com que houvesse, diz ainda, uma diferença profunda (antropológica?) entre “eles” e “nós”. Esta, mutatis mutandis, guilhotina de Hume não é clara para mim, às vezes pergunto-me se não habitará em cada um de nós um mini-terrorista à espera de crescer? Isto encaixa em algumas justificações políticas do fenómeno terrorista: incriminando uma péssima integração, o abandono das comunidades de imigrantes, a ostentação dominante do cristianismo sobre as outras religiões na Europa, a proletarização de segundo nível pela subsidiação elementar dessas populações, no fundo o modo de ser do capitalismo e da democracia cristã fabricaria terroristas. Acho esta argumentação, exemplificada há pouco tempo pelo nosso deputado Miguel Tiago, demasiado, política e moralmente, auto-culpabilizante para me interessar longamente. Se algo ficou mais claro para mim à medida que cumpro à risca o plano biológico de envelhecer, foi o de não confiar numa visão política que assenta, por vezes estrategicamente, em condições de interpretação e acção morais

IV Outro fracasso político é o da inacção (que não é exactamente o contrário da anterior, apenas uma versão mais moderada), baseado no “politicamente correcto”, conversa fiada que ao mesmo tempo que não age, siderada pelas ideias sagradas do interculturalismo e comunitarismo, mais inclinada a culpar o Ocidente (o quê nele? Não se sabe muito bem, prefere falar abundantemente de problemas de acolhimento, como se para integrar bastasse um lado) do que pensar e combater as causas reais (das realidades de que falei há pouco) do terrorismo. Essa posição conduz ao bartleyano “I would prefer not too”, e, mais grave, deixa o campo aberto ao populismo da extrema direita, que aproveita bem as pulsões xenófobas vingativas mais arcaicas (vingança contra vingança), inscritas aquém da fina capa cultural.

V Pensar o regresso do medo e da destruição malvada precisa, pois, do senso comum (sempre plural, repito-o). Conviver com os gestos, frases, sonhos... diários dos terroristas. O que os motiva deve ser de uma banalidade e obscurantismo realmente medianos. Nenhum deles leu tratados imparciais de geopolítica, nem Freud ou Nietzsche, são seres ordinários à espera de obter facilmente um sentido pleno. E, depois, parece-me que lhes falta a modéstia, esse dispositivo, psicológico e moral, que não deixa enlouquecer de desejo e espírito de vingança a grande maioria da população mundial. Mas talvez seja necessário também, devolvendo a famigerada geopolítica a outros, ir à fonte do pensamento europeu (alguns acusar-me-ão imediatamente de eurocentrismo) sobre o ressentimento que alimenta o espírito de vingança, e a vontade de destruição, isto é, a Freud e Nietzsche.

VI Não há tempo para dar conta aqui da complexidade do tema do ressentimento em Nietzsche. Mas em resumo possa dizer que incapaz de esquecer as afrontas (reais ou imaginárias) o homem do ressentimento deixa de ser capaz de agir em favor da vida, da sua e dos outros. Sendo igualmente inapto para seguir a via do “ideal ascético”, olhando para lá desta vida, esperando calmamente pelo Céu; diferentemente, o homem do ressentimento desenvolve em si um brutal espírito de vingança. Que Nietzsche colocou como motor da cultura cristã, valorização extrema do “castigo” como redenção.[1] A moral torna-se, assim, inquisitorial e o sentido da vida passa a estar na morte, isto é, na não-vida, porque se deseja estúpida e infantilmente a Vida. Os terroristas actuais não inovam muito, continuam a reproduzir a fábula de La Fontaine onde a raposa diz que as uvas estão demasiado verdes depois de perceber que não as pode atingir, é a sua impotência em viver nas vidas possíveis do Ocidente (múltiplas e pouco constringentes, cheias de liberdade e, comparadas ao resto do mundo – não a projecções utópicas, importantes porque trazem esperança, mas perigosas quando usadas como critério de comparação acrítico –, de felicidade; é a Europa que os refugiados desejam, não a China, a Rússia ou América Latina, por exemplo), uma impotência da realidade que apela à vingança, lenta mas consistentemente desenvolvida. No seguimento de Nietzsche, Max Scheler fala do auto-envenenamento psicológico que tende a deformar o sentido dos valores, sobressaindo o desejo de vingança, o ódio, a maldade, a inveja, a estultice... No seguimento de Nietzsche e Scheler, Ludwig Klages utiliza a expressão Lebensneid (desejo de vida) para designar a forma mais virulenta do ressentimento, um apetite de Vida que passa pela destruição da riqueza vital de outrem. Num livro sobre Nietzsche (Die psychologischen Errungenschaften Nietzsche, 1926), Klages refere que o sentimento de cansaço ou de esgotamento nietzscheanos não designam especialmente o corpo, mas a inaptidão para o prazer, uma apatia crescente, impotência de envolvimento afectivo, isto é, a exclusão da vida exuberante e feliz. Esta circunstância leva os ressentidos a desligarem-se dos outros e deles próprios, hipertrofiando o sentido da Verdade para se redimirem por estarem fora da vida, e por isso a querem destruir.

VII Outra forma de explicar parte de tudo isto, enquanto tentativa, ensaio (versuch, como dizem os alemãs), é revisitar Freud e os seus Para Além do Princípio do Prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920)e Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur, “cultural” num sentido alargado, próximo do que Lévi-Strauss dirá ao contrapô-la a “natural”), procurando neles explicações para a vontade de destruição que contamina patologicamente os terroristas. Duas notas introdutórias: 1) na relação da psicanálise com a filosofia alemã próxima nos temas e conceitos, nomeadamente Kant, Schopenhauer e Nietzsche, aquela centra-se na especificidade humana, não no Homem enquanto animal, social ou metafísico; e o que a singulariza na sua humanidade é a maneira como se confronta, na vida e no pensamento, ao excesso constitutivo do prazer e do desprazer, a sua relação paradoxal. 2) Enquanto exercício clínico, a psicanálise não procura constituir uma qualquer visão do mundo (Weltanschauung), como dirá Freud em 1932 numa conferência sobre o tema: “Uma Weltanschauung é uma construção intelectual que resolve de maneira homogénea os problemas da nossa existência a partir de uma hipótese que determina tudo, onde, por conseguinte, nenhum problema fica por resolver e o que nos interessa encontra o lugar certo.” Apesar disso, talvez a psicanálise possa, diz ainda Freud, ligar-se a uma Weltanschauung científica e a psicologia individual advenha espontaneamente psicologia social, na medida em que o outro entra nas nossas vidas como cúmplice ou adversário. No entanto, Freud escreveu o Mal-Estar na Civilização em reacção à emergência do regime nazi, que, aliás, constituiu a sua Weltanschauung dando primazia ao natural sobre a cultural. O Mal-Estar é uma reflexão minuciosa que parte de conceitos analíticos para pensar o trágico da condição humana, reflectir sobre o mal-estar intrínseco a toda a civilização, sem o qual, paradoxalmente, não existiria humanidade. Algo que nem a psicanálise consegue resolver, o livro é também sobre os próprios limites desta ciência taumatúrgica, o mais que ela pode é transformar a miséria histérica em infelicidade banal. Uma das teses centrais é a de que para construir uma comunidade na qual se possa viver, o animal humano deve civilizar as suas pulsões (diga-se de passagem que a noção de “pulsão” passa de dois componentes em 1904, a “finalidade” e o “objecto”, para quatro em 1915, acrescentando-lhe o “ímpeto” e a “fonte”; mas no essencial Freud via na pulsão uma excitação de que não podemos fugir, cujo impulso é constante e constringente, seria, além disso, sempre de carácter sexual). A agressividade, traço indestrutível da natureza humana, ameaça constantemente a sociedade, como tinha mostrado em Totem e Tabou, a vida espiritual emerge no humano quando o homem disciplina e sublima a sua animalidade para a erigir em totem. A crueldade individual que desde sempre ameaçou o comunitário remonta ao mito da morte do pai, o pai de uma suposta horda primitiva: “É justamente o assento posto no imperativo ‘não matarás’ que nos dá a certeza que descendemos de uma linha infinitamente longa de assassinos que tinha no sangue o gosto do assassinato, como talvez ainda o tenhamos.”[2] Em Pulsão e Destino das Pulsões defende que o ódio é mais antigo que o amor, provindo da recusa do eu narcísico em dar o predomínio ao mundo exterior.[3] Mas as coisas não são tão simples e aquilo que motivou e motiva o movimento terrorista vive de contradições simultaneamente mais elementares e mais determinantes. Na verdade, a pulsão de morte, amplamente trabalhada por Freud em Para Além do Prazer, está estreitamente ligada ao princípio do prazer, e portanto às pulsões sexuais. A pulsão sexual, a própria essência de todo o movimento pulsional, contém Eros e Thanatos, a vontade de vida, de prazer, e a vontade de morte, de destruição. Diz Freud: antigamente, nos primórdios da humanidade, talvez antes da construção do primeiro totem, “A substância viva tinha ainda a morte fácil […] é verosímil que a substância vivente fosse assim facilmente recriada e morta, até ao dia em que as influências externas determinantes se transformaram, obrigando a substância que ainda sobrevivia a desviar-se cada vez mais do seu curso vital originário e a complicar cada vez mais esses mesmos desvios para atingir o seu objectivo: a morte.” Ora, o que os terroristas de Bruxelas, sósias de todos os outros, avatares da velhíssima humanidade que deseja matar o pai, que procrastina a construção do totem, quiseram foi, por caminhos pouco lineares, morrer. Passar ao inorgânico, num gesto que para eles representa a redenção pela Verdade. Claro que em torno disto houve motivações religiosas e sociais, mas creio que elas são secundárias. Se assim não fosse teriam atacado Igrejas ou Sinagogas e roubado bancos. Preferiram, pelo contrário, centros palpitantes de vida, de vida feliz, escolheram atacar Eros o mais directamente possível.

VIII O que fazer então? Pensar, continuar a pensar, para que não sejamos uma e outra vez surpreendidos por esta violência cega. Agir, continuar a agir, sobretudo de forma micro (as narrativas totais são perniciosas, já o sabemos), recompor alguns pequenos gestos do dia-a-dia, combater os preconceitos elementares que, de um lado e do outro, favorecem a incompreensão. Integrar melhor, claro. Mas também, porque isso não basta, controlar mais eficientemente as fronteiras exteriores à União (se há causas endógenas no jihadismo europeu, ele também se alimenta do caos do Médio Oriente), desenvolver as inteligências policias e judiciais, combater sem hesitação o tráfico de armas, construir uma estratégia comum europeia contra o terrorismo, reforçar o que de bom tem o nosso modelo social, evitar o desenvolvimento de bairros, vilas párias. E continuar democratas, isso é a Europa, único lugar onde, descontando algumas condições secundárias, os cidadãos se governam a si mesmos.

Mas acima de tudo é preciso que não deixemos banalizar a ideia de que o terrorismo veio para ficar. Não veio, não estamos perante um qualquer determinismo. Apesar disto, parece que estes atentados indignaram e entristeceram menos do que os de há pouco tempo em França, eu próprio demorei alguns dias a escrever sobre eles, enquanto nos anteriores reagi guiado por uma raiva discursiva bastante mais acusadora e inconformada, revoltada no sentido camusiano. Este sintoma de inevitabilidade deve, pois, ser combatido, não nos resignemos a que meia-dúzia de incivilizados (no sentido freudiano) definam parte importante do estilo de vida europeu. É por isso que devemos ser anti-terroristas.

 

 

[1] “Der Geist der Rache: meine Freunde, das war bisher der Menschen bestes Nachdenken; und wo Leid war, da sollte immer Strafe sein.” (Assim Falava Zaratustra II, “Von der Erlösung”).

[2] Considerações Actuais Sobre a Guerra e a Morte (Zeigemäßes über Krieg und Tod, 1915).

[3] Publicado em Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, 1910/17.