As Aventuras dos Senhor Lourenço II Acto (Lourenço e a Síndrome de Travis)

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Lourenço acredita na contingência, mas nem sempre se mantém fiel a essa crença, por vezes lá vem um pouco de providência, física ou divina, baralhar o seu amor ao acidental. Dir-me-ão que são necessárias algumas qualidades para ser céptico em relação ao destino, e que Lourenço, pelo que expus até agora, não tem essa virtude. Enganam-se, ele vale mais do que parece, nele pulsa uma irreprimível força heróica, basta que um bom acaso a estimule para passar, numa espécie de salto de tigre, de decadente a herói.

E tudo isto se conjuga porque o eu de Lourenço é um pouco mitológico, feito de apropriações a personagens de ficção, filmes, séries televisivas e literatura, Lourenço não vê ou lê para compreender, quer somente enriquecer, creio que inconscientemente, o seu eu mitológico. De todas as personagens que incorporou, há duas que se destacam: Dexter Morgan, representada por Michael C. Hall para uma série televisiva da Showtime, exibida entre 2006 e 2013. Um justiceiro que compensa as limitações do sistema policial e judicial fazendo justiça pelas próprias mãos, um psicopata de Antigo Testamento, cruel mas sobre-moral, que colocou o castigo justo acima de todas as coisas. Na mesma linha, identifica-se, recompondo todavia parte da personagem, com o angelismo justiceiro de Travis Bickle (Robert DeNiro, Taxi Driver, 1976). Lourenço quer curar o mundo, matando uns e ajudando outros. E quer isto há bastante tempo, o terrorismo prosélito devia ter reparado nele, mas a estupidez abunda do lado dos barbudos. Por outro lado, não o imagino a estilhaçar o corpo em nome de Alá, foi só uma forma de comparação.

A linha que o orienta, biológica no essencial, mistura desejo e prazer, a força pulsional visa o prazer, mas os caminhos para a sua realização são complexos, tortuosos, perigosos por vezes. É por isso que não é fácil interpretar aquilo que vos vou contar, peço por isso atenção e desinibição estética.

Lourenço perde muitas vezes as referências simbólicas mais elementares, chega a fazer uma interpretação estritamente poética dos nomes das estações de metro. Isto alimenta alguns dos pesadelos que emergem frequentemente na sua cabeça, o principal decide-se, ainda que enigmaticamente, no problema da individuação, do absurdo do seu eu se distinguir de todos os outros. Talvez porque a individuação é uma conquista recente nos seres vivos, porque reflectir sobre ela ainda é mais tardio, talvez porque Lourenço sempre foi considerado o banana da turma, ou que quase todos os colegas lhe trocavam o nome, talvez devido a um mistério empedernido, Lourenço não tem a certeza de quem é, e isso contamina toda a fixidez da realidade, daí compreender-se porque sai, ou entra, frequentemente na estação de metro errada.

Por estas ou outras razões – há um enigma insondável em cada acontecimento – no dia 15 de Fevereiro de 2017 Lourenço mudou para sempre a sua vida. Acreditem, caros leitores, que o que vou relatar não foge totalmente à verdade. Lourenço entrou na estação de metro do Campo Pequeno, como era habitual quando ia trabalhar, e preparou-se para as próximas 8 estações, até Odivelas. Encontrou um lugar sentado, coisa rara àquela hora da manhã, mas presumiu que brevemente teria de o dar a um qualquer ser humano mais fraco que viesse a entrar na carruagem. Ainda assim tirou um pequeno livro da pasta (creio que se tratava de mais uma interpretação de O Discurso do Método, agora em tom conspirativo, defendendo que Descartes, afinal, não acreditava em Deus). Subitamente deu-se uma travagem brusca, no limite do suportável para a velha carruagem. Muitas pessoas caíram, como se se tratasse daquela brincadeira com peças de dominó. Lourenço teve sorte, estava sentado no sentido inverso da travagem, mas ainda assim teve de amparar a senhora que ficou sentada à sua frente, fê-lo a custo, era muito peso. Depois de parar apagaram-se as luzes, ouviram-se alguns gemidos, mas não havia pânico. Até que pelo altifalante foram informados de que se tratava de um problema em Entre Campos e que por enquanto não havia energia na linha. Isto provocou um certo alvoroço, e as palavras habituais contra os funcionários públicos, que “muito ganham e pouco fazem”. O tempo passou, não havia comunicações móveis, as lanternas alumiavam alguma coisa mas estava bastante escuro. Os protestos foram aumentando de tom e começou a circular a hipótese de irem a pé até ao Campo Pequeno, a estação não devia estar longe. “Queres morrer electrocutado?” Respondiam os mais sensatos. “E tu, ficar aqui para sempre?”. Retorquiam os mais impacientes. Mais tempo passou, Lourenço pensava no comprovativo que tinha de pedir a um empregado do metro para justificar a falta na escola. Fora isso, estava bem, totalmente desresponsabilizado, não podia ser acusado de nada.

Uma boa hora depois chegou mais uma informação pelo altifalante: “o problema ainda não foi resolvido, pedimos aos senhores passageiros que desçam das carruagens e caminhem pela linha em direcção à estação anterior, Campo Pequeno, são apenas cerca de 400 metros e a segurança está totalmente assegurada, a electricidade foi desligada e não há circulação nesta linha.” Uns protestaram, outros dispuseram-se logo a iniciar a pequena viagem. Uma voz de homem assertiva tentou organizar a caminhada dos passageiros da carruagem do Lourenço: “quem tem lanternas de telemóvel vai a frente, talvez uma atrás, para não perdermos ninguém. Vamos lá, são 400 metros, não custa nada!” E de facto não custou, poucos minutos depois começaram a ver luz ao fundo do túnel. Quando chegaram à estação viram muita gente, o que parecia estranho. Lourenço foi dos últimos a subir para a plataforma e dirigiu-se para a saída do lado da Praça de Touros, preocupado com a justificação, devia haver muita gente a querer fazer o mesmo que ele. Distraído, acabou por chocar com as costas de alguém, pediu desculpas, e levantou a cabeça à espera de ver a cara do ofendido virar-se, mas isso não aconteceu. Foi então que notou uns fios que saiam da mochila e iam directos à mão da pessoa. “Que raio!”, pensou Lourenço. Em cerca de dois segundos a sua consciência ou o seu cérebro (ainda não se sabe bem), imaginou poder tratar-se de um terrorista, a avaria do metro podia ter sido também outra coisa, aqueles fios não faziam sentido. Ia dar o alerta, podia passar uma vergonha épica, mas se fosse verdade estava talvez prestes a morrer, ele e mais umas centenas de pessoas.

O que fazer então? Puxar o fio? Não, pode explodir. Gritar? Ele carrega logo no botão. É puxar, só pode! E assim foi, arrancou os fios da mão do indivíduo, ele virou-se, correspondia ao cliché do barbudo, tinha os olhos bem abertos para mostrar a surpresa e o terror (o terrorista apanhado pelo terror), começou a correr de costas até tropeçar e cair. Foi então que Lourenço gritou: – Bombista, cuidado bombista! Começou tudo a correr, afastando-se de onde vinha a voz, os gritos faziam eco e por isso nas gravações de vídeo vistas mais tarde parecia uma grande sinfonia de histerismo. Poucos segundos depois, no meio da estação ficaram apenas Lourenço e o presumível bombista. Lourenço estava petrificado, não sabia o que fazer, nem ele nem sequer o seu cérebro e o seu corpo. Ali estavam os dois, como nos filmes de Manoel de Oliveira, parados, um de pé outro deitado, embora com a parte de cima das costas e a cabeça levantadas. Lourenço teve a sensação de estar fora do tempo, talvez até o bombista já tivesse accionado o mecanismo e isto fosse a última imagem que a sua memória tinha gravado. Mas depois viu dois matulões aproximarem-se por detrás do barbudo, atirarem-se para cima dele e esmurrarem-no durante alguns minutos. Lourenço ainda estava parado, mas lá consegui dizer que já chegava. Tiraram então a mochila com cuidado e arrastaram o barbudo para uma das saídas. A polícia chegou, à frente um espantalho cheio de artimanhas anti-bomba. Não era preciso, estava tudo resolvido.

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