o puto da Bica

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emborrachado
com um maço de cigarilhas na mão
deu-se-nos a conhecer à porta da Casa Liège
“sou primo do Salgado” disse o velhote
“mas não vão pr'aí bradá-lo aos 4 ventos”
“é melhor não” respondi
nunca o vi sóbrio
e pensando bem
nunca o vi com um copo vazio -
de vez em vez entornava
um cochito ou outro -
nem tão-pouco o vi beber de empino
“eu sou o puto da Bica” respondeu
quando lhe perguntámos pelo nome
“toda a gente daqui me conhece
por puto da Bica”
puxou a cigarrilha até aos pulmões e num minuto
lá nos disse que se chamava Carlos
a minha amiga dava-lhe trela
um pouco mais de dois dedos de conversa
enquanto eu os ouvia com atenção
disfarçada
fazemos uma boa parceria
ali sentados nos degraus da Bica
somos dois bons comparsas
o equilíbrio certo
entre silêncio e rumor
entre euforia e disforia
entre vida e morte
“fui ter com o meu filho a Vilamoura”, contava-lhe a certa altura
“e já agora, deixe-me que lhe diga, querida,
os pastéis de nata ali não valem uma beata”
“pode dar-me uma cigarrilha” perguntei
“meu querido, este é o tabaco mais reles que
podes fumar”, respondeu mostrando-me os Chesterfield
“bom, ou isso ou o pastel”, retorqui
e lá me deu a cigarrilha e
meia dúzia de gotas de vinho branco
nas calças
“depois de uns quantos dias lá em baixo”, prosseguiu
“não tinha cheta para voltar,
e como o meu filho trabalha no casino
e percebe como tudo funciona ali dentro
disse-me «ouve, velho, é aquela a máquina que
te vai levar de volta a casa»,
e, meus queridos, parece mentira
mas aqui me têm,
venci a maldita da máquina”
o ascensor travava palmos abaixo de nós
num resmungo preguiçoso de Julho
recheado de turistas até às costuras
e o guarda-freios no derradeiro sisífico esforço
“isto é que é uma maravilha” disse o puto da Bica
olhando embasbacado para as estrangeiras que desciam do ascensor
com o copo inclinado em ameaça de
verter o vinho a qualquer instante
é um talento raro equilibrar ao mesmo tempo
a embriaguez e a volúpia
sem fraquejar
e nós cedemos sempre