Três poemas de Maria Celiza

Três Ovos

Águas profundas são as palavras de um homem (Pr 18, 4) 
 

Deixo os ovos a cozer, corto a salada. 
Pousada no balcão, a bíblia aberta deixa-me entrever certas palavras: 
‘águas’ ‘casa’ ‘resvalar’ ‘morte’. 
Vou lavando a alface coberta de terra, olho os ovos, 
Penso nas palavras como poços que vão dar às entranhas dos homens, 
Penso em suas águas sujas de tantas flores, de tanto cuspo – 
A sua profundidade deixa-me assombrada, mas só por um momento. 
Quebro a casca dos ovos e corto-os para dentro da salada, 
Olho à minha volta e percebo que toda a minha vida está submersa, 
Como um navio cuja rota ficou marcada no rosto de homens longínquos, 
Perdido no manto luminoso daquele que tudo fez para ser esquecido. 
Sento-me à mesa e como com a violência de uma criança

A Carpa

Às vezes vejo o teu rosto na janela
Como o de uma criança embaciando os vidros.
Procuro não olhar.
Eu estrebuchei tanto para nao ser tua filha,
Arrancada dos teus sonhos tenebrosos
Como uma carpa que quer morrer.
Não posso olhar o teu corpo cravado de anzóis,
Os teus olhos abertos como dois prédios vazios.
Não posso
E tenho o jantar para fazer.
Aqui vivemos segundo as tábuas da tua lei,
Mas já ninguém consegue olhar o teu rosto de cão pontapeado,
O teu cabelo desfeito pelos teus milenários tiques nervosos.
Comemos com os olhos no prato –
Desviá-los seria a morte de tudo.
À noite oiço os teus urros e danças solitárias no meio da neve.
Mas é tarde.
Fecho os olhos e, como os primeiros homens, aqueles
que ainda não conheciam a tua belíssima voz,
procuro não sonhar.

Junho 2017

As Flores de Hopper
 

Felizmente não te posso ver.
Se o teu rosto caísse sobre o mundo,
Teria a futilidade das flores -
Seria o campo de camélias e o dilúvio.
É melhor imaginar-te assim, terrível,
Espantando as aves nos Aliados,
Assustando os bêbados que descem o Carvalhido
Com a serpente revolvendo no intestino.
É sempre melhor imaginar que és tu que os aterras,
Que eles cambaleiam pelas ruas porque juram que te entreviram
Entre os urinóis do café.
É sempre melhor não te ver,
Pois só a tua voz transparente como os tigres de Borges
Nos pode dilacerar de tanta beleza.

Julho 2017