Discurso da Nobel da Literatura

Discurso proferido na receção do prémio Nobel por Annie Ernaux, 10 de dezembro de 2022.

Tradução de Victor Gonçalves a partir do texto publicado no jornal Le Monde a 7 de dezembro de 2022, aqui.

«Por onde começar? Coloquei esta pergunta dezenas de vezes à página em branco. Como se tivesse de encontrar a frase, a única, que me permitirá entrar na escrita do livro e resolver, de uma só vez, todas as dúvidas. Uma espécie de chave. Hoje, para enfrentar uma situação que, passada a estupefação do acontecimento — “Isto está mesmo a acontecer-me?” —, a minha imaginação me apresenta com um pavor crescente, é a mesma necessidade que me invade. Encontrar a frase que me dará a liberdade e a firmeza para falar sem tremer, neste lugar para o qual me convidam esta noite.

Esta frase, não preciso de procurá-la muito longe. Ela surge. Em toda a sua nitidez, a sua violência. Lapidar. Irrefutável. Foi escrita há sessenta anos no meu diário. “Escreverei para vingar a minha raça”. Ela faz eco do grito de Rimbaud: “Sou de raça inferior desde toda a eternidade”. Tinha 22 anos. Era aluna de literatura numa faculdade de província, entre raparigas e rapazes, muitos deles da burguesia local. Pensava, com orgulho e ingenuidade, que escrever livros, tornar-me escritora, no fim de uma linhagem de camponeses sem-terra, operários e pequenos comerciantes, pessoas desprezadas pelos seus modos, o seu sotaque, a sua falta de cultura, bastaria para consertar a injustiça social de nascimento. Que uma vitória individual apagaria séculos de dominação e pobreza, numa ilusão que a Escola já havia fomentado em mim com o meu sucesso académico. Como poderia a minha realização pessoal redimir o que quer que fosse das humilhações e ofensas sofridas? Eu não me colocava essa pergunta. Tinha algumas desculpas.

Desde que aprendi a ler, os livros foram os meus companheiros, a leitura a minha ocupação natural fora da escola. Esse gosto era mantido por uma mãe, ela mesma grande leitora de romances, entre duas clientes da sua loja, preferindo que eu lesse em vez de costurar e tricotar. O preço elevado dos livros, a desconfiança a que eram submetidos na minha escola religiosa tornavam-nos ainda mais desejáveis ​​para mim. Dom Quixote, As Viagens de Gulliver, Jane Eyre, contos de Grimm e Andersen, David Copperfield, E Tudo o Vento Levou, mais tarde Os Miseráveis, As Vinhas da Ira, A Náusea, O Estrangeiro: era o acaso, mais do que prescrições escolares, que determinava as minhas leituras.

Afastava-me todos os dias cada vez mais da escrita

A escolha de estudar letras foi a de permanecer na literatura, que se tornou um valor superior a todos os outros, até um modo de vida, que projetava num romance de Flaubert ou de Virginia Woolf e vivê-los literalmente. Uma espécie de continente que inconscientemente opunha ao meu meio social. E só concebia a escrita como possibilidade de transfigurar a realidade.

Não foi a recusa de um primeiro romance por duas ou três editoras — romance cujo único mérito era a procura de uma nova forma — que diminuiu o meu desejo e o meu orgulho. Foram situações da vida, na qual ser mulher pesava muito na diferença de ser homem numa sociedade cujos papéis eram definidos segundo o sexo, a contraceção proibida e a interrupção da gravidez um crime. Casada, com dois filhos, uma profissão de docente e o fardo da gestão familiar, afastava-me todos os dias cada vez mais da escrita e da promessa de vingar a minha raça. Não podia ler “a parábola da lei” no Processo de Kafka, sem ver nela a figuração do meu destino: morrer sem ter passado pela porta que foi feita só para mim, o livro que só eu podia escrever.

Mas isso não tinha em conta o acaso privado e histórico. A morte de um pai que perece três dias depois de eu chegar a casa de férias, um trabalho como professora em turmas cujos alunos vinham de origens populares semelhantes à minha, movimentos de protesto mundiais: tantos elementos que me trouxeram de volta por caminhos imprevistos e sensíveis ao mundo das minhas origens, à minha “raça”, e que dava ao meu desejo de escrever um carácter de urgência secreta e absoluta. Desta vez, não se tratava de me entregar a este ilusório “escrever sobre nada” dos meus 20 anos, mas de mergulhar no indizível de uma memória reprimida e trazer à tona o modo de existir dos meus. Escrever para compreender os motivos, dentro e fora de mim, que me afastaram das minhas origens.

Precisava de romper com o “escrever bem”

Nenhuma opção de escrita é evidente. Mas aqueles que, imigrantes, já não falam a língua dos pais, e aqueles que, trânsfugas de classe social, já não têm realmente a mesma língua, pensam-se e exprimem-se noutras palavras, todos se deparam com obstáculos suplementares. Um dilema. Sentem, de facto, a dificuldade, até a impossibilidade de escrever na língua adquirida, predominante, que aprenderam a dominar e que admiram nas obras literárias. Tudo o que se relaciona com o seu mundo de origem é um primeiro mundo feito de sensações, de palavras que descrevem o quotidiano, o trabalho, o lugar social. Por um lado, há a língua com que aprenderam a nomear as coisas, com a sua brutalidade, com os seus silêncios, aquela, por exemplo, do encontro face a face entre uma mãe e um filho, no belíssimo texto de Albert Camus Entre o sim e o não [capítulo da primeira novela do autor, L’Envers et l’Endroit, 1937]. Do outro, os modelos de obras admiradas, interiorizadas, aquelas que abriram primeiro o universo e às quais sentem dever a sua elevação, que muitas vezes consideram mesmo a sua verdadeira pátria. Nos meus estavam Flaubert, Proust, Virginia Woolf: [mas] quando chegou a hora de retomar a escrita, não me ajudaram. Tive de romper com o “bem escrito”, a bela frase, aquela mesma que ensinava aos meus alunos, para erradicar, expor e compreender a angústia que me atravessava. Veio-me espontaneamente o alarido de uma língua carregada de raiva e irrisão, até grosseria, uma língua de excesso, insurgente, muitas vezes usada pelos humilhados e ofendidos, como a única forma de responder à lembrança dos desprezos, da vergonha e da vergonha da vergonha.

Muito rapidamente, pareceu-me evidente — a ponto de não conseguir vislumbrar outro ponto de partida — ancorar a história da minha angústia social na situação que tive enquanto estudante, aquela, revoltante, à qual o Estado francês sempre condenou as mulheres, o recurso ao aborto clandestino nas mãos de uma fazedora de anjos. E queria descrever tudo o que tinha acontecido ao meu corpo de menina, a descoberta do prazer, a menstruação. Assim, nesse primeiro livro, publicado em 1974, sem que eu o soubesse então, foi definido o campo em que colocaria o meu trabalho de escrita, um campo simultaneamente social e feminista. Vingar a minha raça e vingar o meu sexo seria doravante uma só coisa.

Como não se questionar sobre a vida sem questionar também a escrita? Sem perguntar se ela reforça ou perturba as representações aceites e interiorizadas sobre os seres e as coisas? Será que a escrita insurgente, pela sua violência e irrisão, não refletia uma atitude de dominada? Quando o leitor era um privilegiado cultural, mantinha a posição de superioridade e condescendência relativamente à personagem do livro e da vida real. Foi, portanto, originalmente, para contrariar esse olhar que, lançado sobre o meu pai cuja vida queria contar, teria sido insuportável e, sentia-o, uma traição, que adotei, no meu quarto livro, uma escrita neutra, objetiva, “plana”, no sentido de que não continha metáforas ou sinais de emoção. A violência já não era exibida, vinha dos próprios factos e não da escrita. Encontrar as palavras que contivessem tanto a realidade quanto a sensação que a realidade proporciona tornou-se, até hoje, a minha preocupação constante na escrita, seja qual for o assunto.

O desejo de me servir do “eu”

Para mim, era necessário continuar a dizer “eu”. A primeira pessoa — aquela pela qual, na maioria das línguas, existimos, desde o momento em que sabemos falar até à morte — é muitas vezes considerada, na sua utilização literária, como narcisista quando se refere ao autor, que não se trata de um “eu” apresentado como fictício. É bom lembrar que o “eu”, até então privilégio dos nobres que contavam grandes feitos de armas nas suas Memórias, foi em França uma conquista democrática do século xviii, a afirmação da igualdade dos indivíduos e do direito de ser sujeito da sua história, como o reivindica Jean-Jacques Rousseau neste primeiro preâmbulo das Confissões: “E que ninguém objete que, sendo apenas um homem do povo, não tenho nada a dizer que mereça a atenção dos leitores. (…) Nalguma obscuridade que possa ter vivido, se pensei mais e melhor do que os reis, a história da minha alma é mais interessante do que a deles.”

Não foi esse orgulho plebeu que me motivou (embora…), mas a vontade de usar o “eu” — forma simultaneamente masculina e feminina — como uma ferramenta exploratória que capta as sensações, aquelas que a memória recalcou, aquelas que o mundo à nossa volta não cessa de nos dar, em tudo e sempre. Este pré-requisito da sensação tornou-se para mim ao mesmo tempo o guia e a garantia de autenticidade da minha pesquisa. Mas com que propósito? Para mim, não se trata de contar a história da minha vida nem de me libertar dos seus segredos, mas de decifrar uma situação vivida, um acontecimento, uma relação amorosa, e assim revelar algo a que só a escrita pode dar existência e transmitir, talvez, a outras consciências, outras memórias. Quem consegue dizer que amor, dor e luto, vergonha não são universais? Victor Hugo escreveu: “Nenhum de nós tem a honra de ter uma vida que lhe pertença.” Mas todas as coisas sendo vividas inexoravelmente de modo individual — “acontece comigo” —, só podem ser lidas da mesma forma se o “eu” do livro se tornar, de alguma forma, transparente e o do leitor ou leitora vierem ocupá-lo. Que esse “eu” seja, em suma, transpessoal, que o singular alcance o universal.

Assim concebi o meu compromisso com a escrita, que não consiste em escrever “para” uma categoria de leitores, mas “a partir” da minha experiência de mulher e imigrante do interior, da minha memória, doravante cada vez mais longa, dos anos atravessados, desde o presente, incessantemente provisores de imagens e palavras de outros. Este compromisso como penhor de mim mesma na escrita é sustentado pela crença, que se tornou certeza, de que um livro pode contribuir para mudar a vida pessoal, para quebrar a solidão das coisas sofridas e recalcadas, para se pensar diferentemente. Quando o indizível vem à tona, é político.

A forma mais violenta e mais arcaica

Vemos isso hoje com a revolta dessas mulheres que encontraram as palavras para inquietar o poder masculino e se ergueram, como no Irão, contra a sua forma mais violenta e arcaica. Escrevendo num país democrático, continuo, porém, a questionar-me sobre o lugar ocupado pelas mulheres, inclusive no campo literário. A sua legitimidade para produzir obras ainda não está adquirida. Existem em França e em todo o mundo intelectuais masculinos para quem simplesmente não há livros escritos por mulheres, nunca os citam. O reconhecimento do meu trabalho pela Academia Sueca é um sinal de justiça e esperança para todas as escritoras.

Ao trazer à tona o indizível social, essa interiorização das relações de dominação de classe e/ou racial, também de sexo, que é sentida apenas por quem é seu objeto, há a possibilidade de uma emancipação individual, mas também coletiva. Decifrar o mundo real despojando-o das visões e dos valores que a língua, qualquer língua, carrega, é perturbar a ordem estabelecida, perturbar as hierarquizações.

Mas não confundo essa ação política da escrita literária, condicionada na sua receção pelo leitor ou leitora, com as posições que me sinto compelida a assumir em relação aos acontecimentos, conflitos e ideias. Cresci na geração do pós-guerra, onde era natural que escritores e intelectuais se posicionassem relativamente à política francesa e se envolvessem nas lutas sociais. Ninguém pode dizer hoje que as coisas teriam sido diferentes sem as suas palavras e os seus compromissos. No mundo atual, no qual a multiplicidade das fontes de informação, a rapidez da substituição das imagens por outras acostumam a uma forma de indiferença, concentrar-se na sua arte é uma tentação. Mas, ao mesmo tempo, assiste-se na Europa — ainda mascarada pela violência de uma guerra imperialista travada pelo ditador que governa a Rússia — a ascensão de uma ideologia de ensimesmamento e fechamento, que se alastra e ganha cada vez mais espaço nos países até agora democráticos. Fundada na exclusão dos estrangeiros e imigrantes, no abandono dos economicamente débeis, na vigilância dos corpos das mulheres, impõe-me, a mim, como a todos aqueles para quem o valor do ser humano é o mesmo, sempre e em todo o lado, um dever de vigilância. Quanto ao peso do resgate do planeta, em grande parte destruído pelo apetite do poder económico, não pode pesar, como é de se temer, sobre os que já estão na miséria. O silêncio, em certos momentos da história, não é apropriado.

Uma vitória coletiva

Ao conceder-me a mais alta distinção literária que existe, é um trabalho de escrita e uma pesquisa pessoal realizada na solidão e na dúvida que aparecem na grande luz. Ela não me deslumbra. Não considero que a atribuição do prémio Nobel a mim seja uma vitória individual. Não é orgulho nem modéstia pensar que se trata, de alguma forma, de uma vitória coletiva. Partilho o meu orgulho com aqueles e aquelas que, de uma ou de outra forma, querem mais liberdade, igualdade e dignidade para todos os seres humanos, independentemente do seu sexo e género, da sua pele e da sua cultura. Os que pensam nas futuras gerações, em salvaguardar uma Terra que a ânsia de lucro de um pequeno número continua a tornar cada vez menos habitável para o conjunto das populações.

Se olhar para trás, para a promessa feita com 20 anos de vingar a minha raça, não saberei dizer se a cumpri. Foi dela, dos meus antepassados, homens e mulheres duros, com tarefas que os fizeram morrer cedo, que recebi a força e a raiva suficientes para ter o desejo e a ambição de lhe abrir espaço na literatura, neste conjunto de múltiplas vozes que, desde muito cedo, me acompanhou, dando-me acesso a outros mundos e outros pensamentos, inclusive ao de me rebelar contra ela e querer modificá-la. Registar a minha voz de mulher e de trânsfuga social naquilo que se apresenta sempre como um lugar de emancipação, a literatura.»