Putin: a loucura da nostalgia imperialista

Traduzo um texto de Michel Eltchaninoff publicado na revista philosophie magazine, 21 de março. É sobre as alucinações maléficas de Vladimir Putin, alimentadas por pulsões e narrações do tempo da URSS.

«Desde a invasão da Ucrânia tenho, por vezes, a impressão, ao ouvir Vladimir Putin, de que ele regressou à infância. Este homem, nascido em 1952, Leningrado, fala cada vez mais da forma como se fazia na URSS. Isso marcou-me logo a três de março, quando reconheceu publicamente baixas humanas na sua “operação especial”. Debitou aí uma narrativa de guerra canónica. Contou a história sacrificial de um jovem oficial do Daguestão, Nourmahomed Engelsovitch (sic) Gadjimhomedov, que “ferido, se bateu até ao último sopro de vida e fez explodir com uma granada os soldados que o cercavam, matando-se no ato. Foi até a este extremo porque soube a quem fazia frente: neonazis que humilham os prisioneiros e os matam selvaticamente.” O presidente russo ressuscita as narrativas de guerra que embalaram a sua infância — recompondo a realidade.

Quarta feira, 16 de março, Vladimir Putin carregou noutra tecla, também ela clássica, do teclado soviético: a denúncia dos traidores vendidos à burguesia imperialista. Diante do governo e dos representantes das regiões, voltou às sanções ocidentais. Para lhes fazer frente, cada um deve participar na economia patriótica do putinismo. O presidente deplora a existência de uma “quinta coluna” composta de “nacionais-traidores” que “ganham o seu dinheiro aqui mas vivem acolá, nem sequer num sentido geográfico, mas nos seus pensamentos, na sua consciência de escravos.” Visa simultaneamente os oligarcas, que poderiam ter a tentação de não apoiar o esforço de guerra, mas também a oposição democrática, “que está, na sua cabeça, além”. Ataca “esses que possuem uma moradia em Miami ou na Côte d’Azur, que não conseguem viver sem foie gras, ostras e pretensas liberdades de género.” É quase um Maïakovski, poeta futurista dos anos de 1920: “Come ananás, mastiga perdizes / chegou o teu último dia, burguês!” Vladimir Putin ameaça os novos russos e quem ousa manifestar-se contra a guerra: “O povo russo saberá sempre distinguir os verdadeiros patriotas do lixo e dos traidores, cuspi-los-á muito simplesmente como insetos absorvidos sem querer.” Poético. Putiniano, mas de tendência hardcore. Completamente leninista, também. Foi Alexandre Soljenitsyne quem recordou, no Arquipélago do Gulag (1973), que o líder bolchevique tinha, também, queda para metáfora entomológica. Num artigo de 1918, afirmava que o objetivo da revolução era a de “limpar a terra russa de todos os insetos nocivos.” De quem falaria? Soljenitsyne admite ser impossível “proceder a um estudo exaustivo dos casos incluídos nesta larga denominação de insetos”. A lista seria muito longa, dos professores de liceu aos padres. E segundo Putin? Por enquanto, aponta para as grandes fortunas e a oposição democrática. Mas e amanhã? Acabo de ler no Telegram que os professores que saíram da Rússia mas continuam a dar aulas à distância vão ser demitidos. Quanto aos padres que se opõem aos delírios metafísico-homofóbicos do patriarca Cyrille, são considerados traidores. Foram lançadas as primeiras acusações por “falsas informações” sobre o conflito. Quais serão as seguintes, na lista dos “insetos” a “cuspir”? Irá Putin iniciar repressões em grande escala, nacionalizar empresas, montar uma economia de subsistência, tentar reconstruir uma lógica de blocos, fechar o país, como no tempo da URSS? Nada é impossível, desde que se iniciou a sua aventura bélica na Ucrânia, parecendo embriagar-se com a gesta soviética — acrescentando-lhe uma pincelada de religiosidade e uma exaltação imperial à maneira dos Tzars.

Quem poderia esperar isto, trinta anos depois da URSS autocolapsar? Talvez a escritora, e Prémio Nobel, da literatura Svetlana Alexievitch, cujo livro O Fim do Homem Soviético [extraordinário], em 2013, me retirou do sono histórico. Dando a ler a voz de cidadãos soviéticos banais, ela exprimiu o desatino de milhões de pessoas normais espantadas por acordarem, no início dos anos 90, num mundo que já não era o delas. Em russo, o seu livro chamava-se, aliás, “Uma época de segunda mão”. Antes de toda a gente, a escritora bielorussa, que na época fui visitar a Minsk, tinha apreendido a irreprimível nostalgia do país natal. “O soviético é um bom homem, era capaz de ir à Sibéria, no meio do nada, em nome de uma ideia, e não por dólares.” Hoje, Vladimir Putin faz reviver esse mito, mas numa repetição trágica e sangrenta, contra o “povo irmão” ucraniano. Ele que proibiu qualquer trabalho de memória sobre o século soviético, reativa este último num gesto simultaneamente demiúrgico e suicidário. Faz-me pensar no que dizia o grande dissidente polaco Adam Michnik, que passou vários anos nas prisões do regime. Quando lhe perguntavam o que havia de pior no comunismo, respondia: “O que acontece depois”. Estamos lá.»