Livrarias ou Bibliotecas?

Eu (é um outro), durante um café filosófico na livraria Snob

Ontem, encontrei um apontamento que guardei da revista Philosophie magazine, creio que pertence a um dos cronistas residentes, mas não tenho a certeza (as web-pesquisas foram infrutíferas). Costumo revisitar as ideias que me vão marcando, sei que sou o resultado, dentro e fora da minha memória, daquilo que elas compuseram na rede psicobiológica que ampara as linhas de inteligibilidade. Muitas, em modo de corsário ingénuo, recuperei-as de mentes muito mais avisadas, como a de Nietzsche, do que eu. Notas pausadas ou fulgurantes, profundas ou superficiais, complexas ou simples, únicas ou sujeitas a um ecossistema discursivo, verbais ou imagéticas, também os sons, a música que, para Schopenhauer e outros, revela, não sem perigo, o âmago do mundo. Tudo isto forma a minha biblioteca de sentidos, um arquivo que vai orientando uma cosmovisão (nunca fixa), várias motivações, por vezes contraditórias, e também alguns imperativos. Um solo que não evita, e até alimenta, uma certa imperfeição grosseira, e por isso me projeta para o futuro em modo, nem sempre inteligente, de autossuperação. Posso dizer que me vou tornando «naquilo que sou» (percebi finalmente esta sentença nietzschiana), sem esperança, nem receio (oh, os meus amigos estoicos! Lamento todos os dias que não tenham derrotado à nascença o cristianismo).

Por tudo isto, mas não apenas por isto, há muito que me apaixonei por bibliotecas e livrarias, são os meus templos de ascese. Da biblioteca da Gulbenkian numa cidade bafienta de Trás-os-Montes à da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Da livraria Buchholz à Snob, passando pela FNAC do Chiado. Conheço poucas no estrangeiro, apesar de ter viajado bastante. Talvez signifique que o fetiche se fica pelos livros, os livros que posso ler (em diferentes línguas, é verdade, mas sobretudo em português, é esta a minha língua preferida (uma escolha?), apesar de ser capaz de pensar em francês, castelhano e quase em inglês e alemão). Não é, pois, o esplendor do local, mas os livros o que mais me interessa. E muitos, cada vez mais, são em grande parte projetos de leitura, não há tempo para tantas conversas impressas, conversas que fazem vibrar membranas da alma, não levo livros que ambicionem menos. Mas nenhum fica por folhear até encontrar uma página, um capítulo capaz de incendiar a razão, e quase nunca deixo de pegar fogo.

Vejamos o que anotei (sem autor, um descuido que não é comum) sobre a diferença entre livrarias e bibliotecas: «gosto mais das livrarias do que das bibliotecas. As livrarias obrigam-nos a confrontarmo-nos com tudo o que devemos ler, enquanto as bibliotecas nos convidam a ler tudo o que queremos ler. Umas sentam os corpos debaixo de candeeiros de secretária como manjedouras de cultura, outras abrem horizontes e põem em movimento. Se a livraria é essencial, não é apenas pelas coisas essenciais que vende, é porque aí se encontra o que não se estava à procura. E, por vezes, encontra-se porque alguém, um livreiro por exemplo, tal como eu tento fazer ao partilhar convosco as minhas leituras na revista Philosophie magazine, vos diz: “Toma, devias ler isto, deve interessar-te, agradar-te...”. Se as livrarias são essenciais, é porque, tal como o sentido de beleza de Kant, tornam os livros universalmente comunicáveis.»