Philip Roth e o niilismo

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“Here, where men sit and hear each other groan;

Where palsy shakes a few, sad, last grey hairs,

Where youth grows pale, and Spectre-thin, and dies;

Where but to think is to be full of sorrow...

John Keats, “Ode to a Nightingale”. Epígrafe a Everyman, de Philip Roth (Todo-O-Mundo, Dom Quixote, 2007).

Deste “operário” da ficção disse o The New Yorker: “There have been few artists in modern times more single-mindedly devoted to their work than Philip Roth. His level of sustained literary production, from his early twenties to his mid-seventies, has been almost as astonishing as the work itself. For much of his life, Roth has lived alone, in rural Connecticut and in Manhattan, spending long days at his desk—a standing desk, the better to spare his back. The books, from “Goodbye, Columbus” to “Nemesis,” seemed to issue forth every year or so. And there was no diminishment, only change.” (2012)

Roth parece ter deixado de escrever, voluntariamente: entrevista ao Les inRocks, também de 2012: “je n’ai pas l’intention d’écrire dans les dix prochaines années. Pour tout vous avouer, j’en ai fini. Némésis sera mon dernier livre.” Porquê? Tem medo de escrever trivialidades e quer dedicar-se a reler os seus autores preferidos (“Dostoievski, Tourgueniev, Conrad, Hemingway...”) e a si próprio (em regressão cronológica, numa espécie de linha de rejuvenescimento que o avaliará como escritor, a única coisa que soube ser com alguma qualidade, depois de um enamoramento precoce, que não soube romper, pela literatura). Mas também porque quem escreve, for real, passa o tempo a duvidar, a recomeçar, a duvidar novamente, para voltar a recomeçar, numa processo quase-sisífico de auto-correção. E Roth diz estar cansado de “todo este trabalho”. De qualquer forma, admite uma biografia, controlada para que tenha apenas 20% de mentiras. Aliás, nesse ano, dentro deste estilo, escreveu à Wikipedia, via The New Yorker, para exercer o direito de corrigir certos dados sobre The Humain Stain; sem sucesso, acharam-no, enquanto autor, pouco credível (sintomático da velha “morte do autor”).

A epígrafe que escolheu para Everyman justifica mais bem a pequena introdução de Neely Kaprièlian à entrevista do inRocks (“a doença e a morte não têm qualquer sentido. Nemésis move-se como um grande e belo texto metafísico sobre a ideia do azar e da responsabilidade na vida de cada um”) do que o próprio Roth (“sempre que uma conversa chega à metafísica ou à filosofia, adormeço”, “não escrevo livros filosóficos”). Interessa-lhe contar histórias fazendo a experiência do “What if?”, e se, por exemplo, tivesse havido a sorte ou o azar de... Porque tudo na “vida é uma questão de sorte ou de falta dela”. Há, porém, mais qualquer coisa, uma espécie de estruturalismo camuflado que decide algumas invariantes, como a do “casamento conduzir directamente à castidade” ou a do seu judaísmo desviante (alguns apelidam-no de anti-semita) remontar à primeira infância.

Mas a escolha inspirada do poema de John Keats serve também para introduzir o horizonte de desânimo que assola a Europa. Começamos a viciar-nos numa ética e estética do queixume, linha de decadência que rasga o mais íntimo da nossa vitalidade. Somos velhos mesmo quando somos novos, morre a juventude, diz Keats, morre bem depressa soterrada pelos preconceitos e o derrotismo que assimila às pazadas, por vezes em ingénua felicidade. E por isso temos cada vez mais dificuldade em pensar possibilidades de sentido fora do eterno lamento, uma melancolia estéril.

Pelo contrário, Roth é um niilista que faz emergir a redenção pela transmutação da negatividade em positividade. A morte, a velhice e a doença, trilogia habitual dos seus escritos, são trampolins para as forças estóicas que iluminam os horizontes de vida com a bela inevitabilidade, transformando até certo ponto o azar necessário da degradação humana, física, moral e cognitiva, numa afirmatividade próxima do nietzscheano “foi e é assim porque eu o quis!”. Desta forma, a epígrafe de Keats tem nele uma função hermenêutica bem diferente da que dei ao estado da arte europeia.