Florzinhas de Estufa

São tudo saudades, portugal, ou memória curta,

Esse ódio carunchoso a tudo o que é outro,

Mais frágil quando na verdade igual, porque há estrangeiros

E estrangeiros, a uns beija-se o cu de bom grado,

Com olho no que brilha, tentam espremer-se ao máximo

Os barracos e as ruínas, o very typical, o provincianismo

Urbano como autenticidade, sempre orgulhosos

Do grandioso passado de descobridores do descoberto,

Sem nos dignarmos a esconder os nomes das ruas

Da vergonha, esclavagistas que detestamos quem

Nos alimenta a preguiça e a boa vida,

Adoradores de chico-espertismo e chauvinismo,

Racistas por ódio ao próprio sangue, machistas por sensibilidade

E tradição, não há maior florzinha de estufa que um fascista,

Tudo o incomoda, o pior é a paz dos outros, a felicidade então,

Deixa-o cego de raiva, só o eu está certo, cego, virado para dentro,

Se pudesse enrababa-se a ele mesmo e tinha pequenos

Clones fascistas, o outro é tudo o que está mal na sua vidinha,

Para quem só vê o próprio umbigo, esquece-se de olhar o espelho

E ver que o problema, na verdade, está nele, fechado

Na saudadezinha com cheiro a mofo, criando a realidade

Mentira a mentira, esfolando um pobre bode de cada vez,

Até que, sem se dar conta, no fim, só sobra ele e a faca na mão

Do adorado líder, o tal que dizia as verdades ou o que se queria ouvir,

Até ser a hora de se tornar, inevitavelmente, também ele no outro,

E afinal, a falange que julgava ser, apenas mais carne para canhão.

 

11.06.2025

 

Turku

 

Recurso e Pobreza, lançamento

«Je cherche en même temps l’éternel et l’éphémère»
(Georges Perec)

 Hoje, celebramos essa coisa estranha, incompatível com qualquer teoria evolucionista ou criacionista, a que chamamos poesia, cujos jogos de linguagem resultam dos desvios, amplamente tolerados, mas não excessivamente aleatórios, às normas linguísticas, que, aliás, ajudaram a constituir. É assim que se autoriza o poeta a decidir onde termina uma linha, onde põe maiúsculas ou como usa a pontuação. Pode até grafar onomatopeias e fazê-las produzir sentido. Por outro lado, como um poema raramente vem com um contexto pronto a usar, o leitor ainda possui uma grande margem de ação. O sentido final, mas nunca fixo, de um poema é, portanto, uma aventura hermenêutica, uma pontaria afinada sem alvo, para a qual é necessário invocar os grãos de loucura do próprio Hermes. É por isso que Terry Eagleton nos avisa de que «A poesia é a mais complexa forma de discurso imaginável.» (Como Ler um Poema). E, na recôndita metafísica da Floresta Negra, Martin Heidegger descobre que ela é a própria morada (Heimat) do Ser, a única via de acesso às coisas mesmas que aparecem no ente.

 O que faz, então, aqui um pobre diabo que dedica mais tempo a ensinar, escrever e ler filosofia — embora não seja um escravo acrítico do racionalismo instrumental —, a jogar ténis do que a imergir na constelação da linguagem com o máximo poder demiúrgico; espaço-tempo onde o caos se ordena e a ordem se caotiza, onde a vitória na desordem é mais importante do que uma folha de Excel? Só pode ter sido uma decisão pharmakon: da Tatiana em convidar-me; de mim em aceitar. Aqui estou eu… sugerindo um pedido de piedade, como faziam os extraordinários Gregos para amansar o auditório. Tatiana, antes tivesses escolhido um crítico universal, desses que medram com facilidade na nossa terra, e sabem incendiar o público, porque há anos que cospem fogo, que boxeiam no vazio; que, como nos alertou Nietzsche, são feiticeiros que em vez de criarem algo a partir de nada, criam o nada a partir de algo, deixando, por onde passam, um rasto radioativo. Mas se me escolheste — no que isso teve com certeza de fortuito — foi também porque tu própria admites que os teus poemas não ofendem: «às vezes os meus poemas cometem esta grande falha / pela qual queria pedir antecipada desculpa / não ofendem ninguém» («catástrofes a sério»).

 Conheço Tatiana Faia há anos, li todos os seus livros, muito dos seus textos, ouvi bastantes dos seus discursos e, sobretudo, conversei várias vezes com ela sobre tantas coisas humanas, demasiado humanas; sei, portanto, porque gosto dela. Não será principalmente pela sua pureza (que, aliás, sou incapaz de calcular, ao contrário de tantos neotorquemadas que por aí pululam) mas sim pela sua complexidade. Que se reforça com Recurso e Pobreza, o livro da Tatiana que mais me marcou, e que, em todos os dias dos últimos dois meses, me queimou um pouco mais. Não porque fosse o último e tivesse evoluído darwinisticamente, mas porque nele o seu olhar, atento ao interior e ao exterior, se interessou mais do que costume pelas estrias, por vezes minúsculas, que ligam e desligam as membranas da vida. Um olhar acompanhado por recursos estilísticos que lhe oferece as lentes apropriadas a cada circunstância; não para abarcar tudo, mas para pairar sobre o que mais importa.

 Vou agora, com as devidas reservas, expor algumas linhas da minha leitura de Recurso e Pobreza. Utilizarei apenas uma vez a enumeração, porque depois de assistir ao lançamento de um livro (também ele de poesia), no qual a lançadora — investigadora científica e moral muito promissora — esquartejou a obra com uma tática impiedosa de quatro vezes quatro enumerações (truque que agora deve ensinar nas mais altas esferas da academia vocacionada para a congelação), prometi vigiar com rigor as minhas tendências taxonómicas. Contudo, não posso fugir à evidência de uma geopoesia: quase todos os poemas deste livro têm a marca do tempo e do lugar, do Genius temporis e do Genius loci. Tatiana Faia assinalou o mês e ano, o lugar ou os lugares: tempo presente e tempo ausente, o da durée, desdobrado no interior do sujeito poético e do poema; lugares presentes e ausentes, visíveis e invisíveis, um vasto mundo virtual que, por exemplo, nos permite comprovar que uma rua é uma rua, ou melhor, que uma certa rua está em devir-rua. É por isso que talvez possamos entender a sua poesia como um prolongamento do olhar (que, no entanto, quando observa se sabe observado); sentir, num pequeno vislumbre, que a Tatiana deseja, creio, ser lida com uma hermenêutica menor que se aninhe na sua visão. E se o seu olhar abre e fecha observações, o que realmente importa é a duração e o meio, não onde começa ou acaba, mas a viagem entre esses dois pontos, que são sempre imaginários. («caminhamos pelas montanhas / como se pudesse regressar do abismo / tu à frente, eu atrás / tu com uma corda às costas / calças curtas, uma camisola de malha / às vezes perdes-te à minha frente no trilho / pelo nevoeiro, o azul / da tua camisola confunde-se / com o cinzento da montanha / e eu chamo o teu nome / um som em perfeita queda / como a água ou a noite descendo / aguçada sobre os penhascos». «antonia»).

Um olhar que nos ensina a ver, ou melhor, já que depois de Sócrates deixou de existir boa pedagogia, nos convida a acompanhá-la, numa cumplicidade que acrescenta mundo ou que testa as suas próprias intuições. Um com-observar que não garante, contudo, um final feliz: às vezes podemos prosseguir o caminho a coxear. Não se trata, pois, de edificar, de extrair o excecional do vulgar, mas de uma sagração do existente. Talvez só assim se inventem novas possibilidades de vida: transmutar os sistemas de adversidade em sistemas de oportunidade, visto que o viver deve ser mais autoafirmação do que conservação. Mesmo se, nos tempos que correm, quase nenhuma odisseia possua a sua Ítaca, não parecendo haver nenhuma utopia disponível.

Tatiana Faia deseja saber o que é o humano, espantando-se tanto com a sua perfídia quanto com a sua bondade. Parece que tudo o que é humano lhe é estranho, estímulo constante para a passagem da curiosidade ao discurso, poético ou outro. O seu poema «a lição» é o exemplo acabado disso. Mas há muitos outros fragmentos para uma antropologia poética, por exemplo: «o ódio nas terras pequenas / não se rarefaz como nas cidades / chega até à mais ínfima partícula do sangue / mata por calor, irracionalidade / e uma pobreza partilhada / com uma impaciência / que reconhece de olhos fechados / que as múltiplas intrigas / se podem esvair num ápice / perante a mais perfeita crueldade da terra» («história quase apócrifa dos mortos em armeni». No final, estamos certos de que Tatiana está à altura das coisas, dos homens e dos semi-deuses.

Essa necessidade de apaziguar o espanto através da compreensão, da semi-compreensão, obriga a observar o mundo sensível. Será, então, uma poesia fenomenológica. Com ela, traçamos linhas sobre o caos e arrumamos um pouco o nosso espaço mental. Entendemos melhor o crime e castigo das «mãos sujas», o desespero de um curador com génio organizador a mais para a arte disponível, a pressão mortífera da paixão, a falsa beleza dos abismos ou o valor de «mil pesetas». Mas, muitas vezes, trata-se de uma fenomenologia lírica, o que só acrescenta força à observação. Noutras situações, o olhar da Tatiana detém-se em experiência que ainda não aconteceram. Potência pura e capacidade de reinvenção: a poesia da Tatiana ajuda-nos a mudar de pele — talvez mais do que o amor, o trabalho, a guerra ou a amizade — porque nos fornece amostras de outros mundos.

Apesar disso, as palavras parecem estar acima do tempo: «mas seria uma desculpa fácil dizer / que as palavras por que vivemos / não nos podem erguer acima / do tempo / breve de uma vida humana» («as mãos dos poetas»). Acima do tempo, mas não fora do corpo: «para que sopro a sopro, palavra a palavra / lentamente te recordes / de que a terra nos usa todos os dias» («ver pior ao perto»).

 Deixem-me realçar a arte do contrapé, que Tatiana Faia pratica com a desenvoltura de quem prefere os impasses, as hesitações à linha reta. Desde o aparecimento da cultura da ilusão e da criação do espetador estético, conhecemos o valor das peripécias, tanto que a maioria delas já foi codificada. Mas a Tatiana introduz a perplexidade ao nível micro, não na estrutura do poema, mas dentro ou entre os versos, no lugar onde habitualmente encontramos continuidade. Isso permite-lhe transubstanciar as palavras (a favor e contra os formalistas russos: tudo pode ser outra coisa, os sentidos articulam-se, imbricam-se, mas também se contradizem e digladiam). Por exemplo: «apaixona-te / mas com o ritmo certo / lentamente / é muito importante / que não seja com demasiada intensidade / e demasiado depressa» («poema sobre como queimar a ferida e passar a viver melhor nas cidades». «que não te menti quando te disse / que te quis mais até do que me diverte estar vivo» («anunciação, filippo lippi, ca. 1453»).  «estou a abrir todas as janelas / para deixar entrar a noite / e há muito que nada / do que me acompanha / é uma educação» («onde»).

A sua poesia contém também uma preocupação com o logos partilhado, com o diálogo. Nos Gregos aprendemos que o pensamento é relacional, que ninguém pensa realmente sem ser incitado a isso — forçado pelos fenómenos, mas sobretudo pelo logos de outrem. Em vários poemas, o sujeito poético dirige-se a alguém, mais ou menos real, a outrem a posteriori ou a priori. («é verdade, gabriel, sou vulgar / porque sou voraz como o mundo» «anunciação, filippo lippi, ca. 1453»). Deste princípio surge um estilo que a distancia daquela poesia que se arroga o direito de acrescentar à realidade suplementos de metafísica, para a encaixar, à força se for preciso, nas grelhas do bem e do mal, da verdade e da mentira ou da pureza e da impureza. A poesia da Tatiana mantém-se no mundo mediano, onde raramente medram os presunçosos e os imbecis: um espaço que não pretende ser centro, constituído por periferias, nas margens da poesia-sol.

Não havendo poeta que se preze que não experimente algum exercício de metapoesia, procurámos, quase em vão, neste livro esse dispositivo tão apreciado (seria interessante psicanalisar este autorreconhecimento). E quando o encontrámos (em «as constelações» e «catástrofes a sério»), fomos surpreendidos por uma espessa camada de ironia. Em vez de nos revelar os segredos do ofício ou os fulgores semidivinos dos poetas que são «meia-noite porque querem», os poemas indicam as mil e uma maneiras de um poeta morrer ou os falhanços do ofício — evanescências banais, como a de qualquer outro mortal. Pior ainda, porque a expetativa era de uma certa grandeza: libertar uma alma um pouco mais redonda do que a média.

Por tudo isso, aceitamos que à nossa atual falta de sede, se contraponham os dois últimos versos do poema «os protestos»: «temos cada vez mais sede / e há cada vez menos água». Assim, conclui-se que os poemas sobrevivem às tragédias que descrevem ou sugerem, o que fica comprovado pelo apelo desesperado, mas justíssimo, depois de Auschwitz, para se deixar de escrever poesia. Ainda bem que sobrevivem: como poderíamos mudar de vida sem eles?

Nietzsche, Entre Amigos

Entre 1882 e 1884, Nietzsche redigiu um dos seus mais belos poemas. trata-se de um hino à felicidade e à amizade, à vida que vale a pena ser vivida como um incêndio que consome as paixões tristes.
A tradução é de Victor Gonçalves e integra a nova edição de Humano, demasiado Humano, a publicar em breve pelas Edições 70.

ENTRE AMIGOS
UM EPÍLOGO

1.

Belo é calar-se juntos,
Mais belo ainda rir juntos,
Debaixo do pano sedoso do céu,
Encostados ao musgo e à faia,
Amavelmente rindo com os amigos
E mostrar os dentes brancos.

Se o fiz bem, então calemo-nos;
Se o fiz mal — então riamos
E façamos sempre pior,
Fazer pior, rir pior,
Até ao fundo do poço.

Amigos! Sim! Assim será?
Ámen! E adeus!

2.

Nada de desculpas! Nada de perdão!
Concedei, vós os felizes, de coração livre,
A este livro irrazoável,
Orelha e coração e abrigo!
Acreditai-me, amigos, a minha desrazão
Não foi maldição!

O que eu encontro, o que eu procuro —
Esteve alguma vez num livro?
Honrai em mim o grémio de dementes!
Aprendei com este livro demencial,
Como a razão vem — «para a razão»!

Então, amigos, assim será?
Ámen! E adeus!

Mal-Estar na Civilização, Café Filosófico

O Victor, moi même (qui est un autre), no café filosófico da livraria Snob, Lisboa, a atirar setas conceptuais

Texto de divulgação:

Escolhemos pensar o mal-estar em geral a partir de um mal-estar específico: o da civilização, ou da cultura. Freud, o autor-totem deste café filosófico, podia separar o nosso mal-estar do bem-estar da natureza. Nós, pelo contrário, estamos quase obrigados a pensar um planeta inteiro, o orgânico e o inorgânico simultaneamente, atingido por uma doença mortal. Mas, como sugere Descartes, temos de dividir o problema nas partes que o constituem (continua a ser um método válido, desde que haja, depois, articulação entre os diferentes campos), começando, talvez, pelo mais urgente: o predomínio das paixões tristes.

Trump conseguiu sacudir o mundo com uma cartolina. Também, talvez sobretudo, porque não temos os pés assentes em terra firme. Não naquela que prende, para sempre, o humano a pulsões narcisistas, mas nessa outra que conserva em si matéria viva de poeira estrelar, corpúsculos elementares que, desde a origem, contêm já toda a poesia do mundo. Potência desbragada contra a inércia amparada num autocontentamento sem objeto.

É com Freud e o seu O Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur, 1930) que iremos pensar o vendaval atual. Pensá-lo para o compreender e para tentar superar o pano de fundo psíquico do nevoeiro que, em Portugal, pode parir salvadores. Pode, mas não pare. Uma dinâmica e uma economia de pulsões (ou instintos) de vida e de morte comandam o nosso novo destino histórico. Sempre comandaram, aliás; mas agora as pulsões de morte parecem prevalecer. O superego civilizacional («amar o próximo como a si mesmo») mostra-se enfraquecido; agigantou-se, pelo contrário, o sentimento de culpa da humanidade, que pode, transmutando-se, manifestar-se num intempestivo desejo de vontade de poder.

Freud refere que os homens primitivos, com mecanismos de sublimação dos instintos destrutivos menos elaborados, eram um bando de assassinos. A civilização foi capaz de enquadrar e controlar esses instintos, mas, como nos mostraram as duas grandes Guerras, a atual redefinição de quase todas as relações geopolíticas, passando do primado da confiança para o da desconfiança, e os processos de desumanização difíceis de imaginar há algum tempo, talvez estejamos muito próximos desse «bando de assassinos».

Civilizados, bárbaros e assassinos

James abbott McNeill Whistler, Nocturne in grey and silver, c. 1872-74

Em Psychologie Heute, 1986, Peter Sloterdijk afirma que «somente o fim do mundo consegue mostrar o cumprimento do fim do mundo.» Podemos, pois, ficar descansados: o fim do mundo será, sem qualquer hipótese de remissão, o fim do mundo, um facto bruto e puro ao mesmo tempo, sem abertura para a interpretação (bruto) e liberto de qualquer economia da responsabilidade (puro). Por conseguinte, enquanto não chega o fim do mundo, deixemos de falar dele, já que nem a loucura disruptiva trumpista nos fornece a mais pálida ideia do que será. Reservemo-lo para o pré-reflexivo, vivamo-lo como uma parousia invertida (será mesmo invertida?).

Há uns anos, fez furor a ideia do «fim da história». Francis Fukuyama, hegeliano seletivo, parecia interpretar bem a ressaca festiva da conclusão da embriaguez triste da Guerra Fria. Os empedernidos da luta de classes, sonhadores mais e menos ativos, vieram para a rua cantar «a história continua!». E continuou. Aliás, o próprio Fukuyama escreveu, no artigo que deu origem ao seu livro mais famoso, que o fim da história entristecia, pois parecia ter exaurido a coragem, a audácia ou a imaginação («The End of History», The National Interest, verão 1989). Portanto, sentia-se que uma vontade bastante geral pretendia que o «espírito absoluto» não regulasse, mesmo sendo autorregulação, a finitude, a história. À minha maneira, percebendo que se militava dogmaticamente dos dois lados, esforcei-me por manter viva a ideia de Sigmund Freud, em Para Além do Princípio do Prazer, de que só a frustração arranca a vida à inércia. Resolvi, então, frustrar-me e frustrar, tornei-me um pequeno niilista especializado em curto-circuitar a esperança de uma paz perpétua, mais definitiva do que a do próprio Immanuel Kant, pois dominaria e não exigiria qualquer esforço, não provocando, assim, nenhuma frustração. Seria uma paz cinzenta, o cinzento de Peter Sloterdijk em Wer noch kein Grau gedacht hat. Ein Farbenlehre, cor que representa algo que «não foi tido em consideração». Uma paz deixada por sua conta, porque, finalmente, se julgava estar perante a Paz.

Talvez venha a propósito, visto que nem a Paz nem o fim do mundo se concretizaram, recuperar, primeiro, a distinção entre bárbaro e selvagem feita em 1976 por Michel Foucault no curso do Collège de France «Il faut défendre la société», e, em segundo lugar, por uma razão talvez mais estética do que teleológica (embora pareça o contrário), evocarei novamente Freud e, tudo o indica, a sua lucidez antropológica.

Para Foucault, o selvagem é sempre selvagem na selvajaria, juntamente com outros selvagens, se estabelecer relações sociais, deixa de o ser. Por sua vez, o bárbaro só é bárbaro em relação a um determinado ponto da civilização, mantendo-se, para salvaguardar a sua condição, fora desse mesmo ponto civilizado. Por isso, o bárbaro despreza e inveja a civilização, em relação à qual se mantém numa posição de «hostilidade e guerra permanente. O bárbaro não existe sem uma civilização que ele procura destruir e apropriar-se.» Ao contrário do selvagem, o bárbaro não entra na história fundando uma sociedade, «mas penetrando, incendiando e destruindo uma civilização.» Esta hermenêutica foucauldiana parece ser mais actual hoje do que na altura em que foi pensada, temos agora vários candidatos à figura do bárbaro, adornados, claro está, por uma película de verniz que os faz parecer apenas outra forma de ser civilizado.

Para Freud, o de O Mal-Estar na Civilização, os bárbaros não estão no exterior da civilização, todos nós mantemos um fundo de «homem primitivo», a civilização só nos pode resgatar pontualmente, ajudando-nos a recalcar os nossos instintos e fornecendo-nos vias relativas de felicidade através da arte, do amor, da beleza ou da religião. Nos dois casos, trata-se de processos de sublimação, que Freud traduz como «o destino forçado que a civilização impõe aos instintos.» Sem isso, continuaríamos a ser assassinos, como refere quase no final do livro: «Temos assim que nós próprios, a sermos julgados pelos nossos impulsos volitivos inconscientes, somos também, tal como os homens primitivos, um bando de assassinos.»

Hoje, num paroxismo que se preparou durante muito tempo e que agora resolveu acelerar em várias direções (talvez nem todas conduzam para abismos), há legiões de bárbaros que não querem, ou não sabem, recalcar e sublimar os instintos primitivos. Por isso, é legítimo pensar que há muito que não se viam tantas pulsões destrutivas. Embora mantenha, acompanhado por Sloterdijk, o que disse na abertura deste texto: não sabemos quando, nem como, chegará o fim do mundo.