K. P. Kaváfis, nota de leitura a «Poesia Completa»

Acabou de ser editada, na Assírio & Alvim, a poesia completa de K. P. Kaváfis em português, língua de chegada que se acredita estar feita, ou melhor, que se foi fazendo para agigantar o lirismo. Talvez. Conhecemos o ditado sobre presunção e água benta, mas o que seria da órbita celeste da observação, da sensação e do pensamento sem alguma húbris?
Entre sopros formais (o do Ípsilon de 19 de dezembro de 2025) e informais (o de amigos com dedos imperfeitos para coisas práticas), já sabia que podia esperar muito, eu que há bastante tempo me apaixonei conceptualmente pelo poema «Ítaca» (numa forma que talvez relance noutra direção o conceito de «proximidade estética» de que fala Miguel Tamen). Conheço bem, porque habitam em mim, os seres que gerem expectativas como se fossem subtis censores da frustração. Habitam mas vão-se transubstanciando em materiais mais nobres, uma nobreza de espírito pessimista, essa que faz da necessidade virtude.
Peguei, pois, no livro como se fosse a Primavera. E li-o, talvez mais em modo dionisíaco do que apolíneo. Um dionisíaco mais catalogador (arrisco o dissenso) do que inebriador. Ou melhor, um dionisíaco que mesmo quando nos eleva até ao limiar do abismo, assegura, baixinho, que é possível descer em vez de cair.
A diferença entre um prefácio e um posfácio (neste caso, de Tatiana Faia) é que este último tem a virtude da modéstia, a não ser que seja uma falsa modéstia (bem acima da imodéstia), o que, tenho a certeza, não é aqui o caso. Por esta razão e porque começo a gostar de obedecer a protocolos de leitura, só li o ensaio (no sentido da «tentativa» de compreensão que nos vem de Montaigne, e que tantas vezes esquecemos) de Tatiana Faia depois dos poemas, numa tradução que me disseram ser exemplar, e das muitas páginas de notas, quase incontornáveis. Sem Tatiana Faia, perder-se-iam os contextos geográficos, históricos e sociais que marcam a incubação poética de Kaváfis.
Houve clara novidade na hermenêutica informada e criativa de Tatiana, mas coincidimos nos três poemas mais tocantes. Diretamente em mim, indiretamente nela, que utiliza o termo «famosos» para os destacar. Um de nós está mais limitado pelo cânone, mas isso não invalida que possamos caminhar juntos em três poemas-monumentos.
Um é de 1904, «À Espera dos Bárbaros», e recupera a história, com certeza apócrifa, de Roma esperar a vinda dos bárbaros (haverá aqui uma reminiscência da dialética apolíneo-dionisíaco da Antiguidade grega?) como forma de renascimento pelo apocalipse. A última estrofe acrescenta ao mito uma possibilidade de sentido que define novas órbitas:

«E agora, que será de nós sem bárbaros?
 Essa gente era uma espécie de solução».

Os outros dois são de 1911. «O Deus Abandona António», aconselha-nos a não aceitar esperanças inúteis, a sabermos despedir-nos do que perdemos, de Alexandria no caso concreto, mas não será esse o gesto mais justo para tudo, e é tanto, o que vamos perdendo? «Ítaca», que me ensinou a amar a cidade da minha adolescência por ter sido apenas madrasta, torna claro que a viagem deve demorar o mais possível: quando somos Ulisses convém não regressar depressa a Ítaca, não saímos de lá para isso, mas antes para, como queria Goethe, percorrer o finito em todas as direções. Percorrê-lo com vontade de nos perdermos, sem deus ex machina redentores. Tanto mais que

«Ítaca deu-te a bela viagem.
 Sem ela nunca terias partido.
Outra coisa não tem para te dar.»

Boca Cheia

 

Noites perdidas no sono inconsolável

De nostalgias inúteis como as folhas

Apodrecidas aos pés de nórdicos gigantes

Hibernados numa longa noite sem recreio,

Vira o disco e toca o mesmo cinzento

Denso que um dia inspirava liberdades

Mais abertas que ceder à verdadeira vontade,

As restrições de mão na porta

E outra na carne que se rouba por despeito

Numa oração de murmúrios viscosos

À perdição de uma alma que nunca

Nos foi verdadeiramente limpa,

Cair por fim despejado nas saudades

De um pó quase dourado de uma familiar

Encruzilhada rodeada de figueiras oliveiras videiras,

A esta distância o verão parece a impossibilidade

Da juventude e engolem-se remorsos

Como sonhos mãos vazias desejos inapagáveis.

 

Turku

02.12.2025

Poemas Estivais - Parte II

Lembra-me um sonho lindo acabado

Eu não quero ser eterno
quem quer viver para sempre
diz o Freddy mercury
mas queria que esta melancia
durasse mais umas porções
aí já é o milagre da multiplicação, confundo tudo
queria também pular de nenúfar em nenúfar
até cair nu no lago, sou muito descoordenado
e desse refrigério talvez nascesse um quadro
pintado antes do meu nascimento
e sobrevivendo à minha morte
Desisti de perceber a desordem do tempo
é difícil, come melancia, rapaz, sopra uma voz,
para ver se facilita.
 

Depois de ir levar gente ao barco

Não sei se era isto que os antigos
sentiam depois de se despedirem
das pessoas que partiam nas embarcações
para em sítios longínquos guerrear
pilhar, matar e ocupar
e os que ficavam voltavam de mãos húmidas
às casas a cheirar ao silêncio da ausência
e a chorar os sacrifícios feitos invocando o vento
e conversavam à lareira sobre o Minotauro
ou protestavam sobre seres afins
e falavam da partida como uma espécie de morte
Hoje os sítios não são tão distantes
Estão cartografados
mas há telefones para receber notícias das chegadas
e imagens das guerras e pilhagens que ainda persistem
os reencontros são mais frequentes
as viagens já não duram décadas
Há mais sangue e menos epopeias
e inúmeros sacrifícios vãos e ocultos
mas o vazio deixa ainda
nas casas um lastro nos espaços
como a chuva de micro poeira
que brilha quando a luz incide no ângulo certo
e nos perguntamos
se não se tratará ainda
dos restos da pele dos que partiram
e como sob o espectro de fantasmas
iremos refazer já de si a tão incerta nossa vida  

Heráklion, agosto 2025

Ghosting e Schadenfreude

A humorista francesa Nora Hamzawi declarou que, para ela, «ghoster é, muitas vezes, tato mal interpretado». Um modo de desconstruir a má fama do ghosting, essa maneira de, por mais de uma razão, com certeza, bruscamente ou brutalmente, deixar de falar a alguém sem explicar porquê. Geralmente, este comportamento é entendido como agressivo, não apenas porque quem desaparece deixa o outro em falta, mas também porque fica no ar que o abandonado teve alguma responsabilidade no desaparecimento. Acaba-se, pois, em falta e com culpa. Nesse sentido, falar de «tato mal interpretado» é um eufemismo monstruoso (dionisíaco descontrolado e descrente).

Ariane Nicolas num artigo para a revista Philosophie magazine, de 28 de outubro, resume bem o inferno do ghosting: «O ghosting é um mal da nossa época. Com as redes sociais e as mensagens instantâneas, esse fenómeno de “fantasmação” não pára de se espalhar — é inquietante. De acordo com um inquérito realizado pelo site de encontros Adopte, 72% dos participantes admitem já ter sido alvo de ghosting e 80% consideram essa atitude “atroz”. É preciso distinguir o ghosting do simples «bloqueio» online, que pode, por exemplo, resultar de uma situação de assédio. Deixar de falar com alguém é, evidentemente, um direito. Mas de quem nos protegemos quando praticamos ghosting sem aviso prévio? A pessoa que o faz dá a entender que foge de um incómodo ou de um perigo, quando, na verdade, é ela quem está a agir de forma agressiva. À cobardia inicial acrescenta-se uma culpabilização perniciosa do outro, forçado a perguntar-se repetidamente: o que fiz eu?» Uma passividade agressiva levada ao extremo.

Dir-me-ão que os sentimentos de culpa e de falta se desvanecerão rapidamente, como poderiam durar se se aplicam a um fantasma, a um não-ser? Nada de mais incerto. O evanescente perdura porque se defende muito bem dos ataques, esquiva-os tanto melhor quanto os deixa atravessar a sua ontologia rarefeita. Como se combate o que talvez não exista? Ou, existindo, esconde a sua condição de possibilidade, isto é, mantém secreto o seu modo de existir, que se pode situar num espectro que vai do inautêntico absoluto ao autêntico absoluto. Em resumo, o ghosting transforma o desaparecimento numa presença que assombra.

Estamos longe das boas espectrologias — da hantologia de Jacques Derrida à ausência social de Maurice Blanchot —, no primeiro caso um pensamento sobre a vitalidade escondida dos espectros de Marx, no segundo a autoproteção de uma personalidade extremamente tímida. Em ambos, nada os impedia de se parodiarem a si mesmos, enquanto nos davam coisas sérias a pensar. Pelo contrário, um praticante de ghosting nunca se rirá de si; no máximo, levar-nos-á a refletir sobre as nossas dependências, o peso e a extensão das alienações que nos habitam.

Mas, quando entramos no inferno, uma qualquer luz revela parte da face escondida dos que brindam connosco com copos cheios de veneno. Vislumbramos então o desejo desmedido dos que querem brilhar usando como combustível o sofrimento dos outros, militantes da Schadenfreude, que mais do que uma «alegria culpada», é a versão mais conseguida da «alegria pelo sofrimento de outrem». E quem assim age é porque se sente incapaz de se alegrar pelo que é e pelo que faz. É porque há muito se encontra em definhamento, talvez nunca tenha despontado, talvez nunca tenha verdadeiramente existido, num em-si indiferente ao inferno dos olhares de outrem.

Byung-Chul Han e o papel do filósofo

Byung-Chul Han, Prémio Princesa de Asturias de Comunicación y Humanidades, à sua chegada ao Teatro Campoamor para assistir à cerimónia de entrega dos Prémios Princesa de Asturias 2025, dia 24 de outubro de 2025, em Oviedo.

Artigo do jornal El Pais relacionado com a comunicação de Byung-Chul Han na entrega do Prémio Princesa de Asturias 2025. Tradução de Victor Gonçalves.

Byung-Chul Han, pensador alemão de origem sul-coreana, galardoado com o Prémio Princesa de Comunicação e Humanidades 2025, iniciou o seu discurso no Teatro Campoamor de Oviedo, lido em alemão, com uma defesa da missão crítica do filósofo. «O papel do filósofo, segundo Platão, consiste em despertar, criticar, incomodar e exortar os atenienses». E recordou a parábola em que um moscardo pica e incita um cavalo, «nobre mas preguiçoso», no qual Sócrates vê a sociedade ateniense. É assim que Han se vê a si próprio: «Eu sou filósofo. E, como filósofo, interiorizei essa missão socrática da filosofia». E procura, pois, despertar os outros, ainda que a sua obra, com A Sociedade do Cansaço no centro das atenções, possa causar «irritação» e «desconcerto».

O seu cavalo de batalha é a ideia de que o sistema económico neoliberal nos faz viver numa liberdade fictícia: “Hoje pensamos que somos mais livres do que nunca. Na realidade, vivemos num regime neoliberal despótico que explora precisamente a liberdade. Já não vivemos numa sociedade disciplinar governada pela proibição e pela ordem [como defendem Michel Foucault e Gilles Deleuze], mas numa sociedade do rendimento, que se acredita livre e é regida pelo «poder fazer». Mas esse poder sem limites só no início produz uma sensação de liberdade; depressa gera mais coação do que os antigos «deves».

Assim, critica a autoexploração que nos infligimos, a primazia do smartphone nas nossas vidas hiperconectadas e aceleradas e a síndrome do burnout. Na verdade, Han não é contra o telemóvel nem a digitalização, que podem ser ferramentas muito úteis. O problema, afirma o pensador, é que «na realidade, somos nós que nos tornámos a sua ferramenta. O smartphone usa-nos, e não o contrário. Não é que o smartphone seja o nosso produto, mas sim que nós somos o seu produto». A tecnologia acabou por servir para difundir o ódio e as fake news, fomentando a polarização.

Por isso, contestando a ideia de um determinismo tecnológico, Han sustenta que são os poderes públicos que devem tomar as rédeas do cavalo desenfreado da tecnologia. «A tecnologia sem controlo político, sem ética, pode adquirir uma forma monstruosa e voltar a escravizar o ser humano», advertiu. Tudo isto se aplica, sobretudo, ao crescente poder da inteligência artificial.

Para preservar a democracia, disse Han, evocando Alexis de Tocqueville, são necessárias virtudes como “bom senso, responsabilidade, confiança, amizade e respeito”. Especialmente o respeito, enquanto “cimento social”. Sem essas virtudes, “a democracia esvazia-se e torna-se um mero aparato. Até as eleições degeneram num ritual vazio. A política reduz-se então a lutas de poder. Os parlamentos tornam-se palcos de autopromoção dos políticos”. O filósofo fez ainda referência às crescentes desigualdades económicas no sistema neoliberal, que criam uma brecha pela qual a classe média já está a cair: “São precisamente esses medos que empurram as pessoas para os braços dos autocratas e populistas”.

Na sociedade contemporânea, tudo está disponível imediatamente e ao alcance de um clique, até mesmo o amor, através de aplicações de encontros. As opções parecem infinitas, assim como a sensação de liberdade, maior e mais plena do que nunca. «O mundo assemelha-se a um imenso centro comercial onde tudo pode ser consumido. O scroll infinito promete informação sem limites. As redes sociais tornam possível uma comunicação ilimitada». Apesar da hiperconectividade, os laços reais são frágeis, somos assaltados por uma sensação de vazio e perdemos a capacidade de empatia. «Vamos cambaleando de um vício para outro, de uma dependência para outra». O liberalismo deixa atrás de si um vazio que não podemos preencher com valores ou ideais. É por isso que Han insiste em continuar a ser o moscardo, como Sócrates, mesmo causando irritação aos seus semelhantes.

«Embora tenha irritado as pessoas, afortunadamente não fui condenado à morte e hoje fui distinguido com um belo prémio. Por isso, agradeço-vos do fundo do coração», concluiu.