Objectos Últimos

Comovem-me os pacotinhos de sumo barato nas mesas-de-cabeceira dos hospitais,
Os desenhos e rabiscos de garotos de dois ou quatro anos que não se lembrarão do avô,
O sumo dias e dias intocado, a fome dos últimos momentos pouca, a sede enganada gota a gota,
Comovem-me os relógios de pulso, últimos companheiros não fosse a falha nas pilhas
Ou de quem lhe dá corda, enfiados no fundo das gavetas contra vontade,
Porque estavam a incomodar uma veia, escondendo assim a hora da partida,
Os anos, décadas antes, presidentes já falecidos, à noite da boca descai-se um mãe,
Tudo para enganar a última visita, quase sempre rodeados de outras solidões,
Gemidos alheios que quase um eco, comovem-me as caixas de bombons
Que ficam por ali, abertas, cheias, ao lado da placa que já não consegue nem um sorriso,
Comovem-me os objectos pequenos, os últimos da vida, porque no fim
Tudo sabe a tão pouco para nada, a vida acaba e o pacotinho de sumo intocado.


30.03.2018

Turku

 


 

Charles Baudelaire, "Embriagai-vos" (Enivrez-vous)

Tradução: João Coles

 

"À votre guise", fotografia: joão Coles

"À votre guise", fotografia: joão Coles

Embriagai-vos

Deveis estar sempre embriagados. Aqui reside tudo. É a única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que vos esmaga os ombros e vos verga para a terra, é imperativo embriagar-se sem descanso.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a vosso gosto. Mas embriagai-vos.

E se por acaso, sobre os degraus de um palácio, sobre a relva verde de uma vala, na morna solidão  do vosso quarto, acordardes de embriaguez diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que roda, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio vos responderão: “É hora de vos embriagardes! Para que não sejais escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, a vosso gosto. 

  

In Le Spleen de Paris


Enivrez-vous

Il faut être toujours ivre. Tout est là. C’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.

Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.

Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’étoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront: “Il est l’heure de s’enivrer! Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.

 

Charles Bukowski, "Lei"

Bukowski nos anos 60

Bukowski nos anos 60

Tradução: João Coles

lei

“olha,” disse-me ele,
“todas aquelas crianças a morrer nas árvores”
e eu disse, “o quê?”
ele disse, “olha.”
e eu fui à janela e sem sombra de dúvidas lá estavam elas penduradas nas árvores,
mortas e moribundas.
e eu disse, “o que é que isto significa?”
ele disse, “não sei, foi autorizado.”

no dia seguinte quando me levantei havia cães nas árvores,
pendurados, mortos e moribundos.
virei-me para o meu amigo e disse, “o que é que isto significa?”
e ele disse,
“não te preocupes, as coisas são mesmo assim.
votaram. tomaram uma decisão”

no dia seguinte havia gatos.
não sei como é que apanharam aqueles gatos todos tão depressa e os penduraram nas árvores, mas conseguiram.
no dia seguinte havia cavalos,
e isso não foi muito bom porque muitos ramos podres se partiram.

e depois do pequeno-almoço no dia seguinte,
o meu amigo apontou-me a pistola à frente do café
e disse,
“bora,”
e saímos.
e havia uma carrada de homens e mulheres nas árvores,
a maioria deles mortos ou moribundos.
ele preparou a corda e eu disse,
“o que é que isto significa?”
e ele disse, “foi autorizado, é constitucional, foi aprovado pela maioria,”
e ele atou-me as mãos atrás das costas e a seguir abriu o nó.
“não sei quem me irá enforcar,” disse ele,
“quando te despachar,
quando isto estiver a chegar ao fim,
presumo que restará uma só pessoa e esta terá de se enforcar”
“imagina que o não faz”, pergunto.
“tem de o fazer,” disse ele,
“foi autorizado.”
“ah,” disse eu, “muito bem,
então vamos a isso.”

 

publicado pela primeira vez na "New York Quarterly", nº 10, em 1972


law

“look,” he told me,
“all those little children dying in the trees.”
and I said, “what?”
he said, “look.”
and I went to the window and sure enough, there they were hanging in the trees,
dead and dying.
and I said, “what does it mean?”
he said, “I don’t know it’s authorized.”

the next day I got up and they had dogs in the trees,
hanging, dead, and dying.
I turned to my friend and I said, “What does it mean?”
and he said,
“don’t worry about it, it’s the way of things. They took a vote. It was decided.”

the next day it was cats.
I don’t see how they caught all those cats so fast
and hung them in the trees, but they did.
the next day it was horses,
and that wasn’t so good because many bad branches broke.

and after bacon and eggs the next day,
my friend pulled his pistol on me across the coffee
and said,
“let’s go,”
and we went outside.
and here were all these men and women in the trees,
most of them dead or dying.
and he got the rope ready and I said,
“what does it mean?”
and he said, “It’s authorized, constitutional, it passed the majority,”
and he tied my hands behind my back then opened the noose.
“I don’t know who’s going to hang me,” he said,
“when I get done with you.
I suppose when it finally works down
there will be just one left and he’ll have to hang himself.”
“suppose he doesn’t,” I ask.
“he has to,” he said,
“it’s authorized.”
“oh,” I said, “well,
let’s get on with it.”

Notas sobre o Prosciutto di Parma

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ille dapes laudet mensae brevis, ille salubrem
iustitiam legesque et apertis otia portis,
ille tegat conmissa Deosque precetur et oret,
ut redeat miseris, abeat fortuna superbis.

ele que louve a comida de uma mesa modesta, a salubre
justiça, as leis, e as portas abertas da paz,
que saiba guardar segredos, e rezar e suplicar aos deuses
para que a fortuna regresse aos infelizes e abandone os arrogantes.

Horácio, Ad Pisones, 198-201

para o Pedro Braga Falcão

1

o famoso Prosciutto di Parma
é feito somente
com partes de bichos
de ascendência ilustre
Grandes Porcos Brancos
Duroc
Landrance
criados localmente
com pelo menos
nove meses de idade
pesando em média 160Kg

a sua dieta
é complementada
com o soro de leite
que sobra
da feitura
do queijo parmesão

isto contribui
para o sabor doce
com um ligeiro toque de noz
tão característico
do Prosciutto di Parma

 

2

o abate
tem lugar apenas
em matadouros autorizados
antes é necessário
que os animais descansem
jejuem durante quinze horas
e um veterinário ateste
a sua boa saúde

na teologia charcutérica
a morte é só o começo
mas é um começo

 

3

em média
os pernis pesam
quinze quilogramas
quando chegam
aos guardiães
da irmandade do prosciutto
muitos serão rejeitados
e devolvidos ao matadouro
por não terem as dimensões
e camada de gordura ideais

 

4

a salga está a cargo
de um maestro saletore
que aplica
sal marinho na superfície
sal seco no músculo
para garantir não só
a conservação
mas também que a textura
o sabor e o aroma
tão característico do prosciutto
se desenvolvem devidamente

o que se segue
é não menos importante
mas mais enfadonho de descrever
é realmente necessário dizer
como o presunto descansa
(dois a três meses
em salas refrigeradas
com cerca de 75% de humidade)
de como é lavado
e seco
e sujeito a uma primeira cura
de três meses
e depois untado
uma última vez
antes da derradeira cura
uma hibernação amena
que dura
assim o estipula a lei
pelo menos um ano
mas que pode levar até três?

 

5

Horácio famosamente
instrui o jovem Pisão
a deixar as suas composições poéticas
curar numa gaveta bem condicionada
durante nove longos anos
isto depois de escolhidas
e doutamente tratadas
por um crítico judicioso

o que acontece
dentro da gaveta
é deveras miraculoso
texturas que se desfazem
refazem e intensificam
através de fenómenos de proteólise e lipólise
desenvolvendo características bromatológicas
como ritmo
polissemia
e cheiro

o resultado
se o produto amadureceu bem
e não degenerou
é a iguaria mais cobiçada
pelos gourmets poéticos
o poema-petisco
vendido
em edições de capa dura

 

6

o prosciutto
é um luxo
acessível a poucos

o Mercado
precisa de mais presunto
mais barato
mais depressa

animais criados
em jaulas
segundo processos industriais
abatidos com menos de seis meses
as suas partes tratadas
com químicos
nitrato de potássio
nitrito de sódio
de modo a que a bactéria
que confere ao presunto
o sabor de carne curada
e tom rosáceo
emerja mais cedo

é assim que apenas no espaço
de algumas semanas
um ser vivo
capaz de sentir dor
brincar
desenvolver afinidades
é transformado
em convenientes pacotes
de carne processada
à venda
na secção de charcutaria
do supermercado mais próximo

 

7

a prescrição horaciana
de um embargo de nove anos
é muitas vezes tirada do contexto
estudiosos apontam
para elementos de auto-paródia
recordam
o quanto há de satírico
na severidade do tom didáctico
da Ars Poetica
e convém não esquecer
que o jovem Pisão
era um menino de boas famílias
cuja reputação
era mister preservar
mais do que alcançar a excelência poética
talvez Horácio procurasse
poupar ao rapaz
embaraços futuros
como um homem sábio
que instrui um jovem
nos caminhos da vida
não ponhas fotografias do pirilau na net
meu rapaz
senão ainda te vês atrapalhado daqui a uns anos

 

8

deixa as coisas
levarem o seu tempo

parece uma máxima
conducente à virtude
apesar de demasiado vaga
e de ignorar
as dinâmicas do Mercado

segundo a World Health Organization
carnes processadas são
um carcinogênico de grupo 1
i.e.
há provas suficientes
de que o agente
causa cancro
[1]
e sabemos
o que as torna tão nocivas
os nitratos
usados para acelerar a cura da carne
combinados
com certos componentes
das carnes vermelhas
como ferro
aminas
e amidas
formam um composto
que danifica
as paredes intestinais
e pode causar
como comprovam numerosos estudos
cancro colorrectal

 

9

sê fiel
à tua natureza
é um mandamento
mais problemático
serve melhor o que busca
a felicidade terrena
do que o peregrino
que sonha
o reino dos fins

desejamos a felicidade
de uma natureza perversa?

a carne
ficará mais tenra
desenvolverá
características idiossincráticas
a beleza
ainda que cruel
será bela

a questão
é na verdade
um teste
de indulgência

quão dispostos estamos
a tolerar
a morte e o sofrimento
de inocentes?

 

10

que bom seria
caminharmos frugalmente
pelo bosque
e colhermos palavras
com vagar
quando ao longe
ouvíssemos o toque
do mensageiro da fome
fruta apenas
bastar-nos-ia
estender a mão
e escolher o sabor
mais conforme
o apetite
água
para saciar a sede
vinho
velho falerno
com moderação
não mais
do que um copo
e se fosse realmente necessário
podíamos sempre procurar
abrigo frondoso
um lar para amantes
mesmo aqui
tão próximo
do centro da cidade

doce é o amor
e o ócio de escrever
longos poemas contemplativos
com referências clássicas q.b.
para didáctica elevação

logo
alguém virá
apanhar o lixo que deixámos
conter
o crescimento dos ramos
limpar as veredas
controlar
na ausência de predadores
a propagação
de esquilos cinzentos
e voltarão
exaustos e mal pagos
à sua casa nos subúrbios

ainda que frugais
é preciso caçar
para viver

e não será o nosso vegetarianismo
que nos isentará
dos pecados
da carne

 

 

 

[1] Cf. http://www.who.int/features/qa/cancer-red-meat/en/