Charles Bukowski, "Sossego"

tradução de José Pedro Moreira

Sossego


sentado esta noite
diante desta
mesa
junto à
janela

a mulher está
de mau-humor
no
quarto

estes são os seus
dias especialmente
maus.

bem, eu tenho
os meus

portanto
em consideração
para com ela

a máquina de escrever
está
parada.

é estranho,
escrever isto
à
mão

lembra-me de
dias
passados
em que as coisas não
estavam
a correr bem
noutros
aspectos.

agora
o gato vem
visitar-
-me

refastela-se
debaixo da mesa
entre os meus
pés

estamos ambos
a derreter
no mesmo
fogo.

e, caro
gato, estamos ainda
a trabalhar no
poema

e alguns
observaram
que há um certo
“declínio”
aqui.

bem, aos 65
anos, eu posso
“declinar”
o que me apetecer, e ainda assim
dar
uma abada
a esses críticos
da treta.

Li Po sabia
o que fazer:
beber outra
garrafa e
enfrentar
as consequências.

volto-me para a minha
direita, vejo esta enorme
cabeça (reflectida na
janela) a chupar
um cigarro
e

sorrimos
um
ao outro.

então
volto
atrás

sento-me aqui
e
escrevo mais palavras neste
papel

não há nunca
a grandiosa
declaração
derradeira

e essa é o
engano
e o truque
que funciona
contra
nós

mas
gostava que pudessem ver
o meu
gato

ele tem uma
mancha
branca no
focinho
contra um
fundo
laranja-amarelado

e então
quando olho para cima
na direcção da
cozinha

vejo uma parte
clara
sob as luzes
do tecto

que se esbate
no escuro
cada vez mais
escuro até
não ver
mais
nada.

 

Charles Bukowski, You Get So Alone At Times That It Just Makes Sense, 1986

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RYMAN

 

                                        para o João Miguel Fernandes Jorge

*

É preciso fechar os olhos para ver!
Se a força não permitir o seu fechamento
devemos então enterrarmo-nos na mais branca neve
sem roupa
nus como convém à entrega absoluta
para ir ao encontro da mais gloriosa das formas
inclassificadas,
ditas informes por alguns.
Talvez apenas disformes ou, simplesmente,
divididas em constelações dispersas, contendo em si
um leve fio entre o nosso olho mental e a morte.
Sempre a morte. 
Fechemos os olhos e se não os abrirmos
talvez vejamos a presença terrífica do Ser,
a que muitos chamarão, por preguiça, cegueira. 

Não há brancura ou deleite, Pedra Pomes,
ou a tomada de consciência de que além do ser
existe outro ser.
Tomara todos termos o dom de reduzir à
entranha mais branca do medo
a negação absoluta ou a
mais possante afirmação
redizer toda a forma
fechar os olhos
abri-los e ver toda a potência num único
plano.

  **

O desconforto, o vazio ou, simplesmente,
a mais agónica impotência trazida para o corpo de
quem ama ardentemente
 a brancura, o pensamento,
a mais branca pele, a película
subjacente
de outra
tonalidade, a afirmação da imensidão
da tentativa de dizer. 

O Corpo branco,
de variados brancos, películas sobrepostas de gotas
de azul transparente,
esparguete revestido da mais paciente atenção. 

Tingido o olho,
o pensamento tenebroso
ousa encontrar os fios perdidos entre a
palavra e o caos informe.

   ***

 O cego que vê,
seduzido desejo da terrível condição do insubmisso,
cujo apaziguamento nunca virá numa generosa afirmação,
- abraço ou gesto prolongado
da obra ao espetador -
tenta recolher os cansados dias,
as penas lançadas da derrota,
a pluma branca do cavaleiro que nunca saiu do lugar. 

Talvez aí, a água calma,
profunda,
com laivos de tentadora vibração,
caia sobre nós,
os insatisfeitos da facilidade das entregas. 

Leva-me ao corpo paradoxal do ente que dorme,
desperta a mais leve doçura,
o bicho do pensamento que transporta a imobilidade do Tempo. 

Permanece, feito cobra, a cobra do corpo que morde.
A cobra, que morde sobre si mesma,
entra pela estrada
sem saber onde desemboca o abismo. Possa  

o Tempo
respirar pelos átomos da brancura do Ser!

12.2018

Robert Ryman - Untitled #1 1004 -(1960-61).jpg

Robert Ryman (1930-2019) - Untitled #1 1004 (1960-61) (Pormenor).

Cisne

  “I keep on fighting against God

In such a dirty, cruel place”

                                 Björk

 

 

Se houvesse cetim suficiente,
que me cobrisse a cintura larga, eu 
seria um conjunto de penas brancas
esvoaçando num lago gelado da Islândia. 

Porventura teria cantado, depois de subir
as escadarias vermelhas ou, simplesmente, depois
de ser condenada à morte.
Preferia, sim, correr e cantar em cima de
um comboio em movimento
a ter de contar as desaventuras da minha,
inexistente, vida sexual. Estão a ver o pantanal?
Isso, mas sem nenhum animal,
sem onça ou bico longo. 

Pobre de mim? Não. Quero que se fodam
os Homens, que me desejam, e as mulheres,
que me evitam. Quero, sim,
 a liberdade!
Acima de tudo, poder cantar com aquilo
que me caiu em sorte e
não pensar muito. Deixo
o pensamento para
os que têm, realmente, tempo.  

Se o cisne, enrolado no meu pescoço,
cantasse a minha morte, eu
jamais seria este corpo. 

Neste cetim branco, ele canta
a minha invisível garganta.

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Leda e o Cisne, Pompeia.

Lição de história do Jean Pierre

para Jean Pierre De Roo

Luís XVI
não gostava
de fazer amor
por isso a rainha
uma senhora
de enorme vitalidade
tinha muitos amigos

Luís XVI
gostava
de relógios
de os montar
e desmontar
e assim passava
dias felizes em Versalhes
enquanto a esposa
socializava

Luís XVI
tinha dois primos
que muito o superavam
em idiotice
um russo
e outro alemão
crianças inquietas
sem paciência
para a minúcia
da relojoaria
quando um relógio
deixava de funcionar
quebravam-no

o que nos traz
um pouco mais próximo
da nossa presente situação

A MINHA CONA SABE A PEPSI COLA

“I know your wife and

    she Wouldn’t mind”

              Lana Del Rey

 

Sabes bem o que dirá a Lourdes das Couves
quando sair da Missa das 10h, depois de, com
aqueles olhos enormes de coruja velha, fo-
tografar toda a roupa vestida pela vizinha:
um sapato alto, novo, vermelho, que feio!
A mala era pele de tigre ou girafa e o pobre
miúdo era, entre todos, o mais mal vestido
!
Ir à missa sempre foi uma missão de risco,
encontrar beatas e puritanas que nunca
levaram com uma bofetada decente nas
fuças. Mas, enquanto há tempo há vida! 

Eu era a puta, a puta, porque não ficava
em casa, porque preferia sair e tomar a
maldita Pepsi cola que a cabra viu um dia.
A beata, Maria das couves, espalhou pela
Vila que eu bebia Whisky! Tinha, segundo
ela que participar na cartografia da rua:
quem saía, com quem saía, como saía,
que vestia, que comprava,
e não ficava
por aqui o relatório! “Grande vaca!” era
eu a pensar já na cama de Castigo, um
castigo imposto por uma mãe que lhe dava 

 ouvidos. Velhaca, não há palavrões que 
cheguem para lhe atirar, hoje, à cara.
A partir daquele dia nunca mais bebi
Pepsi cola! A minha cona deixou de ser
doce para o bico do marido dela, que
me cobiçava, feito Bulldog, quando eu
passava. Como rapariga rebelde que
sou, passei a beber do amargo Whisky!
Ser Puta, por meio copo, mais vale ser
Puta por copo inteiro. A grande Vaca!

 

                                              Barbara Stronger

                                                             04.01.2019

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Joan Crawford & Pepsi