Depois das Cinco

Chegar a casa e merendar, leite achocolatado, uma sandes de fiambre e queijo,

Não havia intolerâncias, o sol punha-se na janela, lentamente, a eternidade

Além das cortinas que a mãe tricotou, ouviam-se os garotos que esperavam

Os autocarros que os levariam às respectivas aldeias, que mais tarde se acendiam

Nos montes do horizonte escuro, amanhã seria um dia certo, custava a geada,

As primeiras horas de casaco e luvas, mas havia sol nos intervalos,

Estávamos inteiros, ainda longe de nos tornarmos nos homens

Que o destino faria de nós, a geada onde o Sol não chegava, permanecia

Por várias semanas, esperando a primavera, que chegaria sempre,

Mais um dia acabava, caminhava-se para casa antes de cair uma nova geada,

Um subia pelo adro, outro descia pela rua até ao fim do bairro,

Até amanhã, certos como a vida, o sangue jovem e imortal que tínhamos,

Sem imaginar primaveras impossíveis, que não chegariam a todos,

Sem pensar em cemitérios onde erva nova crescerá, porque sempre cresceu.

 

Turku

 

22.01.2021

[O sol crepita no zinco do barracão]

O sol crepita no zinco do barracão.
Os cães espumam encarniçados.
Um vespeiro zumbe na sombra.
Uma foice pende de um prego –

o cabo está rachado,
e a lâmina, romba,
funde-se sob o verdete.
Ulcerado também o prego.

Os ratos urinam pelos cantos.
As batatas apodrecem nas sacas.
O bafio emana das arcas.
Os morcegos oscilam nas vigas.

Decénios de pó acumulado
no chão de terra batida.
Aranhas que disputam as moscas
às osgas e aos morcegos.

Uma brisa salobra desliza
pela frincha do portão,
riçando bolores que foram frutos:
nêsperas, ameixas, pêras, limões.

Ao fundo, no alguidar reluzente,
boia afogada uma ninhada de gatos.
A mãe, ainda jovem, enrodilhada
nos pés da dona, mia, esfaimada.

Seltzer

 

1.

Aqui está o meu quarto, sorrindo como uma floresta

de umbigos                       contudo, em segredo

                                                               tão triste e imundo.

 

2.

respira fundo o suficiente e estamos possessos.

respira novamente e estaremos perdidos.

 

3.

a melhor coisa de hoje

é a ideia do amanhã.

                               faremos um piquenique.

 

4. quem pode argumentar com 6000 andorinhas

voando de uma nuvem única,

                                                               como alegria.

 

5. quando morrermos poderemos ver a Virgem Maria

sentada diante do pai, do filho, e do Espírito Santo

 

agora mesmo contento-me contigo

com o teu soutien desapertado     (sob uma árvore)

no ferryboat da Staten Island.

 

Jim Carroll

Encomenda

Hoje fui aos correios buscar uma encomenda vinda de Portugal,

Uma caixa de papelão, castanha, enviada há quase um mês,

Em pandemias tudo parece mover-se a passo de caracol,

Falta a baba com tanto açaime no focinho, mal se respira com medo,

Na caixa um frasco revestido com o carinho rendado de minha mãe,

Dentro orégãos, daí talvez o atraso, além do medo a desconfiança,

Três ou quatro postas de bacalhau que regressam à Escandinávia,

Para me ajudarem a passar um Natal solitário e um saco de plástico

Com castanhas, contudo, no nó do saco, dois cabelos longos,

Um castanho e outro prateado, de minha mãe, sorrio finalmente

Com tal inesperada visita, pego nos cabelos e guardo-os no livro querido

De um conterrâneo, há tesouros mais importantes no acaso,

Pode parecer pouco, mas hoje, depois de muito tempo, toquei a minha mãe.

 

04.12.2020

 

Turku