Madrugada  

Seis da manhã, não tarda, nascerá dourado o glorioso desespero azul,

Gelado como os sonhos lúcidos, não consigo lembrar-me do teu sorriso

Sem tristeza, que fiz eu dos teus olhos, da inocência que escolhi nunca ver,

Haverá pão fresco no ar dessa distância onde moras, perdoa-me

Todas as madrugadas e todos os cheiros intrusos que arrastava

Atrás do meu desejo por outras perdições, para a nossa cama quente do teu sono,

Dos amores sacrificados, nascem as manhãs de inverno,

Timidamente rasgando as trevas, sou todos os desencontros futuros.

 

11.02.2021

 

Turku

3 poemas de Leopoldo María Panero / Félix J. Caballero

*

A rena avança sobre a neve

E fala aos anjos da nossa vida

E na nossa alma resta apenas um pouco de neve

Lutando contra os anjos e o vento

E caminhando sobre o papel

Como sobre o trilho dos cisnes.

 

*

A cerveja é o símbolo obscuro da vida

Como os rios simbolizam a vida

E actua na minha memória meu nome repetido

Pelas inúteis páginas e pelo esquecimento.

 

*

Ah a rosa da despedida

O mundo inteiro para dizer adeus

O pranto dos lírios

E o peixe para pescar na sombra

Para uivar como o vento

Que é a única testemunha da minha morte

Ah a rima assonante

E o absurdo do sonho

Agonia do verso onde soletra a vida

Como se a agonia fosse um verso.

 

O que é isso de gritarmos em uníssono

O que é isso de gritarmos em uníssono   será
dizer-te nos lábios   isto é   falar encostado
à tua boca    ou deixar que nos comovam
o que é isso   e  agora que baixaste os rios
quantos sulcos lavram a  nossa margem    e já viste
ontem ainda era de noite e falávamos
de outra coisa   o que é isso   não há voz que caia
quando nunca erigimos montes que se possam voar
será por isso que te enterras    que nos enterramos
mas por enquanto ainda nos seguramos   ainda
ainda nos segurámos numa vogal aberta
será por isso que por vezes dizemos a mesma
a mesma coisa   será por isso que gostamos
da uma mesma posição    do nosso lado da cama
o que é isso de nos amarmos durante a chuva
isto é    quando tudo está molhado    mesmo quando
não troveja um único céu     e ainda assim
procurando o meu desconforto   mesmo fingindo
que nunca dizemos a mesma coisa   ou seja
nunca ouvimos a música alto da mesma maneira
ou que nunca disseste     gosto que me doam os ouvidos
sabes    aquele pecado de rebentar as margens
enquanto as encurtamos nos teus lábios
o que é isso de gritarmos em uníssono
ou parados   que é o mesmo que dizer
que é isso de removermos as pedras     de encontrarmos
consolo em ver como fogem as formigas    lembras-te
como naquela garagem sem paredes    ou seria
um tecto sem paredes   lembras-te    quando as formigas
faziam um carreiro e nos deixavam tontos
ao menos aí estava sozinho como sempre estivemos
o que é isso de gritar enquanto se suspira
o que é isso de subir o elevador da Glória
à espera que perca a cor e não o tempo
deve ser porque me tomaste por tolo    não é
não é que esta não seja uma outra forma de estar parado
mesmo quando nos tomam por outra coisa    e não será por isso
que um círculo é uma espera em movimento
e gostei quando disseste esfera como se me amasses
ao ponto de me reconheceres nessa palavra.

"Ex-vida", de Pier Paolo Pasolini

Pasolini.jpg

Tradução: João Coles

No meio de um ténue fedor de matadouro
vejo a imagem do meu corpo:
seminu, ignorado, quase morto.
Assim me queria crucificado,
num clarão de delicado pavor,
quando era criança, já autómata do meu amor.
Mas por trás desta névoa de medula
(há quantos anos ou séculos aqui imóvel?)
ó Indivíduo, ó Sósia, descobres que és
feito de mim, do meu calor, e hostil
a uma morte anterior à minha.

Eu venho até ti depois de uma viagem inebriante.
Toquei, em dias de plena luz, as paredes
enegrecidas e a relva húmida de Casarsa.
Com um gesto negligente de guerreiro
ofereci o corpo nu ao tempo fresco
antiquíssimo, lânguido, de Meschio,
de Livenza, do Po... Brinquei na orla
de uma grande planície, nos seus prados
tórridos, sob céus intermináveis,
nas casas rejubiladas no seio de um leque
de mil cheiros afectuosos, subtis.

Entro no teu círculo, amargo, fresco
como minha mãe à tarde ao passar
o limiar da porta, emperlada de erva seca,
e trago comigo um vento de paisagens,
uma soberba leveza, uma cândida
coragem de forasteiro. E tu não exalas
senão silêncio. Ó desconhecido que foras tudo:
o rapaz perdido em casa,
o jovem burguês que acalentava
os falsos amores no seu amado coração,
agora és nada, O NADA, o puro erro.

E assim, ó esfomeado, ó desejo obscuro,
com um olhar de eras pré-humanas,
exprimes a tua vida de maníaco.
A tua mania é a vida do mundo.
De mim só pretendes que corresponda
ao teu louco esforço de te anulares,
ignoras todas as atracções do meu século,
todos os feriados, todas as paixões aprendidas
nos anos de uma vida abrasada de si mesma:
não te interessa saber que, no tempo, a eternidade
se oferece a festas quase eternas.

Ignoras também jogos ainda mais vitais:
confessar os desejos masculinos,
o amor pela minha mãe, que TU amaste,
a luz estagnada nas profundezas da noite
da infância...(Ó derradeiro candor
deste meu exibir! E tu ignora-lo.)
Amei somente quem tu odiavas.
Eternizei a minha sombra de jovem
para dela lamentar, ávido, os afectos
cheios de esperança, os ardores de lírio,
que inflamavam a minha carne de filho.

Por ti, num deserto de serenidade,
desonro o pobre segredo
do meu sexo, e, despreocupado, confesso-o.
Não sei por que milagre, sossegado
e enfim honesto, invoco das minhas neuroses
céus puros, lugares inodoros,
onde – como Matéria ou Morte – morres.
Sim, muitas vezes estás morto, e o rapaz
volta alegremente ao ventre, e o mitómano
à branda forma pleno de entusiasmo,
quando apenas a vida lhe resta.

Mas tu, nos confins do tempo, aqui me esperas,
dentro de mim, onde o ventre e os músculos
se contaminam de um fedor ameno de musgo
ou de excrementos; e enquanto uma escuridão nua
de vão de escada ou de bivaque
se adensa, vejo-te, múmia, autómato,
e vês-me a mim. Ó nostalgia mortal
para quem nunca te conheceu, e que ignorando,
ó puro Ser Vivo, as tuas angústias de orangotango,
perdia-se no próprio jucundo destino,
coração desconhecido num mundo desconhecido.

Terezín

Terezín,
onde um lugar vivo assombra as nossas mãos mortas

 

 

Em Terezín toda a merenda
sabe ao vazio que a memória vigia.
Avançamos sobre as salas e os corredores
frios, e dar a mão aos amigos cumpre a inutilidade
de enroscar as torneiras em fila
esperando água,
receber a imagem recuperada,
pela metade, dos homens que por ali resistiam. 

Imagino o que será
beber água nos campos de trabalho,
ou nos de concentração: a terminologia da violência soa mais-que-perversa,
cultiva-nos um pouco por todos os atentados. Urge-nos.
Como se houvesse distinção quando a sede já não é a forma elementar imperativa
da força humana.
Por baixo de um drama subjaz outra e outra amputação.
Um crente andrajoso, arrastando-se na mão de deus. 

A água embutida no sal conservava a garganta carcomida.
Baratas estariam de acordo: rápido, indolor,
mais do que a água
jorrante de mentira. 

Talvez aqueles homens que vergavam a cabeça para
que lhes pingassem na boca uns quantos pingos
escassos
de água
procurassem a morte pela fenda,
a vitamina fatal dos inocentes. 

A água mata em Terezín, a água mata quando não
mata a sede. 

Se não acreditam que mesmo os mais malévolos
eram, prisioneiros dos campos nazi, a mais pura das formas
minguando,
convido-vos a sair desta casa,
e a bater à porta de alguém para quem a água
ruma sempre a uma forma de vida. 

Em Terezín, fevereiro de 2016,
engasguei de não haver secura bastante para limpar
a história húmida calada dos tijolos bem alinhados,
serpente sem tempo, roendo-nos os pés acolchoados. 

Chegámos a uma vala,
“aqui fuzilavam os prisioneiros”.
Mas não era um campo de morte,
mas não era um campo de concentração.
Eram só uns tiros,
e a água que matava jamais a sede. 

De volta a Praga, no autocarro,
pude detestar o homem checo
que grunhia — achou que não merecêssemos a língua dos homens,
achou-nos dentro demais do nosso fora bárbaro,
e retumbantes no valor de um bilhete de volta.
Talvez tenha entrevisto uma fraqueza na discórdia,
um golpe de estado na melodia estranha.
Comentei isso com os meus colegas.
Falámos.
Matámos alguma sede.
Procurámos respostas e
conseguimos alguma coisa que fez a duração da paz. 

Chegados ao nosso destino,
de volta ao nosso quarto de hotel,
disse que amava quem amava,
e soube que não havia nada mais frágil que essa liberdade
de dizer “odeio-te” para dizer “amo-te”,
compreendendo, ou não, o que a nós
nos não querem jamais confirmar. 

Hoje deixo que Terezín cresça na ponta dos dedos.
Lembro-a crepuscular quando uso o corpo
para acenar ao trilho escolhido.
Penso, sobretudo, que não há máximas na estrada,
apenas vontades antigas.
Que só persiste a liberdade
— ela não é, ela está na corda bamba das mãos bambas —
quando aprendermos que nada há a confirmar.
Que a memória é a velocidade mais ou menos acidental
de um automóvel sem travões.
É na viagem que escrevemos,
em cada paisagem esquecida, 

o torso quebrado que nos calha que nos perscruta que nos obriga
a ter sede.

Perfil de Maria Brás Ferreira aqui.