"O desconhecido", de Aldo Palazzeschi

Tradução: João Coles



Viste-o passar hoje à noite?
Vi-o.
Viste-o ontem à noite?
Vi-o, vejo-o todas as noites.
Olha para ti?
Ele não olha em volta,
só olha lá para baixo,
alí onde o céu começa
e a terra acaba, lá em baixo
na linha de luz
que o pôr-do-sol deixa.
E depois do pôr-do-sol ele passa.
Sozinho?
Sozinho.
Vestido?
De preto, está sempre vestido de preto.
Mas onde se detém?
Em que sino?
Em que prédio?


Lo sconosciuto

L'hai veduto passare stasera?
L'ho visto.
Lo vedesti ieri sera?
Lo vidi, lo vedo ogni sera.
Ti guarda?
Non guarda da lato
soltanto egli guarda laggiù,
laggiù dove il cielo incomincia
e finisce la terra, laggiù
nella riga di luce
che lascia il tramonto.
E dopo il tramonto egli passa.
Solo?
Solo.
Vestito?
Di nero è sempre vestito di nero.
Ma dove si sosta?
A quale capanna?
A quale palazzo?

Aldo Palazzeschi, in Poemi

Microcosmos – Haikus

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“Faz o melhor que puderes e deixa para os deuses o que ficar por fazer.”

Yasunari Kawabata

1.

Numa folha de hortelã

a sede

da tua língua.

 

2.

Rosmaninho

inspiro fundo

a infância que resta.

 

3.

Ladram os cães

da vizinhança –

casas vazias.

 

4.

Não tem pressa

o Sol –

cantam os grilos.

 

5.

A sombra da rã

que salta

sobre o peixe vermelho.

 

6.

Arrefece o ar

coaxam as rãs

ao longe as rolas.

 

7.

Antes de ver

a minha sombra

esconde-se a lagartixa.

 

8.

Meu sangue

no toro de cerejeira

que racharei.

 

9.

“Caga no passado”

e limpa o cu

ao futuro.

 

10.

Aproxima-se uma tempestade

não interessa

está sol.

 

11.

Canta o cuco

lavram-se as terras

estou vivo.

 

12.

No campo lavrado

papoila solitária –

o teu sorriso.

 

13.

Pintam a primavera

os pássaros

a panela assobia.

 

14.

Que amanhecer

canta o galo

à hora do almoço?

 

15.

Na voz do irmão

ecoa

o amigo carpinteiro.

 

16.

No campo de rosmaninho

como o amor

secam os preservativos.

 

17.

Nos meus sonhos

tão vivo

quanto o sol depois da chuva.

 

18.

Dura mais um pente

que a juventude –

cabelos brancos.

 

19.

Brilha na couve

a gota de orvalho –

deixo a urina correr.

 

20.

Coaxam as rãs

ao sol –

amadurecem os figos.

 

21.

Pendura o hammock

meu pai –

figos verdes.

 

22.

No balde

ao lado do poço

a mesma água.

 

23.

As flores das favas

o canto do grilo –

anoitece.

 

24.

Sentado no banco

da feira

florescem as giestas.

 

25.

Regressa um rebanho

silenciam-se as rãs –

anoitece.

 

26.

Terra vermelha

a minha pele

ao sol no olival.

 

27.

Timidamente a rã

finge ignorar

a minha presença.

 

28.

Todas as promessas

de amor

o canto do grilo.

 

29.

Esvoaça um morcego

a rã salta

o grilo continua.

 

30.

Escovo a barba

sob o atento

olhar das rãs.

 

31.

Canta o cuco

toca o sino –

silêncio.

 

32.

Colhe cebolas

e alfaces a mãe –

aproxima-se o almoço.

 

33.

Estar assim

que as rãs

se aproximam.

 

34.

Sob o verde líquido

move-se rápida

uma pequena chama.

 

35.

Do outro lado

do muro

silêncio e vazio.

 

36.

Cantam os pássaros

as tardes

da minha infância.

 

37.

À beira do poço

não interessa

que passe a vida.

 

38.

Pequena célula

de um organismo maior –

nós.

 

39.

Sementes de nabo

levadas pelas formigas –

sementeira feita.

 

40.

Nada teme

o peixe

curioso.

 

41.

Na flor da fava

colhe o fruto

a abelha.

 

42.

A papoila

que agora colhi

já murchou.

 

43.

Arrefece lentamente

o café

do meu pai.

 

44.

Nunca só

no monte

agora menos.

 

45.

Sobre os milénios

do granito

décadas e o infinito.

 

46.

À sombra das algas

um peixe vermelho –

manhã de sol.

 

47.

O pai arranca

as couves velhas

e planta as novas.

 

48.

O sino interrompe

a declaração

da rã.

 

49.

Sob o olhar atento

das rãs

apanhamos sol.

 

50.

Na cadeira

o gato –

chuva de primavera.

 

51.

As vidas passaram

o rio

continua.

 

52.

Morango silvestre

maduro

sobre a língua.

 

53.

Espelho de água

o rio

nos meus olhos.

 

54.

Interminável mantra

de um grilo –

passo como um rio.

 

55.

Pedra sobre pedra

o muro

e a memória.

 

56.

À lareira

salada de agrião

treme o avô.

 

57.

É importante

perguntar

ao pó.

 

58.

Na manhã de sol

os chocalhos

das ovelhas.

 

59.

Flores de morango

quem comerá

o fruto?

 

60.

Urzes e carquejas

na flor da esteva

uma abelha.

 

61.

Olhos que vêem

as ruínas

que sabem das vidas?

 

62.

Cheiras-me ao monte

num dia quente

de primavera.

 

63.

A vinha do meu pai

à noite

é dos javalis.

 

64.

Sobre a figueira

cai a chuva

e o sol da manhã.

 

65.

Casa dos avós mortos

cai agora

o dente de leite.

 

66.

Revelado pelo sol

fino fio de teia –

manhã chuvosa.

 

67.

Amadurecem os figos

à chuva e ao sol –

manhã esmeralda.

 

68.

Café quente

à janela aberta

da manhã.

 

69.

Gentil chuva

de primavera –

o teu sorriso.

 

70.

A Lua não precisa

do meu olhar –

tenho que mijar.

 

71.

Sobre a ribeira

chuva –

papa-figos canta.

 

72.

Na língua

o sabor do café –

sol da manhã.

 

73.

Entre pesadas páginas

secam

as flores silvestres.

 

74.

Quieto na fraga

como uma árvore

ao sol.

 

75.

Na palma da mão

o mundo

rosmaninho e alecrim.

 

76.

Rosmaninho e alecrim

a frescura

dos teus lábios.

 

77.

Arrancando uma couve

meu pai –

“estás bem aí?”

 

78.

Neste trono de pedra

sou o rei

do alecrim.

 

79.

Sobre o canto das rãs

passa voando

uma andorinha.

 

80.

Minha mãe inquieta

meu pai triste –

onde para o gato?

 

81.

Dá horas

o sino –

“devia-se escachar.”

 

82.

Com sede

do teu corpo

bebo o sol.

 

83.

Sobre a lavanda

meu corpo o sol

e um caderno.

 

 

Abril-Maio 2021, Portugal (Torre de Dona Chama-Cidões)

 

 

 

Outro Aniversário

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“Já sou velho e nunca escalei o monte Fuji.”

Yasunari Kawabata

 

Em mais um ano acumulado nos ossos, nenhuma certeza se renova,

Somos apenas a distância que percorremos, no nosso pó futuro,

Tenho-me procurado longe, contudo, fiquei todo por onde passei,

Nas mulheres que amei, nas que apenas penetrei com tudo o que era

E não era grande coisa, somos um longo rastro de lesma,

Que as primeiras chuvas de outono apagam, como a sede do desejo,

A fome dos sonhos, o nosso nome das memórias dos que ficam.

 

Espanha? (Ar)

02.05.2021

D. J. Enright, O Quaga

tradução de José Pedro Moreira

A meio do século já só havia dois quagas,
e um dos dois era macho.
Os deveres do ofício pesavam sobre ele.
Quando se é o único macho da espécie
não é fácil levar uma vida normal.

Os bodes petiscavam e arrotavam em banal satisfação;
Corriam e deslizavam para cima e para baixo da sua montanha de cimento.
Um poderia cortar a garganta em vidro partido,
Outro vaguear demasiado perto da jaula dos tigres.
Mas eram maridos zelosos; e o recinto estava sempre apinhado,
O seu ar rançoso a pulsar com vozes simples.

O quaga, no entanto, era um homem marcado pelo destino.
A sua mulher, que ele conhecera em idade algo tardia,
Preferia dormir, ou queixar-se da comida e do tempo,
Pois o seu pequeno jardim era menos do que paradisíaco,
Com um sol artificial que ora queimava ora os regelava,
E a eterna presença de entendidos com câmaras,
Para perpetuar o único quaga macho no mundo.

Talvez seja por isso que fracassou em tratar do serviço;
Está tudo muito bem para bodes e macacos –
Mas o último macho de uma espécie está sujeito a pressões específicas,
Se o Satã de tempos antigos tivesse vindo a rastejar, talvez…
Mas em vez dele os entendidos, com câmaras e cadernos,
A escrever histórias tristes sobre a decadência dos quagas.

Até que uma tarde quente ele começou a armar uma confusão.
Este jovem quaga zangado escoiceou as grades e partiu uma câmara;
Tentou até morder o tratador incrédulo.
Protestou alto e em bom som contra isto e aquilo,
Até os outros animais ficarem bastante embaraçados,
Pois ele parecia que lhes estava a chamar nomes.

Então reparou na sua mulher, desperta pelo barulho,
E sentiu uma curiosa sensação a estremecer-lhe o ventre.
Ele era Adão: ali estava Eva.
Ao galopar até ela, a cabeça lançada para trás,
Tropeçou, e partiu uma pata, e teve de ser abatido.


The Quagga

By mid-century there were two quaggas left,
And one of the two was male.
The cares of office weighed heavily on him.
When you are the only male of a species,
It is not easy to lead a normal sort of life.

The goats nibbled and belched in casual content;
They charged and skidded up and down their concrete mountain.
One might cut his throat on broken glass,
Another stray too near the tigers.
But they were zealous husbands; and the enclosure was always full,
Its rank air throbbing with ingenuous voices.

The quagga, however, was a man of destiny.
His wife, whom he had met rather late in her life,
Preferred to sleep, or complain of the food and the weather,
For their little garden was less than paradisiac,
With its artificial sun that either scorched or left you cold,
And savants with cameras eternally hanging around,
To perpetuate the only male quagga in the world.

Perhaps that was why he failed to do it himself;
It is all very well for goats and monkeys -
But the last male of a species is subject to peculiar pressures.
If ancient Satan had come slithering in, perhaps…
But instead the savants, with cameras and notebooks,
Writing sad stories of the decadence of quaggas.

And then one sultry afternoon he started raising Cain.
This angry young quagga kicked the bars and broke a camera;
He even tried to bite his astonished keeper.
He protested loud and clear against this and that,
Till the other animals became quite embarrassed
For he seemed to be calling them names.

Then he noticed his wife, awake with the noise,
And a curious feeling quivered round his belly.
He was Adam: there was Eve.
Galloping over to her, his head flung back,
He stumbled, and broke a leg, and had to be shot.

D. J. Enright, Collected Poems 1948-1998

Quatro Poemas Suicidas

Suplício

 

Empenhemos o rigor possível ao teatro do Inferno,
sabendo que o jogo eterno já começou
e o suplício antecipa as penas do Além:
haveria, antes de mais, que furar-lhe a língua puída
de toda a repetição, expurgar-lhe o céu do céu da boca,
fazê-lo regressar ao idioma ainda nascituro
que trazia lasso no corpo, cobri-lo
com os restos da mãe e levar-lhos à boca,
para que sinta a adstringência do seu roubo
e tenha a presciência de um dióspiro imberbe
como última refeição. 

Só então lhe seria lida a sentença,
para que lograsse ouvir, como novo, as suas próprias palavras
e se alegrasse com as patifarias da juventude,
emprenhando saudade pelos ouvidos
e lamentando o dia em que não morreu à míngua
numa cidade estrangeira.

Genufletido sob as migalhas da culpa,
não pararia jamais de sangrar a laje
e ver-se-ia nu perante todos os seus nomes.
Haveria então de se levantar o resto do homem
e pô-lo em desfile, atenazar-lhe os mamilos
e as pregas da barriga, purificando-lhe
o reflexo mais primeiro da vergonha. 

Aos genitais, depois de enxofrados, aplicar-se-ia
o gume mais rombo do magarefe – só por rotina –,
e num dos olhos, por fim, o corte de um papel fino
onde tivesse cuspido os seus falsos testemunhos. 

Gritando pelos nomes de quem amou, veria os seus rostos
no cenho do carrasco, e já só teria forças para lamentar
o esquecimento que o varreria para cá da sua aurora:
uma última dor de mundo e a alegria de ver restabelecer-se
a ordem no seu próprio coração
, para morrer em paz.

 

Corda

 

Chegou a tratar-se de uma suspeita
debitada pelos encargos do corpo
mas cedo nos alongámos apenas ao longo do espírito,
afinando a prosódia de um hino preparatório
para uma nova espécie de amor,
uma nação inteira deposta à margem de um rio velho,
entreolhado como um corpo
entre as questões do seu espírito. 

Nenhuma laringe ecoará maior beleza
do que o embaraço de nos vermos enleados
nos filamentos que organizam outro peito,
nenhum desvelo mais fiel do que tanger
a cítara que ocupa o vago de coração nenhum. 

Apesar da parcimónia que trago aos dedos
habitarei para sempre o teu diâmetro
e mais não sou do que um embrulho de memória,
atado pelas veias e lacrado pelo espírito
:
mesmo que te perca de vista
e não me habites de volta,
que desças pela torre onde só posso adivinhar-te,
restarei de pé, a contraluz,
à espera de me saber contado entre as primeiras células,
percutido de novo, lembrando a frequência
da fina corda de nylon que ainda me amarra ao futuro
pelo pescoço.

Isótopo

Houve quem largasse a pele em Chernobil
e seja agora um faraó enterrado em caixão de zinco
sob pirâmides de betão e chumbo.
Houve velhotes que se alistaram em Fukushima
para que os filhos não morressem de absurdo,
evitando assim a mancha de outros venenos
depostos sobre a pele que lhes serve de céu ao coração

Como eles, também eu queria levar no corpo
uma estirpe mais ou menos subatómica
do silencioso mal do mundo:
sem heroísmos nem caixões de zinco,
apenas a consciência aguda de quem fui:
um homem baço e tosco, só de caroço,
isótopo manso sem sarcófago
nem filhos,
apenas o artifício de mastigar a língua
para que um dia o sangue possa ser o sumo
sacerdócio daquilo que tenho por voz
– e isso pareça um sacrifício.

 

Est.ética

(de Sob a forma do silêncio, 2019)

 

quero que este poema seja um gesto

quero que este poema seja um martelo
um formão
um fósforo
um prego
um parafuso
um tubo de cola 

queria que fosse bom ou belo
mas já não quero 

quero apenas que assente
como um fato feito por medida
(ainda assim desconfortável)
que seja meramente apreciado
que satisfaça como um gelado de baunilha
que fique sem efeito

quero que este poema seja intemporal
inútil e essencial
digno de recensões e teses de mestrado
que entre em todas as antologias e discotecas
que beba demasiado e se arrependa
que faça promessas e as quebre
que envelheça mal e fique rezingão
que seja solitário e se sinta especial 

quero que este poema
não me salve
quero que este poema seja urbano e pitoresco
tropical e glaciar
complexo e problemático
intrigante e desbocado
que tenha um estilo íntimo subtil
superlativo grandioso
breve e palavroso
cheio de anáforas antíteses hipérboles
mas bem-comportado
familiar e de bom gosto
sem fazer más figuras de estilo 

quero que este poema seja inteligente e autobiográfico
húmido e pornográfico
bom de cama e casto
que ande sempre nu pela casa
mas viva sozinho 

quero um poema sem descrições
sem explicações nem mecanismos
um poema lógico antropológico
astrológico arqueológico
patológico tautológico
e que cale o que não pode ser dito 

quero que este poema siga as regras
e as mude um bocadinho 

quero que este poema seja clássico e pós-moderno
romântico e neo-realista
que tenha hype e seja vip
a moda mais recente a tendência da estação o fenómeno da rentrée
(que faça de mim um poeta uma promessa um novíssimo
a mais importante voz da minha geração dilapidada)
quero que este poema seja lido no teatro nacional
na biblioteca municipal e no centro comercial
e que os seus versos apareçam nos manuais de português
que sejam pichados nas paredes e tatuados no peito
que se tornem epígrafes e sejam glosados
gozados
mal traduzidos
e esquecidos 

quero que este poema seja o zero
o zénite
e o fim dos meus poemas 

quero que este poema falhe redondamente
e acabe de vez 

quero que este poema
acabe comigo