O Cheiro do Mosto

Que triste o doce cheiro do mosto,

Quando tudo partiu e apenas restam

Os últimos dias vazios, o tédio e a espera

Mais verdadeira e certa, a do fim,

Aos poucos as luzes apagam-se,

Na mesa ninguém mais se espera,

Restam as estrelas com a sua ilusão de calor,

Que brilharão à geada com a mesma força,

Que triste o doce cheiro do mosto,

Lembra a necessidade da morte,

A importância da sesta para encurtar os dias.

 

Torre de Dona Chama

 

29.08.2021

Searas e Sémen  

                                                                                               Para a Cátia,

 

Uma seara dourada atravessada por uma estrada estreita

Em direção a uma aldeia cujo nome esqueci, tu,

Serás sempre jovem naquele verão em que te gravaste

No meu hipocampo com o sal da tua pele bronzeada,

O desejo não cabia no teu pequeno carro,

Estava quente a tarde, o teu peito pedia a amplitude

Das searas e a contenção desregrada das minhas mãos

Que fingiam uma experiência que a fome desmentia,

Serás sempre jovem enquanto os verões

Continuarem a amadurecer o cereal e os teus filhos crescerem,

Enquanto neste sol de julho eu puder fechar os olhos

E entrar uma segunda vez em ti, sentindo ainda quente

Do meu corpo, jorrando de ti, o meu primeiro esperma.

 

Turku

 

14.07.2021

 

A Partir de Um Provérbio Grego

A. E. Stallings em Like
(publicado também em Futures: Poetry of the Greek Crisis e aqui.)
Tradução de Tatiana Faia.

Ουδέν μονιμότερον του προσωρινού

Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta –
É só por um par de anos, dissémos, faz doze anos.
Nada é mais permanente do que o temporário.

Jantamos sentados em cadeiras desdobráveis – baratas mas alegres.
Colámos com fita-cola o vidro da janela partido. A TV ainda não sintoniza.
Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta.

Quando atravessámos a água, trouxémos só o que podíamos carregar,
Mas há sempre caixotes que não tornamos a abrir.
Nada é mais permanente do que o temporário.

Às vezes quando me sinto choramingas, propões uma teoria:
Nostalgia e gás lacrimogénio têm o mesmo travo acre.
Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta –

Escondemos ossos no armário quando não temos tempo de os enterrar,
Enfiamos recibos em envelopes, arquivamos papéis em pilhas.
Nada é mais permanente do que o temporário.

Faz doze anos e ainda estamos a comer do de costume:
Deixámos para trás a loiça do enxoval, com receio que estalasse.
Estamos aqui por enquanto, é o que respondo à pergunta,
Mas nada é mais permanente do que o temporário.

O que de Nós Fica 

 

Que triste o que de nós fica, uma perna de pau, um andarilho, 
Uns calções porque morremos no verão e uma t-shirt velha, 
Porque foi tudo à pressa e nem tempo tivemos de nos despedirmos, 
Quase uma vida enfiada em rodilho num saco de plástico, 
Branco como o tecido de papel que nos cobre, tudo uso único, 
Pendurado num punho do andarilho, onde apoiávamos o cansaço, 
A escultura grotesca do essencial de uma vida, 
Que dois homens, tresandando de desodorizante barato, 
Vem buscar, e no caminho da patologia, falam dos casos 
Novos de Covid, trazidos de São Petersburgo, depois 
Do país deles ter sido eliminado, parece impossível que a vida 
Continue quando deixámos de ser, mas o mundo realmente, 
Nunca precisou de nós, fomos tudo e num momento nada, 
O que tocámos continua e por vezes um desconhecido, 
Que passou a noite inutilmente a agarrar-nos à vida,  
Escreve-nos um poema, como se não fosse também em vão. 

 

Turku 

27.06.2021 

 

5- raízes que nos ergueram          esmagadas

5-

raízes que nos ergueram          esmagadas
ceifadas da rua              em prol do progresso
comovendo-nos lágrimas    aparentemente        puras
como pura é a dor universal                 universal ferida
sangrando        quem diria     a autocarros STCP
o grande dilúvio da dura-mater 

como poderia Deus ter nojo de seu corpo humano
quando sem corpo    nem mágoa    nem zénite
nem   ó meu safado     glória!  
nem glória de Deus nem escárnio de Deus
ter corpo humano    porque não       rir-se disso
do pavor de ver o fantasma possuindo o granito
aparecendo como Judith degolando os infiéis
tributo à tribu que inventou o trauma
o real como um cordeiro sacrificial 

vêem     meus meninos     as suas patas tremendo     vacilando     suplicando
reparem como    afinal     tão imberbe    tão próximo     tão idiossincrático!
 

e nós    
recebendo a chuva diluvial como adolescentes
fossemos surgindo indistintos na legião dos patetas
altercando com um néscio comando
         o sentido da vida 

e frívola de spleen   
         nalguma metrópole germânica 
a rapariguinha da boutique naturalista 
         adorando astros fulminados         
serviu-nos na língua
        com suas mãos obscenamente cautelosas  
                                             veneno
e vendou-nos        
         para comermos vísceras de revoluções      
                 à porta de um corcel
                          com uma grandiosa inscrição neon-pedagógica por cima                                         

isso e a existência como uma agonia
a mão na garganta de nos lembrarmos
de quando    foramos    tão longe    disto
como que
altos     brancos      e despovoados