Estou aqui sentado na minha casa

Estou aqui sentado na minha casa
que é grande como uma mesa de mármore
tenho um pequeno espaço de trevas à frente
vejo que está cheio de mim   vejo que está
num canto aborrecido do meu desespero
está sentado na minha casa   prostrou-se
à minha frente e então não tenho outra vontade
que não de anunciar   sente-se amigo   sente-se
ao que vem   sou eu   disse-me   sou uma história
uma diligência   um mito   comes carne
perguntei lá de onde estava sentado   cada vez 
cada vez mais me parecia um trono   e ela
ela diz-me   tenho estepes e perco-me de vista
e eu estava aqui sentado na minha casa
de gestos contidos   sabes   como quando conquistei
Paris e dei dois pulinhos de emoção   contidos
como quando era criança e julgava que toda
toda a gente estava a olhar para mim e ainda pior
que afinal tinha passado desapercebido   dei
dei dois passinhos de emoção   rejubilei contido
e hoje passei o dia na minha mesa do tamanho
de um estádio de mármore e sussurrei
és tu   és tu aqui   mãe com nome de seita
estou disposto a matar por tuas mentiras
por exemplo   que sou teu   que me queres
lembras-te   quando me fazias sentar do outro
do outro lado da mesa enquanto me negavas
um beijo   lembras-te   Mãe Rússia   quando
à noite te pedia um sorriso sem dizer palavras
e tu quase me aconchegavas antes de apagar
antes de apagares   e então   estou aqui agora
sentado à espera de um botão   de um erro
de uma falha de comunicação   para fazer de ti
Terra das Terras   Monstro dos Monstros
uma mesa bem grande   de um rio ao outro
ah   estou aqui sentado na minha casa
à espera que não haja hoje paredes para ela
que se possa transviar   intuir   rasgar
e formar muros de pedra   de madeira
lembras-te   como aquele que destruíste
aquele pobre carrinho   aquele pobre trenó
de brincar em que me arrastava à espera de ti
à espera de uma mãe e quando já de noite
decidia que nunca iria tocar em bebida
já tu estavas sentada à minha frente e agora
que agonizo como um comum mortal que acreditou
em histórias   vejo tão claramente que quis o que quis
e prostrei a meus pés os meus inimigos   rijos
eram tantos como as estrelas do céu   ou mais
agora aqui deitado na minha casa   rodeado
por pessoas que me temem mas não me respeitam
como a Mãe Rússia e os seus cabelos de palha
e os seus cabelos de puta   agora aqui deitado
ou sentado na minha casa   recordo me
inflo-me   exalto-me   se fosse poeta seria capaz
de escrever tudo isto   subjuguei os outros
os outros que foram nossos   dei cabo deles
trucidei-os   desfi-los   arruinei-os
porque foram ainda por cima irmãos desavindos
e com o seu sangue fiz um risco na cara
e chorei pouco   ou melhor   nada   porque
porque desde que me deste cabo dos brinquedos
mãe   ando com desejo de invadir a Polónia
os Normandos   os Vikings   e os Sumérios
desde que me possa sentar de novo na minha mesa
com mármore de vinte e quatro quilates
e ter alguém à espera do meu nojo   isto é
do meu lamento profundo pelo passado
e pela esperança de um grandioso futuro
cheio de cadeiras e de olhares sérios e tristes
porque afinal   irmão   tive que vos destruir
para saberdes que sempre vos amei
aqui sentado na minha casa
de onde se vê sempre o sol morrer
e onde não há trevas que me cubram
apenas uma mesa enorme debaixo da qual
me escondo à espera que as bombas caiam
num outro país que escolhi sentado.

 

à dancinha macabra de Adolph Hitler quando tomou Paris e à mesa grandiosa de Putin.

A música é a de Wagner.

rebuscada e fina

rebuscada e fina
brilha barroca a filigrana
que pende em ouro
sobre o peito cheio 
do arfar forte
suspirante
depois da ladeira acima

uma gota suada
cansada escorre
pinga abaixo pelo colo
em esforço
da braseira mais pesada
a mão em riste bruta 
e farta arrepanha a pele
amparando assim a pausa
antes do próximo passo 
lento até à fonte


O perfil de Leonor Buescu pode ser consultado aqui.

A Minha Guerra e Um Saco de Caramelos

 

No dia anterior tinha-me dito que enquanto há vida
Tudo é possível, eu sorri-lhe, não o quis contrariar,
O destino está tantas vezes traçado, tão traçado,
Mas é preciso um treino angustiante que nos permita ler
As evidências dos últimos dias, faz-se o possível, apesar
De tudo indicar a inutilidade de cada gesto, mais um dia,
Com sorte, nunca sorte, um esforço tremendo,
Trapezismo sobre o vazio mais absoluto, estas mãos,
Que agora escrevem para se tornarem eternas, sorrio,
Para não me contrariar, ao menos mais um dia
Deu tempo à companheira, ao amigo, à mãe,
Um cartão onde se lê, és amado, fala em amizade,
Porque não encontrei outro, mas é amor, amo-te,
Tenta desculpar-se num desespero evidente,
Ele pede-me para lhe retirar a máscara do BiPAP,
Que diferença fariam uns segundo, um mergulho,
Um alívio, ser um pouco todo e independente,
Um pouco de água, a voz sem o filtro do plástico
E do sopro salvador, ilumina-se um sorriso, quase histérico,
És tu novamente, e a saturação do oxigénio a descer,
A máscara em punho e o dedo no botão, dou-lhes mais
Uns segundos, que diferença faz, mais uma hora,
Amanhã não estará aqui, pelo menos não em consciência,
A própria companheira compreende, que bom ver-te agora,
Mesmo que seja a última vez, a máscara quebra a ilusão,
Eles demoram-se uns momentos, trocam palavras possíveis,
Dou-lhes espaço, partem para sempre, pouco mais lhe posso
Administrar, seja o que for, será apenas adiar o inevitável,
Adormece depois de morfina e oxicodona, para aliviar
A dor da fractura patológica, a dor da partida eminente,
Depois de aumentar a dobutamina, levar a noradrenalina ao máximo,
Aumentar o oxigénio para sessenta e cinco, setenta,
As pressões do BiPAP, a furosemida para uma grama diária,
Confirmar o aumento galopante do lactato, o saco de urina vazio,
A acidez do sangue a abandonar o sete vírgula, quase um seis,
Adiantar a dose de cortisona, pensar que se calhar efedrina,
A sistólica a sessenta e oito, ele cinquenta e poucos,
Mais uma dose de albumina humana, fico ali em pé, a olhar
Para a fragilidade da vida, para a miserável condição humana,
Para o cartão e ao lado o saco de caramelos fechado que ninguém
Irá abrir, e não consigo compreender o que leva certos
Reis, a quem foi dado por homens o poder possível aos homens,
De aumentar a angústia, a dor, tornar ainda mais miserável
A condição humana, quando basta acordar e ter o azar
De uma célula mutante se multiplicar, eu ali em pé,
Vendo que contra a morte podemos muito pouco, mesmo
Dando tudo o que temos disponível para quem só tem um destino,
Contudo, continuam-se a usar todos os recursos pela morte,
Um saco de caramelos, um saco de caramelos e eu tão pequeno.

 

28.02.2022

Turku

 

 

 

não fale dessa mulher perto de mim - as piores canções sobre lembranças




fibrinas sangue plaquetas 

tudo duro num tipo de âmbar em processo

de fossilização de uma dor a casca da 

ferida - e quase escrevo casa da ferida - não 

é a ferida tampouco é a memória da ferida 

é o corpo num gesto bruto e lento na busca pela 

distância da memória celular do tombo 

é também a casca da ferida um escudo - e

quase escrevo estupro - você não me conhece

você nunca me viu nunca assoprou

uma ferida minha no entanto temos

tanto em comum fibrinas sangue

plaquetas - e quase escrevo punhetas -

aos sete caí de de uma árvore muito

muito amável sobrevivi apesar do

pouco corpo que ficou grudado no

cimento - e quase escrevo ciumento





=//=




existe

portanto na fotografia 

não para todos

a lembrança do momento fotografado

e a lembrança dos momentos que antecederam

a imagem

raramente uma das

personagens toca o momento

posterior e é tão natural e difícil para uns quanto

o ponto do espaguete 

posteriormente ao momento fixado no tempo

está o grande samurai da questão

e ele traz enrolada na espada uma

enorme lista de endereços

e nomes





=//=





não me lembro exatamente 

quando me apaixonei por você 

são tantos paralelepípedos até aqui e em

tão poucos toques palavras interruptores

sei que naquela tarde você disse

algo sobre uma espécie de lagarto

que grita enquanto come arregalou os

olhos pra falar em tom bestial 

ENQUANTO COME 

arregalei os olhos atrás do 

cardápio do boteco não me sentia

pronta para demonstrar reflexão

pedimos sopa húngara e aqueles pãezinhos

estranhos do cozinheiro lucas 

tomava minha sangria como uma criança

e você ainda em dúvida sobre o que beber

roubou um trago do meu copo

as sopas chegaram com os pãezinhos 

estranhos do cozinheiro lucas 

simulamos um encontro acidental de 

dedos na cesta de pães e você cantou 

baixinho um pedaço de unchained melody

VOU TOMAR COCA-COLA saiu da

mesa foi até o balcão passou na cozinha

falou com lucas que acenou pra mim

foi tudo tão rápido pagamos a conta

acho que você arrotou adeus, lucas

você me deixou em casa e tenho a 

forte sensação de ainda estar atrás do

cardápio completamente absorta com

a história do lagarto 

adeus, lucas, adeus





=//=





um pequeno golem

pensar que é possível sim construir

alguém partindo das memórias incorruptíveis

de um objeto de estima 

a última xícara de um jogo de chá que

ganhei de uma amiga distante

você suas delicadas linhas

douradas suas flores azuis na barriga você

seu vazio empoeirado seu jeito de acolher você

folhas de hortelã suas falhas nas flores de trás

sua orelha enorme você num gancho

enferrujado pregado na figueira invertida

meu pulmão esquerdo


O teu amigo  

é difícil
não saber
como começar
é mais seguro
partir do princípio
de que isto
será olvidado
num caderno
que mais cedo ou mais tarde
vai parar ao lixo

recordas-te
quando o teu amigo te contava
como ele e uma rapariga
estavam apaixonados
como se procuravam constantemente
até que ele decidiu
não mais ir ter com ela
não que o amor
tivesse enfraquecido
mas ele ansiava
por sensações mais fortes
e mais forte
do que o amor
apenas
a privação do amor
e como mais tarde
se encontraram na rua
e o que ele viu
nos olhos dela
foi ódio
e também isso
não lhe desagradou
olvidaste-a?
ele riu-se
com o ridículo
da questão 

*

pelas margens
dos cadernos
de Matemática
e Química
floresciam cadáveres e quimeras

ele era
um artista
o teu amigo

e um ponto vermelho
batia no meio
no lugar
do coração

os quartos
vazios
e ainda assim
desarrumados
cresceram também
à margem
dos anos

 *

o teu amigo
na adolescência
fugiu de casa
decidira
ser artista
viveria aonde o acaso
o trouxesse
dedicar-se-ia inteiramente
à sua arte

sem concessões

foi uma aventura inolvidável
a viagem
e depois
o céu estrelado
como só é possível
numa noite de verão no campo
deitou-se ao ar livre
cheio de sonhos
o teu amigo
trouxe até consigo uma almofada
no dia seguinte
regressou a casa
a mãe estava ausente
nunca
ficou a saber
da aventura

eu sou
o veículo da arte
a condição
sine qua non
a arte é inevitável
esteja eu
onde estiver
posso muito bem
ser artista
a partir de casa
basta
não me acomodar

 *

o teu amigo
deixou a casa
anos mais tarde

contou-te
quando tomavam café
empacotar frangos
algures em Inglaterra
apanhar papoilas
nos arredores de Roterdão
tu não sabes
o que é a vida
meu rapaz
tu aqui
não viste nada
não sabes nada

tu não sabes
o que é a vida

tinha
os olhos
embaciados

ainda desenhas?
ele mostrou-te
o caderno

não arte verdadeira
ele tinha
de admitir
mas os alicerces
da verdadeira arte
exercícios preparatórios
apontamentos para
o que viria a seguir

esta é a mulher
com quem quase casei
apontando
para o desenho
de uma mulher
rabiscado
a esferográfica azul
tem olhos tão azuis
vês
vês
como são azuis?

odeia-me tanto
que engravidou
de outro homem 

*

máquinas
murmúrios
o som
que te liga ao mundo
já não é
o da respiração
um outro sopro
artificial
acho que ele está
a acordar
parece estar
a abrir os olhos
até nisso falhaste

fechas os olhos
fechas-te
em ti mesmo
nenhum outro lado para ir

mas o coração bate
bombeia
algo negro
a alastrar pelo teu corpo
a cobrir os membros
olvidaste-a?
foda-se
aquele
atrasado mental
o atrasado mental
sou eu
tentas reprimir
as ondas de bílis
que te cobrem os nervos
não tens força
para os enfrentar agora
tão implacáveis
a exigir explicações
com a sua pena humilhante
o seu
amor humilhante
até que não aguentas mais
e um soluço irrompe
depois as lágrimas