Batido pelo Sorriso do Passado

 

O passado olhou para mim e sorriu, não me reconheceu,

Durante aqueles segundos deixei de saber como andar,

Como se tivesse sido atingido na cara por uma fralda

Embebida em éter, fingi então receber uma mensagem,

Enfiei a mão ao bolso e lá consegui reencontrar o ritmo

E acelerar o passo em direção a mais um cabelo branco,

Lembro bem aquela noite no barco, aquele cheiro a madeira

Apodrecida pelo álcool, podia hoje a vida ser outra,

Eu outro, o amor de outra loira, podia nunca ter dado

O meu coração a comer a hienas obesas, perder tempo,

Podia, ela tímida, pediu à amiga que viesse falar comigo,

Eu quase jovem, nunca o fui, agora morro há quase dois anos,

Apelido famoso nos canais de desporto, eu que na altura

Só via beats, tanto amor à morte, a madeira do barco,

O mesmo barco, anos mais tarde, a trazer-me aqui,

O mesmo cheiro no quarto quando sinto o meu hálito,

Hoje o passado olhou para mim e não me reconheceu,

Quem seria aquele velho, ela casada com um americano,

Também envelhecerá, a amiga com o filho de um marroquino

Que afinal era um príncipe das arabias com temperamento,

Enquanto caminho até casa, depois de reaprender a andar,

Com uma Le Ragnaie na mochila de outra vida, penso,

Que apesar do vazio é melhor estar aqui, chateado com

O céu nublado, confiante que cada vez terei menos certezas

E que existe uma certa liberdade em estar batido, não passar do chão,

Ter o passado a olhar para mim sem me reconhecer.

 

26.07.2022

 

Turku

"a escrita", por Charles Bukowski



Tradução: João Coles



é amiúde a única
coisa
entre ti e a
impossibilidade.
nem a bebida,
nem o amor de uma mulher,
nem a riqueza
podem
comparar-se-lhe.
nada te pode
salvar
excepto
a escrita.
ela impede que as paredes
caiam.
que as multidões
se aproximem.
rebenta
com a escuridão.
a escrita é o
derradeiro
psiquiatra,
o mais bondoso
deus de todos os
deuses.
a escrita persegue
a morte.
não sabe o que é
desistir.
e a escrita
ri
de si mesma,
da dor.
é a última
expectativa,
é a última
explicação.
é isso
que ela
é.


in Blank Gun Silencer – 1991


writing

often it is the only
thing
between you and
impossibility
no drink,
no woman's love,
no wealth
can
match it.
nothing can save
you
except
writing.
it keeps the walls
from
failing.
the hordes from
closing in.
it blasts the
darkness.
writing is the
ultimate
psychiatrist,
the kindliest
god of all the
gods.
writing stalks
death.
it knows no
quit.
and writing
laughs
at itself,
at pain.
it is the last
expectation,
the last
explanation.
that's
what it
is.


from Blank Gun Silencer – 1991

"Pictures from Knopfli's airport" de Larry Sultan

para a Tatiana,
que conhece as margens do exílio

Não querias lembrar-te de nada,
além da soma de dois exactos impossíveis:
este nada que se recorda.
Nenhum futuro, nenhum passado
subsiste, além deste equívoco. E o presente
prende-nos como se fôssemos um assento 
perpétuo e infranqueável

num cinematógrafo.

Os nossos olhos, dentro de nós, abrem-se
como uma tela, revelando-nos a derrota
na sua mais plácida brancura.

Em vinte versos, dizem-me, escreveste a tua despedida.
Mas por muito mais de vinte anos lembraste
o teu rosto menino, o perfil 
dessa cidade.
Ainda aqui estás. Ouve-me. Leio-te, Rui,
sentado no terminal 1 de Madrid. E em vinte versos
invento um livro: voltas, abraças Kok Nam. 

Sultan apanha-vos.

E eu teimo acrescentar um 21.º verso,
em que vos crio a alegria e a saudade: de novo

Dois poemas traduzidos: Mark Strand e Garcia Lorca

Tradução de Tatiana Faia

Não sei ao certo onde Mark Strand se terá sentado para escrever o primeiro dos poemas que traduzo aqui, “Keeping Things Whole,” mas foi um poeta e tradutor galego, Jesús Castro Yáñez, quem por sinal me o mencionou. É um poema que ensaia uma justificação da necessidade de movimento, mas também ele se move, chega à revelação que encerra. O outro poema que aqui traduzo é um dos Seis Poemas Galegos de García Lorca e há outro elo galego. Sabemos onde García Lorca estava sentado quando o escreveu, ou talvez o reescreveu, não é claro, a pedido de dois editores galegos: no café Moderno em Pontevedra, em 1932.  Talvez Lorca esteja a falar aqui sobre a natureza de normas opressivas, mas de certeza que entre ter sido e haver de ser há qualquer coisa que é desarrumada pela liberdade de movimento que aí fica implícita, pelas imagens inusitadas e pouco conformes a qualquer cânone de representação realista. Achei então que fazia sentido ler estes dois poemas juntos.  

 

Manter as coisas inteiras

Num campo
sou a ausência
de campo.
É sempre
assim.
Onde quer que esteja
sou o que está em falta.

Quando caminho
separo o ar
e o ar move-se
sempre
para preencher os espaços
onde o meu corpo esteve.

Todos temos razões
para nos movermos.
Eu movo-me
para manter as coisas inteiras.

 

Mark Strand, “Keeping Things Whole",” Selected Poems, 1979. Publicado aqui.

 

Eu sei que o meu perfil será tranquilo

Eu sei que o meu perfil será tranquilo
no musgo de um norte sem reflexo.
Mercúrio de vigília, casto espelho
onde se quebra o pulso do meu estilo

Que se a hera e a frescura do fio
foi a norma do corpo que deixo,
o meu perfil na areia será um velho
silêncio sem rubor de crocodilo

E ainda que nunca assuma sabor de chama
a minha língua de pombas enregeladas
mas antes o deserto gosto das giestas,


livre signo de normas oprimidas
serei, no pescoço da hirta rama
e num sem fim de doloridas dálias.

 

Frederico García Lorca, in Seis Poemas Galegos (1935).