atlas

parada nos semáforos
a minha mãe fumava
estacionada ao fundo das memórias
o último cigarro que a vi fumar
ainda me recordo
a outra mãe
estaria perto de morrer
e a minha
fumava
com a angst de quem foi
menos amada do que o merecido
mesmo assim carregava as queixas
fraldas contas o peso transladado
degrau a degrau
o olhar dela inolvidável
naquele espelho de retrovisor
(só uma matriarca saberia
enterrar outra) 
minha mãe-atlas
eu via
e não sabia ainda
de mitologia grega
mas um dia vais entender
ela repetia
e só quando anteontem
me sugaram pelo umbigo
qualquer dose de indizível
(dói sempre quando decides
tirar algo enroscado na carne) 
fazia um tornado em berlim
eu tinha saído na mesma à rua
e chorava agora para dentro
naquela maca improvisada
a christina dizia, o corpo tem memória
e é do umbigo que vem
a saudade do ventre
as árvores caíam lá fora
raízes monstras inteiras sugadas
do chão e a minha mãe
a dois mil e oitenta e quatro
cigarros fumados
naquele renault clio bordeaux
no ano de mil novecentos e noventa e oito
quando eu não sabia ainda
de mitologia ou que a mãe
deixaria de fumar pouco mais tarde
eu ainda não sabia
da vénus de milo da carla
desenhada a sangue menstrual ou da
mulher turca abraçando o filho asmático
na piscina pública de kreuzberg
mas podia adivinhar já 
alguns semáforos ininterruptos
a memória do umbigo, esta solidão hereditária: 
cromossoma X. 

Do ruído

André Kertész, Veneza 1963

André Kertész, Veneza 1963

No livro Bruits (ruídos), Jacques Attali defende que se o ruído é sempre violência, a música é sempre profética. Ora, a humanidade parece estar cada vez mais ruidosa (num planeta sobrepovoado), como se o barulho, e quase só ele, marcasse as zonas de influência vitais de cada indivíduo. Para quem trabalha numa escola isto é insofismável, quase visceral, mas descubro cada vez mais algo parecido nos múltiplos campos da vida social, o ruido tomou conta do mundo.

Pierre Bourdieu, sociólogo activista, via com bondade o falar alto das classes trabalhadoras, habituadas, por necessidade, a comunicações estridentes nos locais de trabalho. Mas talvez seja uma excepção, e mais teórica do que prática (Bourdieu não frequentava os ajuntamentos populares nem imergia incógnito, como Simone Weil, nas fábricas). Nietzsche, por sua vez, tantas vezes histriónico, dizia que as grandes coisas surgem de maneira sussurrante. George Steiner imaginava o Borges conservador no silêncio do seu gabinete inventando o mundo que realmente existe (a conservação requer este tipo de invenção). Muitos outros, com toda a razão, perceberam a dissonância entre a leitura e o ruído (mesmo os romances ruidosos de Martin Amis exigem silêncio). Por isso, perdendo-se a leitura perder-se-á também uma parcela importante de silêncio, com certeza um dos seus últimos redutos. Pode até acontecer que estrangeiros cósmicos baptizem a Terra como o planeta do ruído supérfluo

Isto não é um epifenómeno, pela leitura fazemo-nos maiores, é esse o milagre, que agora se troca pelo ruído, por vocalizações elementares, por formas de comunicação multiformes que privilegiam as imagens, intrinsecamente barulhentas, impedindo ou dificultando a solidão, a reflexão, a contemplação. Estamos na era do homo festivus, o divertimento tornou-se um fim em si mesmo (potenciando a gigantesca indústria do entretenimento). A maioria dos humanos está alienada num hedonismo epidérmico, composto por fluxos imprevisíveis de prazer e um sentido agudo da irrisão em relação à complexidade, ao pensamento profundo.

Creio que os grandes leitores são conservadores, como Borges. Mesmo quando lêem futuristas (James Joyce, Virginia Woolf, George Orwell, Fernando Pessoa, Albert Camus, Garcia Márquez, Thomas More, J. R. R. Tolkien...), parece até que toda a literatura tem o objectivo de abrir portas, inventar mundos e vidas possíveis. Mas não pode fazê-lo sem recuperar alguns códigos já preenchidos com significados extraordinários, uma vasta genialidade de longo tempo compõe a inteligibilidade literária, houve experimentações tão ousadas que continuam a chocar, análises tão finas e precisas que se tornaram indestrutíveis, invenções tão perfeitas que parecem divinas, o passado é por vezes inultrapassável. Claro que há um lado burlesco neste apego, talvez involuntário, ao antigamente. É um pouco isso que diz Steiner sobre Borges: “No fundo, Borges é um conservador, um guarda do tesouro de banalidades caducas, um classificador de antigas verdades e suposições que transbordam dos sótãos da história. Toda esta arquierudição tem os seus aspectos cómicos e discretamente histriónicos.”[1] Mas se não conservarmos nada e se o ruído preencher os novos marcadores de sentido, se uma vaga descontrolada exigir a inovação frenética, o novo pelo novo, servido com estridência, como poderemos perceber a viagem humana, sobretudo aquela que está por fazer? Reconheçamos que existimos na partilha das ideias, as de ontem são tão vitais como as de hoje. Mas também, que só há ligações, temporais e pessoais, inteligentes e gentis se ninguém falar mais alto do que os outros, ninguém ocupar a zona de silêncio, íntima, de ninguém.

[1] Rober Boyers (org.), George Steiner em The New Yorker, Lisboa: Gradiva, 2010, p. 218.

Adam Zagajewski, "O blusão verde"

Tradução de João Ferrão e Anna Kuśmierczyk

Quando o pai caminhava em Paris,
muitas vezes num blusão verde,
que mandou fazer para si à medida
(um dos poucos luxos
na sua vida bastante modesta)
quando passava longas horas no Louvre,
estudando as obras de Corot e de outros pequenos
mestres dos séculos passados,
eu ainda não sabia, não podia saber,
quanta destruição se escondia
nos anos que então se aproximavam,
como se esse blusão verde
lhe trouxesse infelicidade,
mas, contudo, compreendo agora,
desconfio, que a catástrofe
foi cosida por dentro de todas as suas roupas,
independente das cores ou das formas,
e até o maior dos mestres da pintura
em nada o podia ajudar.

A oitava sinfonia de Jean Sibelius

A música, o seu medido passo
e altos voos, é como se nem a ouvissem

Prefiro fazer-lhes a vontade inteira
inspirar-lhes  a surdez até ao fim
e tudo resolver em cinzas
Não será uma sinfonia incompleta
mas literalmente acabada

Só para as aves os trabalhos sublimes
sobre o lago, a visão maior
Eu vou render-me aos trilhos
que o tempo fechou e confundir as mãos
com as folhas agora vazias e perfeitas

Talvez escassa a arte, diziam, mas é esse
o temperamento, apenas água e os
brilhos inquietos do gelo

Bastam-me a casa confortável
o fogo que há-de ser útil, ébrios licores
à volta o mundo inteiro sobressaltando
as janelas, bosques, tremendos
estampidos, preciosos silêncios

É simples, apresso o andamento
desta música, um pouco mais cedo
de si, e tão de mim, alheia

Logo cai o crepúsculo
partem gansos para longe 

Idalina Costa Santos

Que tinha mandado fazer um carimbo com o nome dela e que, lábios horizontais a mostrar o encaixe oblíquo de dentes contentes, É para si. 

Por isso me ligou a minha madrinha, porque o Sr. Francisco lhe oferecera um carimbo com o nome dela - Idalina Costa Santos. E seguiu-se o ritmo de compasso perfeito do que devia ser o tal carimbo no seguimento de almofada, papel, almofada, papel. Ouvi-o do lá de cá do telefone, trepidante de Idalina Costa Santos, Idalina Costa Santos. 

A minha madrinha sempre surgira assim, qual carimbo, a uma batida surgia um mundo, num processo em que não há processo, almofada e papel com tudo. Era assim. Eu longe, numa nudez de intimidade, e ela surgia. Em todo o lado, a Idalina, numa explosão, teimosa de inconveniência. 

Anónimo, o escritório do Sr. Francisco fede a uma idade sem princípio. Fede-me a minha madrinha Idalina ao mesmo. Diz ela que desde há quarenta e três anos a pôr carimbos. Ela, não o Sr. Francisco, que cada macaco no seu galho. De modo que uma vida cheia de batidas, almofada, papel, almofada, papel. Diz ela que não só batidas dessas, que muitas outras. Por mim, vejo-lhe a vida toda encaixadinha de mesmos, nem sequer a surpresa de ela surgir a explodir de um vácuo qualquer, porque o hábito de aparecer assim de surpresa. A vida encaixadinha de mesmos, de iguais, de carimbos. 

Mas dizia-vos que me ligou porque o Sr. Francisco, braço reto, esticado, na mão um carimbo, É para si. E o mel dos olhos, não para o Sr. Francisco, para o carimbo, a seguir as letras sóbrias de Idalina Costa Santos. Uma gratidão eufórica dos órgãos dentro dela tomou conta do momento. E os olhos tomaram a transparência e a paralisia das emoções fortes. Saiu-lhe um desconcertado Obrigada. Obrigada, disse-me. Obrigada. Muito obrigada. 

Que isso sempre foi, muito grata. Dizia-me que devemos agradecer a vida, mesmo que de carimbos. Mesmo que só batidas dessas. Inconveniente, a minha madrinha, não?