Abrir mundos

MV5BOTkyYjFkYWEtMzNlOC00OTNhLTlhMzctNGJhM2Q0NDllMzRlXkEyXkFqcGdeQXVyNTk1NTMyNzM@._V1_.jpg

Espelho.
Espectro.

Duas palavras abrem vários mundos. Cada um de nós, leitores, poderia relacionar “espelho” e “espectro” de diferentes maneiras. Ao ler este breve poema de Luis Marcelino Gómez, eu vejo um homem cansado, olheirento, talvez meio despido, contemplando um espelho. Gasto por tremendos trabalhos, esse corpo assoma, fura o escuro, arrasta consigo muitas carapaças. Vejo, no fundo, um espectro, uma criatura que perdeu parte da energia ou do idealismo, que viveu sonhos, tantos deles convertidos em desilusões, e que agora está ali, resistindo a uma furiosa vontade de deixar de ser quem é. Espectro, coisa pesada, remete-me para uma certa ideia de regresso ao passado, de reviver a juventude, de voltar a ser aquele que tudo fazia sem medo. O jovem que não era fantasma. Uma sombra de nós mesmos, eis o que acabamos por ser a certa altura. Uma vida enrugada cobrindo um montão de existências antigas. Estas poderiam ser chaves para uma aula de escrita criativa.

Espectro.
Espelho.

A partir daqui, pedimos aos estudantes que inventem um mundo. Poesia, arte. Muito passa pelo que não está escrito.

Pier Paolo Pasolini, "Versos do testamento"


Pasolini.jpg

Tradução de João Coles


Versos do testamento

Solidão: é preciso ser muito forte
para amar a solidão; é preciso ter boas pernas
e uma resistência fora do comum; não se deve arriscar
uma constipação, uma gripe ou dor de garganta; não se deve temer
ladrões ou assassinos; se calhar caminhar
durante toda a tarde ou talvez toda a noite
é preciso sabê-lo fazer sem se dar conta; sentar-se não tem lugar;
uma espécie de inverno; com o vento que sopra sobre a relva molhada,
e as pedras entre o lixo húmidas e enlameadas;
não há qualquer conforto, isso sem sombra de dúvidas,
a não ser o de ter pela frente todo o dia e toda a noite
sem deveres ou limites de qualquer natureza.
O sexo é um pretexto. Por muitos que sejam os encontros
- e mesmo no inverno, nas ruas abandonadas ao vento,
entre as pilhas de lixo encostadas aos prédios distantes,
que são muitos – não são senão momentos da solidão;
mais quente e vivo é o corpo gentil
que unge de sémen e desaparece,
mais frio e mortal é o dilecto deserto em volta;
é esse que enche de alegria, como um vento milagroso,
não o sorriso inocente, ou a turva prepotência
de quem se vai embora; ele leva atrás de si uma juventude
enormemente jovem; e nisto é desumano,
pois não deixa rasto, ou melhor, deixa só um rasto
que é sempre o mesmo em todas as estações.
Um rapaz nos seus primeiros amores
não é senão a fecundidade do mundo.
E o mundo assim chega com ele; aparece e desaparece,
como uma forma que se transmuda. Todas as coisas permanecem intactas,
e tu poderás percorrer meia cidade que não voltarás a encontrá-lo;
o acto foi cumprido, a sua repetição é um rito. Portanto,
a solidão é ainda maior se uma multidão inteira
aguarda a sua vez: aumenta, de facto, o número de desaparecimentos -
ir-se embora é fugir – e o seguinte paira sobre o presente
como um dever, um sacrifício a cumprir pela vontade de morte.
Envelhecendo, porém, o cansaço faz-se sentir,
particularmente no momento imediato após a hora de jantar,
e para ti nada mudou: e então por um triz não gritas nem choras;
e isto seria enorme se não fosse apenas cansaço,
e talvez um pouco de fome. Enorme, pois significaria
que o teu desejo de solidão não mais poderia satisfazer-se
e então o que te espera, se o que não é considerado solidão
é a verdadeira solidão, aquela que não consegues aceitar?
Não há jantar ou almoço ou satisfação do mundo,
que valha um passeio sem fim pelas ruas pobres
onde precisamos de ser desgraçados e fortes, irmãos dos cães.

In Trasumanar e organizzar (1971)


Versi del testamento

Solitudine: bisogna essere molto forti
per amare la solitudine; bisogna avere buone gambe
e una resistenza fuori dal comune; non si deve rischiare
raffreddore, influenza e mal di gola; non si devono temere
rapinatori o assassini; se tocca camminare
per tutto il pomeriggio o magari per tutta la sera
bisogna saperlo fare senza accorgersene; da sedersi non c’è;
specie d’inverno; col vento che tira sull’erba bagnata,
e coi pietroni tra l’immondizia umidi e fangosi;
non c’è proprio nessun conforto, su ciò non c’è dubbio,
oltre a quello di avere davanti tutto un giorno e una notte
senza doveri o limiti di qualsiasi genere.
Il sesso è un pretesto. Per quanti siano gli incontri
- e anche d’inverno, per le strade abbandonate al vento,
tra le distese d’immondizia contro i palazzi lontani,
essi sono molti – non sono che momenti della solitudine;
più caldo e vivo è il corpo gentile
che unge di seme e se ne va,
più freddo e mortale è intorno il diletto deserto;
è esso che riempie di gioia, come un vento miracoloso,
non il sorriso innocente, o la torbida prepotenza
di chi poi se ne va; egli si porta dietro una giovinezza
enormemente giovane; e in questo è disumano,
perché non lascia tracce, o meglio, lascia solo una traccia
che è sempre la stessa in tutte le stagioni.
Un ragazzo ai suoi primi amori
altro non è che la fecondità del mondo.
E’ il mondo così arriva con lui; appare e scompare,
come una forma che muta. Restano intatte tutte le cose,
e tu potrai percorrere mezza città, non lo ritroverai più;
l’atto è compiuto, la sua ripetizione è un rito. Dunque
la solitudine è ancora più grande se una folla intera
attende il suo turno: cresce infatti il numero delle sparizioni –
l’andarsene è fuggire – e il seguente incombe sul presente
come un dovere, un sacrificio da compiere alla voglia di morte.
Invecchiando, però, la stanchezza comincia a farsi sentire,
specie nel momento in cui è appena passata l’ora di cena,
e per te non è mutato niente: allora per un soffio non urli o piangi;
e ciò sarebbe enorme se non fosse appunto solo stanchezza,
e forse un po’ di fame. Enorme, perché vorrebbe dire
che il tuo desiderio di solitudine non potrebbe essere più soddisfatto
e allora cosa ti aspetta, se ciò che non è considerato solitudine
è la solitudine vera, quella che non puoi accettare?
Non c’é cena o pranzo o soddisfazione del mondo,
che valga una camminata senza fine per le strade povere
dove bisogna essere disgraziati e forti, fratelli dei cani.

In Trasumanar e organizzar (1971)

Regurgitações Revisitadas 

O verão arrefeceu, a máquina parou, os marmelos, 

Já devem estar maduros, não tardam os vidros embaciados, 

Na cozinha, com a lareira a prometer incêndios caseiros, 

Como no verão do rei leão e os mexilhões do rio, 

Levados quase à extinção, porque a família toda, 

Agora o rio uma amostra de quando se vivia de verdade, 

Como revisitar um álbum de fotografias molhado, 

Umas quantas horas para fingir que ainda se é feliz, 

Uma mão cheia de mexilhões, quanto muito, 

Uma loirinha finlandesa a tomar conta de um vazio 

Demasiado grande para quem quer que seja, 

O verão frio, as andorinhas umas putas que se põem 

A milhas logo que as manhãs não lhe nascem douradas, 

A máquina aqui, a máquina tão longe, espera, 

Não esperes beber o copo que lançaste na terra, 

Nem reacendas o fósforo numa noite apagada, 

Nos primos mais jovens, já a última inocência, 

Viver é uma extinção imensa e singular, 

Na varanda a estas horas só cresce o pó frio das folhas mortas, 

Que esperas de janela aberta quando o Outono regressa, 

Além do cinzento que te pinta os ossos da cor da alma, 

E os meus dentes não trincarão a marmelada deste ano, 

Nem sei se as uvas estão boas, os pés lembram-se, 

O ano acaba logo no fim de Agosto, quando não há mosto 

No ar de Setembro, a aguardente mora ao lado do sono da infância, 

Não há verso que sirva, quando as fotos se descolam do álbum. 

 

18.09.2018 

 

Turku

O TOURO ALEGRE NA ARENA DE CÉSAR

“em pago de sofrer tantas durezas
provai, senhora, em mim vossas cruezas”

                                         Camões

 

Todos em surdina avistavam o Touro, o esquecido,
O destemido Touro, exibindo o velho dorso na pele
Usada da escrita. Alegremente espera o espeto!
Rasgo a pele até ao fio mínimo, onde a vã e seca -
A mioleira - se esgota lentamente. A liberdade
Do outro, daquele que não tem voz, pede, não
A gaivota parva que esvoaça, mas a raiva dos que
Sabem amar todo e qualquer corpo Vivo.

Manet - “O Toureiro morto”, C. 1864-65.

16.11.18