3 Poemas de João Miguel Henriques

São Martinho

leva-os pelo caminho do santo
pela vereda do peregrino

diz-lhes do viço e da ventura
do jugo e da longa jornada

assinala na terra ensopada
pegadas de porco e de cervo

e fá-los deslizar dedos por sebes
cabelos e pontas de dedos
por ramos e folhas de sebes

diante já do cotovelo
onde a estrada dobra para a floresta
fá-los reparar nesse estandarte
de são martinho, branco e amarelo
que um dia arranquei ao teu vestido


Hotel Sarajevo

tu devias-me uma tragédia
e eu fiz-ta pagar em incêndios

faculdade de direito
junto à estátua do cavalo
a polícia anda à nossa procura
e o dia ameaça a denúncia

as fronteiras estão todas fechadas
o povo exige a nossa cabeça

quero esconder-nos numa viela
na cave esconsa do taberneiro
mas não há ruas para o teu corpo
tu já sequer cabes no mundo

por isso pagaste a tragédia com fogo
ateado na ponta dos dedos

tudo isto, claro está, noutra cidade
que não a colónia massacrada


Letra

atenta, a letra
de lenta curva
já curvilínea
vem lembrar-me que existe
que ainda corre
e se apresenta:

abrigo para a ira do dia
salvação para a tormenta


João Miguel Henriques é um dos autores em destaque no mês de Fevereiro na Enfermaria 6. O seu perfil pode ser lido aqui.

Charles Bukowski, "Sossego"

tradução de José Pedro Moreira

Sossego


sentado esta noite
diante desta
mesa
junto à
janela

a mulher está
de mau-humor
no
quarto

estes são os seus
dias especialmente
maus.

bem, eu tenho
os meus

portanto
em consideração
para com ela

a máquina de escrever
está
parada.

é estranho,
escrever isto
à
mão

lembra-me de
dias
passados
em que as coisas não
estavam
a correr bem
noutros
aspectos.

agora
o gato vem
visitar-
-me

refastela-se
debaixo da mesa
entre os meus
pés

estamos ambos
a derreter
no mesmo
fogo.

e, caro
gato, estamos ainda
a trabalhar no
poema

e alguns
observaram
que há um certo
“declínio”
aqui.

bem, aos 65
anos, eu posso
“declinar”
o que me apetecer, e ainda assim
dar
uma abada
a esses críticos
da treta.

Li Po sabia
o que fazer:
beber outra
garrafa e
enfrentar
as consequências.

volto-me para a minha
direita, vejo esta enorme
cabeça (reflectida na
janela) a chupar
um cigarro
e

sorrimos
um
ao outro.

então
volto
atrás

sento-me aqui
e
escrevo mais palavras neste
papel

não há nunca
a grandiosa
declaração
derradeira

e essa é o
engano
e o truque
que funciona
contra
nós

mas
gostava que pudessem ver
o meu
gato

ele tem uma
mancha
branca no
focinho
contra um
fundo
laranja-amarelado

e então
quando olho para cima
na direcção da
cozinha

vejo uma parte
clara
sob as luzes
do tecto

que se esbate
no escuro
cada vez mais
escuro até
não ver
mais
nada.

 

Charles Bukowski, You Get So Alone At Times That It Just Makes Sense, 1986

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RYMAN

 

                                        para o João Miguel Fernandes Jorge

*

É preciso fechar os olhos para ver!
Se a força não permitir o seu fechamento
devemos então enterrarmo-nos na mais branca neve
sem roupa
nus como convém à entrega absoluta
para ir ao encontro da mais gloriosa das formas
inclassificadas,
ditas informes por alguns.
Talvez apenas disformes ou, simplesmente,
divididas em constelações dispersas, contendo em si
um leve fio entre o nosso olho mental e a morte.
Sempre a morte. 
Fechemos os olhos e se não os abrirmos
talvez vejamos a presença terrífica do Ser,
a que muitos chamarão, por preguiça, cegueira. 

Não há brancura ou deleite, Pedra Pomes,
ou a tomada de consciência de que além do ser
existe outro ser.
Tomara todos termos o dom de reduzir à
entranha mais branca do medo
a negação absoluta ou a
mais possante afirmação
redizer toda a forma
fechar os olhos
abri-los e ver toda a potência num único
plano.

  **

O desconforto, o vazio ou, simplesmente,
a mais agónica impotência trazida para o corpo de
quem ama ardentemente
 a brancura, o pensamento,
a mais branca pele, a película
subjacente
de outra
tonalidade, a afirmação da imensidão
da tentativa de dizer. 

O Corpo branco,
de variados brancos, películas sobrepostas de gotas
de azul transparente,
esparguete revestido da mais paciente atenção. 

Tingido o olho,
o pensamento tenebroso
ousa encontrar os fios perdidos entre a
palavra e o caos informe.

   ***

 O cego que vê,
seduzido desejo da terrível condição do insubmisso,
cujo apaziguamento nunca virá numa generosa afirmação,
- abraço ou gesto prolongado
da obra ao espetador -
tenta recolher os cansados dias,
as penas lançadas da derrota,
a pluma branca do cavaleiro que nunca saiu do lugar. 

Talvez aí, a água calma,
profunda,
com laivos de tentadora vibração,
caia sobre nós,
os insatisfeitos da facilidade das entregas. 

Leva-me ao corpo paradoxal do ente que dorme,
desperta a mais leve doçura,
o bicho do pensamento que transporta a imobilidade do Tempo. 

Permanece, feito cobra, a cobra do corpo que morde.
A cobra, que morde sobre si mesma,
entra pela estrada
sem saber onde desemboca o abismo. Possa  

o Tempo
respirar pelos átomos da brancura do Ser!

12.2018

Robert Ryman - Untitled #1 1004 -(1960-61).jpg

Robert Ryman (1930-2019) - Untitled #1 1004 (1960-61) (Pormenor).

Cisne

  “I keep on fighting against God

In such a dirty, cruel place”

                                 Björk

 

 

Se houvesse cetim suficiente,
que me cobrisse a cintura larga, eu 
seria um conjunto de penas brancas
esvoaçando num lago gelado da Islândia. 

Porventura teria cantado, depois de subir
as escadarias vermelhas ou, simplesmente, depois
de ser condenada à morte.
Preferia, sim, correr e cantar em cima de
um comboio em movimento
a ter de contar as desaventuras da minha,
inexistente, vida sexual. Estão a ver o pantanal?
Isso, mas sem nenhum animal,
sem onça ou bico longo. 

Pobre de mim? Não. Quero que se fodam
os Homens, que me desejam, e as mulheres,
que me evitam. Quero, sim,
 a liberdade!
Acima de tudo, poder cantar com aquilo
que me caiu em sorte e
não pensar muito. Deixo
o pensamento para
os que têm, realmente, tempo.  

Se o cisne, enrolado no meu pescoço,
cantasse a minha morte, eu
jamais seria este corpo. 

Neste cetim branco, ele canta
a minha invisível garganta.

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Leda e o Cisne, Pompeia.

Not me

Artur,

 

   lembro-me de ti, estarias sentado ou serias a escada em que te sentavas? desculpa-me a pergunta, hoje acho que é parva, na altura julguei que a escada se tinha desmoronado em ti, ainda sinto os degraus. 

 

   A primeira coisa que te disse?... há coisas primeiras?... julguei que tinhas pouca experiência nestas coisas do “eu era” ou do “quando”... eu não estava aqui, ainda não estava aqui, tinha-te aclamado, e distorcido a tua voz a um ponto em que não tinhas degraus (ou serias uma escada?).

 

   Disseste-me: “sou um amigo”.

 

   Um amigo?... Fiquei embrulhada. Olhei-te nos olhos, havia algo de estranho nos teus olhos, reflectiam demasiada coisa, ou eram demasiado mortos... e então, bateu-me, é claro, pensei que já tinhas morrido, há muito, muito tempo. Não posso dizer que não estivesse surpreendida. Soube que todas as histórias, desde agora, começariam por “há muito tempo”, porque de facto tinham tempo demais. Por isso me senti sozinha, porque estava sozinha contigo, há muito, muito tempo.

 

   Vieste? Sorri com a tua arrogância de cometa: não fui eu, disseste, enquanto destruías lá de cima todos os astros que alguma vez caíram. “Nunca perdi o controlo”, como se fosses filho do sol, ou coisa assim. Olhei-te nos olhos: vendeste o mundo por um punhado de ideias. Imbecil. Dei-te a mão, um inócuo passa-bem, e voltei a casa com a tua arrogância na cabeça. Filho do sol o caralho. E durante anos aquilo ficou-me na cabeça, o filho do sol, quem diria, durante anos olhei-te com um olhar parado, e quando dei por mim estava a caminhar contigo durante um milhão de anos.

 

   Disseste: “agora estamos mortos juntos”.

 

   E ninguém nos disse. Quem sabe?... Eu não. Nunca perdi o controlo, especialmente quando falei com os teus olhos, há muito, muito tempo, como todas as histórias que morreram antes de nós, antes de teres vendido o mundo para dares umas voltas no carro do teu pai. Com o homem que vendeu o mundo. Olhos nos olhos.

 

Desculpa.

 

Isabel