ὁ μῦθος δελοῖ ὄτι

1

os factos são empilhados
diante de nós
não sejamos púdicos
os factos são cadáveres
o do rapaz das asas
os dos infantes
trespassados
pelas baionetas
o do padre nu
decapitado
diante da congregação
do seu pescoço
não cresceram lírios
o da sua filha
usada pelos soldados
antes de abatida
os de todos
os que celebravam
o casamento
e assistiram à noiva
a ser violada
pelo regimento
em formação cerrada

o folheto assegura-nos
de que acção
reproduz o mais fielmente possível
eventos reais
que tiveram lugar
na vila de Distomo
junto a Delfos
a 10 de Junho de 1944

 

 2

no final
o dramaturgo
sobe ao palco
por entre aplausos
fala
do dever do artista
para os salvar do esquecimento
para que não seja em vão
para que haja um sentido
para o seu sofrimento
e alguém lhe traz
um ramo de rosas

 

3

já não me recordo dos seus nomes
pergunto aos cadáveres
os cadáveres
não falam comigo
os cadáveres
não falam com ninguém
recusam
qualquer explicação

mas à maneira de Esopo
temos este mórbido vício
de espremer de cada dor
uma moralzinha maneirinha
de fácil arrumação
como bíblias
nas mesinhas-de-cabeceira
de um motel de má-fama
e instintivamente dizemos
a história mostra que
porque não queremos
vir dali de mãos a abanar
não
isso não pode ser
no acumular está o ganho
e quase sempre acrescentamos
algo de estúpido e obsceno
como
para que não volte a acontecer

 

 4

na sessão com o autor
alguém falou
do processo pendente
de assunção de dívidas
convertendo crimes passados
em moeda corrente
foi então que a Marialena
sentada atrás de mim
escondeu a cara entre as mãos

qual o preço de uma vida humana?

quando vence uma dívida?

qual a taxa dos juros de mora?

tudo questões
com que os mortos
não têm de se preocupar

Frutos estranhos

Filho de um tempo esquinado
Fruto esquisito da árvore
Em que me vi pendurado
A arder do sul e da sarça
Não tenho bem destrinçado
Se é mal do cú ou das calças
Mas esta vida não serve

E se este não apertado
Se me fixou na garganta
Como uma ideia não deve
Disfarçar não adianta
A queda está para breve
E volta tudo ao princípio.


De Sebastião Belfort Cerqueira, Monda, Edições sempre-em-pé, 2019