Quelques regrets

Nestas ruas do Poço do Bispo
que, já então, eram feias como agora,
andámos à procura duma loja de instrumentos.
Sonhávamos com música;
a loja, repleta de órgãos partidos e bafientos,
pareceu-nos a caverna de Ali Babá,
preciosa para brincarmos aos conjuntos;
enfim, eu não queria brincar, nem mesmo sonhar,
queria encontrar a música nas coisas palpáveis,
queria ir ter com ela, na vida, e depressa.
Demasiado depressa. Não me acompanhavas.
Ainda nesse Verão, depois dumas horas
a tentar ensinar-te os acordes de “I love her”
disse-te o que ainda hoje dói
e já não se desdiz.
Os prédios, os carros estacionados
ficaram no mesmo sítio,
mas um grande e largo rio
de baba e ranho
correu e separou-nos para sempre.
Dizem que, aqui, o oriente de Lisboa
era lindíssimo antes da indústria.
De olhos fechados, ainda se avista esse lugar ameno,
belo como a tua amizade imerecida.

14/06/2019


O perfil de João Paulo Esteves da Silva pode ser lido aqui.

notas para um ataque de pânico

Brassaï, La Bastoche, Rue de Lappe, 1932

podia ter a ver com o modo
como no fim da adolescência
aceitaste todo aquele dinheiro
para deixar que cortassem as oliveiras
e o último dos pessegueiros
o mais teimoso de todos
aquele que apenas florescia
e nunca teve a gentileza
de dar pêssegos
ou mesmo sequer uma laranja 

ainda que tanto tempo depois
eu continue a achar
que as suas flores foram para mim
a mais perfeita lição de arquitectura 

naquele ano em que entendeste
que tinhas vivido
aqui que chegasse
e com a raiva de um louco
decidiste que era preciso partir
primeiro para paris
onde viveste durante meses
perto de place de l’odeon
que nunca atravessaste
sem te lembrares
que certa vez aí robert desnos
tinha tentado esfaquear ezra pound
num jantar em que este queria afinal
ter esfaqueado jean cocteau

e onde tu não tentaste matar ninguém
e quiseste apenas esquecer walt whitman
canto de mim mesmo
e duas frases riscadas a vermelho
num caderno de capa verde
com a parte de baixo manchada de café
e eu queria ter aprendido de cor
a tua solidão as suas complicadas sílabas
compreender que rosto teria ela
em que língua a sua respiração
queria rever uma última vez
a tua dignidade complicada
de homem demasiado alto
erradamente surpreendido
no enredo de um quadro de el greco 

e no meio de todas as tretas
que entretanto me contaste
e que entretanto te contei
tão abaixo da beleza
qual seria a sua verdade
qual seria a verdade de quem és
na tua solidão
quanto valeria afinal
o som da tua voz num quarto vazio
esta lacuna de conhecimento
que já é
o meu arrependimento e tristeza
a prova irrefutável da minha
total ignorância
agora que posso livremente declarar
que prefiro que me esmurrem o nariz
a deixar-me abraçar por ti  

e mais tarde esse traço de um som
perdido num risco de caneta
numa desatenção silenciosa
transferiu-se
como às vezes
o papel absorve a tinta
e teve a sua metamorfose 

veio a tornar-se a minha solidão
esta quieta forma de lucidez
que me encontrou já tarde uma noite
ao descalçar os sapatos
debaixo de uma mesa
num pequeno apartamento
nos arredores de chicago
enquanto oitocentas pessoas
respiravam ao meu redor
em blocos intermináveis
de anonimato e betão armado
e assentou sobre a minha pele
como suor de um trabalho só meu
pesou sobre mim como o som dos trompetes
como a canção de jazz que nandia
ainda haverá de escrever a milhas daqui
em harilaou trikoupi
porque são os meus amigos
e não como ela me disse
os dela
a minha mais perfeita obra de arte  

a que me acompanhará até quando me alcançar
tudo o que já não irei entender
até o modo como duas tristezas se podem
encontrar e confundir
sem nunca se assemelharem
e de como o mesmo
nunca é verdade da alegria 

uma verdade demasiado real
subtraída a um jogo de que me tinha esquecido
onde os contrários vão para se anularem
onde deixa de importar se são
botões de saias ou nós de gravatas
se durou dez horas ou quatro minutos
se o bar se chamava ingrato inquilino
ou pensão amor 

lugar em que se confundem coisas incríveis
e onde há gente capaz de recusar
defender-se
capaz de recusar parecer bem
na fotografia enquanto por dentro
se contorce de dor
só para que na sua lápide se leia:
a vida – podia ter sido pior
essa gente cada vez mais difícil de encontrar
com uma certa dignidade mágica
que talvez eu já não vá descobrir
em lugar nenhum 

de tudo o que me falta
falta-me agora a tua coragem
que nem sequer está já
junto ao mar para lá de assos
onde ulisses quase morreu
de amor e vontade de regressar
e onde quase me afoguei
certa vez do modo que se afogam
sempre os estúpidos
julgando que conhecem o mar 

digo-te mesmo que tem de haver alguém
que se lembre alguém que possa mesmo nadar tanto
e não como uma maneira de fugir
numa cidade onde os poetas
se esfaqueiam uns aos outros
mas para o teu encontro contigo
e do meu com coisas ainda sem nome
e até com o ataque de pânico da capitã
da equipa de rugby da universidade
estendida num tapete ao lado do meu
na última aula de yoga do dia 

o inalador da asma ao lado
da sua chave de casa e da carteira
o meu susto ao ver chegar
o seu terror absoluto
um galope que ninguém poderia parar
o frenesim que o deus dioniso
inspira nas bacantes  

e porque só as mulheres são bacantes
esperado e planeado para acontecer
numa sala onde só vão mulheres
o seu choro
como o começo de um vendaval
um mapa magnético cheio de testemunhas
mas afinal com apenas um sujeito
e um só predicado
uma das poucas vezes em que sei ter visto
uma tristeza total
que gramática nenhuma
de língua nenhuma
podia ter redimido
uma tristeza julgada impossível
num corpo feito para vencer
e sentindo pela primeira vez
com uma terrível incompreensão
uma inexplicável derrota  

e pode ser que seja só tudo um jogo
só que eu não quero
fingir e sobreviver não quero
e escrevo isto para te dizer
que já sabes que morro sempre
e depois da morte regressarei
não para viver todos os momentos
que não vivi junto do mar
mas para te pedir coisas
exorbitantes e surpreendentes
que continuam a ser para mim  

o necessário desconhecido

Oxford, 9 de Março de 2023

Cartas de amor entre Simone de Beauvoir e Albert Camus

Traduzimos (Victor Gonçalves) duas cartas inéditas de Simone de Beauvoir e Albert Camus publicadas no dia 1 de abril de 2023 na revista francesa Philosophie magazine. Em breve farão parte de um livro.

Dão-nos a saber que Beauvoir e Camus mantinham uma relação amorosa secreta, ou clandestina. A receção ficou surpreendida, um pouco como eles, com o arrebatamento, mais dionisíaco em Beauvoir, do amor-paixão que os prendeu. várias vezes, de um e do outro lado, sentimos que receiam sucumbir à torrente da paixão. Vemos também como Beauvoir é bastante mais sensualista do que Camus, que, aliás, a trata na terceira pessoa. Fazendo jus a um feminismo assente na liberdade e responsabilidade individuais em vez de em dispositivos institucionais, é Beauvoir quem mais arrisca nesta troca epistolar, nas palavras e julgamos que nos atos, perante o homem e perante as convenções. Beauvoir publicou O Segundo Sexo em 1949 e dois anos antes Para uma Moral da Ambiguidade, é também um pouco destes livros que vislumbramos nas entrelinhas da sua carta. Do primeiro, emerge a crítica às assimetrias homem-mulher (invertidas, aqui) e, entre outros, a superação (contradição?) da sua visão negativa do amor-paixão. Do segundo, a insistência na conquista permanente da liberdade, até contra a alienação amorosa. Com refere nesse livro, «A liberdade é a fonte a partir da qual surgem todos os significados e todos os valores; é a condição originária de qualquer justificação da existência; o homem que procura justificar a sua vida deve acima de tudo e absolutamente querer a própria liberdade: ao mesmo tempo que exige a realização de fins concretos, de projetos singulares, exige-se universalmente». Mas reconhecendo, na linguagem das entranhas mais do que na da metafísica, que a «liberdade nunca será dada, terá sempre de ser conquistada». É esta conquista que talvez se possa ler na decisão de tratar Camus por tu.

Sabendo do pacto de sinceridade firmado entre Simone Beauvoir e Jean-Paul Sartre, é plausível que este estivesse a par da paixão de Beauvoir, compreendida e absolvida pelo contrato de poliamor que os unia. Mas a querela que surgiu em 1947 entre Sartre e Camus (afirmava que os gulags eram uma versão dos campos de concentração nazis, enquanto Sartre tomava o partido da União Soviética, desculpando-lhe as imperfeições) intensificou-se nesta época. Alguns dirão que foi o resultado da publicação de O Homem Revoltado (1951). Recordamos que Camus propõe aí, contra a categoria política do homem revolucionário e a sua vontade de «mudar o mundo» (Marx), a do homem revoltado e a de «mudar a vida» (Rimbaud). E talvez isso tenha guiado a crítica de Francis Jeanson em Les temps modernes, a revista de Jean-Paul Sartre, à falta de materialismo de O Homem Revoltado. Incitando Camus a escrever uma carta de dezassete páginas ao seu amigo Sartre, onde diz, entre outras coisas, que está farto de receber lições, recusando que lhe digam o que deve escrever, sobretudo se forem intelectuais revolucionários imersos no conforto burguês, noutros termos, prosélitos da violência política revolucionária do comunismo enquanto vivem protegidos numa democracia que acusam de ser um sistema social fundado na desigualdade. Perante as injustiças, é preciso revoltar-se, mesmo que se isso se faça na incerteza. Que, aliás, Camus preza muito mais do que o dogma.

Sartre respondeu-lhe de forma assassina, criticando-o por interpretar as objeções ao O Homem Revoltado como uma blasfémia. Questionou também as suas competências filosóficas e disse-lhe que fazia opções incorretas e injustas entre quem oprime e quem é oprimido, que era um reacionário da revolução (soviética) que conduzirá à libertação dos povos.

A troca epistolar completa entre os dois intelectuais, sem dúvida dos mais relevantes da época, foi publicada em Les temps modernes. No imediato, Sartre ganhou a batalha das ideias. Muitos franceses suspeitaram que Camus era ingénuo e se inclinava para a direita. Ulteriormente, porém, o dogmatismo e a cegueira de Sartre e dos seus acólitos perante os horrores do estalinismo contribuíram para uma plena recuperação do poder da moderação camusiana.

Mas o que nos importa aqui é o encantamento Beauvoir-Camus, e também o medo de ousarem para lá da sua condição de intelectuais, deixando que as emoções toldassem o seu discernimento mais cartesiano. E porventura os ciúmes que a celebração de uma vida plena terá provocado em Jean-Paul Sartre.

Paris, 12 de outubro de 1951
«Minha querida Sissi,
Sabeis que não sou um homem para grandes entusiasmos. Meyrink disse: “É pelo sentimentalismo que se reconhece um patife”, e desconfio igualmente das exaltações demasiado demonstrativas. No entanto, cada um dos nossos encontros provoca em mim um lirismo que tento insensatamente reprimir. Bem sabeis também que só há salvação na arte e na ação. Bem — para mim, conjugais as duas. Que mais haverá para sonhar num encontro entre dois seres? Sois a minha música, a minha alma, a minha pintura, a minha … [palavra ilegível], simultaneamente a Graça e a Providência, em suma uma camarada como eu já não pensava poder conhecer, na solidão desta via que ambos escolhemos (se não foi ela que nos elegeu). Um artista sem musa não é muita coisa. Este lugar-comum, desculpar-me-á, é provavelmente válido para todos os homens. Ação, então! Aqui, mais uma vez, dais-me tanto. Seria quase suficiente para uma existência completa: uma luz para a noite do quotidiano, e os vossos “tentáculos das trevas” (uma expressão enfeitiçante na vossa boca), quando a necessidade de nos afastarmos é demasiado premente diante de toda a agitação do mundo. Que melhor coro, como diziam os gregos, do que os vossos braços? Tenho agora a sensação de ter vivido antes de vós o sacerdócio de um vigarista. Ora, a verdade, quando assoma, é a coisa mais brilhante e mais nua que existe. É provavelmente por isso que todos passamos as nossas vidas na penumbra; mas é apenas uma semi-obscuridade, já que o outro lado é tão brilhante que temos de nos proteger como se fechássemos persianas. Não estou a divagar — o que procuro desajeitadamente exprimir é que já não me posso cegar com esse orgulho irrisório que os homens obtêm pela independência, seja ela material, social ou emocional: amo-vos, minha Sissi. Peso as palavras, acerca das quais se queixa normalmente de que sou demasiado parcimonioso. Também sei o que elas significam na nossa situação. Finalmente, sim, amo-vos. E isso faz-me feliz. Porquê, então, privarmo-nos da felicidade quando ela surge? Vivamos!

P.S.: Vireis à Rua de Bellechasse na próxima semana? René deu-me a entender isso ontem. Espero que sim.
Albert»[1]

[Não datada]
«Caro velho puma,
Que prazer em te ler novamente. Cada uma das tuas cartas encanta-me e acorda-me do meu torpor seco. Se me visses de manhã, a vigiar atrás da janela as idas e vindas do carteiro como uma menina apaixonada, rir-te-ias certamente de mim. Sei que és galanteador, mas mesmo assim há aqueles momentos em que, por mais determinada que esteja em manter-se dona do seu destino e dos seus desejos, uma mulher só pode render-se às inclinações surdas do seu sexo. A ternura por si só não é suficiente, requer outros prazeres; só tu sabes apaziguar este desejo que me consome. Ou melhor, atiçá-lo, infernal deleite celestial.

Ouço o que dizes. Também eu me entrego sem reservas. Sabes muito bem (e nisto admito-o tanto para mim como para ti) que só posso realmente encontrar nos teus braços o conforto pelo qual anseio tanto. Depois de tantas noites perdidas, para não falar dessas tardes insípidas em que ele [muito provavelmente Jean-Paul Sartre] mal se digna a falar comigo, ocupado a perseguir as saias de não sei que ingénua fascinada perante as suas tiradas, a tua humanidade, a amável receção do teu ouvido às minhas mudanças de humor, as tuas atenções mais ínfimas até, fazem-me um bem soberano. Dou por mim a falar-te de sede saciada, apetite satisfeito, sensualidade despertada... Também eu me sinto quase estúpida por formulá-lo desta forma. Assim seja: aqui estamos nós, os dois, espantados com a ingenuidade dos nossos corpos. Não será esta a definição de inocência?

O que pensas que é válido para os homens, como dizes, é bom para o resto de nós, meu caro; no entanto, porquê abafar o fogo que finalmente triunfa sobre o Inverno? O amor é uma criança sem vergonha, glorioso e impúdico. E todos os nossos sentimentos, mesmo proibidos (quem o decretou?) serão sempre mil vezes mais nobres, bonitos e vivos, do que esta situação pela qual ele me faz sofrer, e que se está a tornar francamente ridícula. De resto, não sei que tipo de mulher seria eu a denegrir o amor. Eis a inelegância que ele me arranca: estou restringida, suprema indignidade, a queixar-me a um terceiro. A ti, de quem sinto tanta falta, Albert. A tua voz penetrante, o teu sorriso felino, a tua respiração quente no meu pescoço solitário. A ti, meu oásis no deserto. Os meus pensamentos acompanham-te sempre, não duvides. Mal posso esperar para te ver no sábado. Farei todos os possíveis para vir mal termine o jantar.

Amoroso,
A tua»[2]

 


[1] Paris, le 12 octobre 1951
« Ma tendre Sissi,

Vous savez que je ne suis pas un homme de grandes effusions. “C’est au sentimentalisme qu’on reconnaît la canaille”, écrivait Meyrink, et de même, je me méfie des épanchements trop démonstratifs. Pourtant, chacune de nos rencontres fait naître en moi un lyrisme que je cherche sottement à réprimer. Vous savez bien, vous aussi, qu’il n’y a de salut que dans l’art et dans l’action. Eh bien – vous conjuguez pour moi les deux. Que rêver de plus, dans la rencontre entre deux êtres ? Vous êtes ma musique, mon âme, ma peinture, mon [illisible], la Grâce et la Providence tout à la fois, et tout simplement une camarade telle que je ne croyais plus en connaître, dans la solitude de cette voie que l’un comme l’autre nous avons choisie (si ce n’est elle qui nous a élus). Un artiste sans muse n’est que bien peu de chose. Cette platitude, vous m’excuserez, est d’ailleurs valable pour tout homme, probablement. De l’action, donc ! Là encore, vous m’en donnez tant. Cela suffirait presque à une existence complète : une lumière pour la nuit du quotidien, et vos “tentacules de ténèbres” (envoûtante expression dans votre bouche), lorsque le besoin de retrait se fait trop pressant face à toute l’agitation du monde. Quelle meilleure chora, comme disaient les Grecs, que vos bras ? Avant vous, j’ai désormais l’impression d’avoir vécu le sacerdoce d’un escroc. Or, la vérité est la chose la plus brillante et la plus nue qu’il soit lorsqu’elle éclate. Voilà sans doute pourquoi nous passons tous notre vie dans la pénombre ; mais précisément, il ne s’agit que d’une semi-obscurité, puisque l’autre versant est si étincelant que nous devons nous en protéger comme par des jalousies que l’on tire. Je ne digresse pas – ce que je cherche maladroitement à exprimer, c’est que je ne peux plus m’aveugler, de cette fierté dérisoire que tirent les mâles de leur indépendance, qu’elle soit matérielle, sociale ou affective : je vous aime, ma Sissi. Je prends la mesure de ces paroles dont vous vous plaignez que je suis d’ordinaire trop économe. Je sais aussi ce qu’elles signifient dans la situation qui est la nôtre. Enfin, oui, je vous aime. Et cela me rend heureux. Pourquoi donc se priver du bonheur lorsqu’il surgit ? Vivons !


P.S. : Viendrez-vous rue de Bellechasse la semaine prochaine ? René me l’a fait entendre hier. J’en ai l’espoir.

Albert »

[2] [non daté]
« Cher vieux puma,

Quel plaisir de te lire à nouveau. Chacune de tes lettres m’enchante, et me tire de ma torpeur sèche. Si tu me voyais le matin, à guetter derrière la banne les allées et venues du facteur comme une gamine amoureuse, tu rirais sans doute bien de moi. Je te sais flatteur, mais quand bien même, il est de ces instants où toute déterminée qu’elle soit à rester maître de son destin comme de ses attaches, une femme ne peut que s’abandonner aux sourdes inclinations de son sexe. La tendresse seule ne suffit pas, elle exige d’autres plaisirs ; toi seul sais apaiser ce désir qui me consume. Ou plutôt l’attiser, délice infernalement céleste.

J’entends ce que tu me dis. Je me livre moi aussi sans retenue. Tu sais bien (et en cela je me l’admets autant à moi-même qu’à toi) que je ne trouve véritablement que dans tes bras ce réconfort dont je me languis tant. Après tant de nuits délaissées, sans parler de ces mornes après-midi où Il daigne à peine m’adresser la parole, occupé à courir les jupons de je ne sais quelle ingénue transie devant ses tirades, ton humanité, l’accueil bienveillant de ton oreille à mes humeurs changeantes, tes plus infimes attentions même, me font un bien souverain. Je me surprends à te parler de soif étanchée, d’appétit comblé, de sensualité réveillée… Moi aussi, je me sens presque stupide de le formuler ainsi. Qu’il en soit ainsi : nous voilà deux à être étonnés de la naïveté de nos corps. N’est-ce pas la définition de l’innocence ?

Ce que tu penses valable pour les mâles, comme tu dis, l’est aussi pour nous autres, mon cher ; néanmoins, pourquoi étouffer le feu qui triomphe enfin de l’hiver ? L’amour est un enfant effronté, glorieux et impudique. Et tous nos sentiments, même interdits (qui l’a décrété ?) seront toujours mille fois plus nobles, et beaux, et vivants, que cette situation dont ll me fait souffrir, qui devient franchement ridicule. Du reste, je ne sais quel genre de femme je serais à dénigrer l’amour. Voilà l’inélégance qu’Il m’arrache : j’en suis réduite, suprême indignité, à m’en plaindre à un tiers. À toi qui me manques tant, Albert. Ta voix pénétrante, ton sourire félin, ton souffle chaud sur ma nuque solitaire. Toi, mon oasis dans le désert. Mes pensées t’accompagnent toujours, n’en doute pas. Je ne puis attendre de te voir samedi. Je fais tout mon possible pour venir dès le dîner expédié.

Amoroso,
Ta tienne
 »

Ésquilo, Agamémnon, 123-246

A minha tradução do Agamémnon de Ésquilo sairá com a edição de amanhã do jornal Público. Deixo aqui um dos meus passos preferidos. Tem lugar no párodo (o canto de entrada do Coro); o Coro, um grupo de anciãos, tenta interpretar um sinal que parece anunciar que o exército e o rei Agamémnon regressam triunfantes da guerra. Mas um temor incerto fá-los recordar um episódio que teve lugar dez anos antes, aquando a partida do exército, em que o rei sacrificou a própria filha para apaziguar a cólera de um deus e permitir que a experdição militar possa partir.
O párodo do Agamémnon é a secção lírica mais extensa que nos chegou da tragédia antiga. É também uma das mais belas.


CORO (Cantando e dançando)

Então, o prudente profeta do exército, vendo os dois, distintos em temperamento,
os dois belicosos Atridas, reconheceu nas devoradoras de lebres
os comandantes supremos do exército e assim falou, interpretando o prodígio:   
“Com o tempo esta expedição tomará a cidade de Príamo
e todos os numerosos
rebanhos das gentes[1] acumulados diante das muralhas o Destino saqueará
pela força.
Mas que ressentimento algum vindo dos deuses
obscureça com um golpe antecipado o grande freio de Tróia
pelo exército em formação. Em sua compaixão é aborrecida a casta Ártemis
pelos cães alados de seu pai
que a pobre lebre, antes que desse à luz a sua prole, sacrificaram.[2]
Ela abomina o festim das águias.”
Um triste canto entoai, um triste canto, mas que o bem triunfe!

epod.
“Tão graciosa é Hécate[3]
para com o orvalho indefeso dos feros leões
e para com as crias de leite
de todos os animais selvagens tão amável,
por isso pede que os prodígios se realizem,
a visão favorável, porém reprovável, †das aves†.
Mas suplico ao Péan[4] que acorre aos agudos lamentos
que contra os Dânaos nenhuns ventos adversos, retendo por longo tempo as naus em terra,
ela prepare, precipitando assim um outro sacrifício, sem música e sem festim,            
artífice de discórdias nado e criado na família,
que não teme homem algum[5] – pois permanece pronta a reerguer-se uma temível
e enganadora governanta, a Cólera que não esquece, vingadora dos filhos.”  
Estas palavras Calcas
proferiu, acompanhadas com a promessa de grandes bens,
quando leu no presságio das aves à partida o que estava destinado para a casa real.
Em consonância
um triste canto entoai, um triste canto, mas que o bem triunfe!

estr. 2
Zeus, seja ele quem for, se por este nome
lhe é caro ser chamado,
por este nome o invoco.
Com nada o posso igualar,
tudo pesando,
senão com o próprio Zeus, se do pensamento esta vã angústia                                   
é necessário realmente expulsar.

ant. 2
Daquele que outrora era grande[6],
transbordante de uma audácia capaz de tudo desafiar,
não se dirá sequer que foi.
E o que se lhe seguiu[7]
logo partiu ao encontrar o vencedor que o derrubou três vezes[8].
Mas aquele que de coração despojado o hino vitorioso de Zeus cantar
alcançará a suma sageza;                                                                                             

estr. 3
pois é Zeus que os mortais na senda do conhecimento
guia, que a aprendizagem por meio do sofrimento
estabeleceu como lei absoluta.
Goteja sobre o coração em lugar do sono
a mágoa que memora a dor. E, ainda que indesejada,
a sabedoria virá.
Onde é a graça dos deuses,
violentamente sentados no augusto assento do timoneiro?

 
ant. 3
E então o mais velho dos comandantes[9]
das naus dos Aqueus,
não recriminando adivinho algum,
conspirou com a sorte que o feria,
enquanto a demora devorava as provisões
e oprimia a multidão aqueia,
acampada defronte de Cálcis[10],
nas costas de Áulis, onde a rebentação ruge continuamente;

estr. 4
os ventos que do Estrímon[11] sopravam
um tédio nefasto, a fome, a má ancoragem,
o desvario dos homens, não poupando naus nem amarras,
tornavam a espera duplamente longa,
com o desgaste consumindo
a flor dos Argivos; e quando um outro
remédio mais pesado
do que a amarga tempestade o adivinho proferiu
aos primeiros do exército,
declarando Ártemis responsável, então, batendo com os ceptros
no solo, os Atridas
não contiveram as lágrimas,

ant. 4
e o mais velho dos chefes ergueu a voz para falar:  
“Sorte pesada é não obedecer,
pesada também se esquartejar a minha filha, jóia do meu lar,
manchando as mãos paternas
na corrente do sangue de uma donzela imolada
junto ao altar. Qual destas está isenta de mal?
Como me hei-de eu tornar um desertor das naus
falhando para com a aliança?
Pois o sacrifício
que acalme os ventos à custa do sangue de uma virgem desejam
com desejo extremo, mas proíbe-o
a Justiça. Oxalá tudo corra pelo melhor!”

estr. 5
Mas quando a si ajustou o jugo da necessidade,
do espírito soprando um vento de mudança ímpio,
impuro, sacrílego, então
mudou o curso do pensamento para a maior das audácias –
pois torna audazes os mortais a de vergonhosos conselhos,
a miserável demência, princípio da desgraça. E assim ousou
tornar-se o sacrificador
da filha como auxílio
para uma guerra vingadora de uma mulher
e sacrifício preliminar[12] à partida das naus.

ant. 5
Das súplicas e apelos ao pai
não fizeram caso, nem da virginal idade,
os juízes enamorados pela guerra.
Aos servos o pai, depois da prece, ordenou
que, como uma cabra, sobre o altar,
a que as vestes do pai com todo o coração abraçava, inclinada para a frente
a erguessem,
e que a bela proa da boca
selassem como vigia
contra alguma palavra de maldição para a casa

estr. 6
por meio da força de um freio e da violência emudecedora.
Quando já o seu vestido tingido de açafrão[13] pendia para o solo,
de seus olhos lançava ainda a cada um dos sacrificadores um dardo
piedoso, destacando-se como numa pintura, desejando
chamá-los pelo nome, pois outrora muitas vezes
nos hospitaleiros banquetes de seu pai
havia para eles cantado, a virgem que com voz pura a libação
terceira[14] do pai
amado com um péan[15] amoravelmente honrava.

[1] Expressão ambígua: significa ao mesmo tempo “rebanhos que pertencem ao povo” (o passado mítico em que a tragédia é projectada não conhecia ainda a cunhagem de moeda, por isso os rebanhos representam a riqueza da cidade), mas também “rebanhos de gente”, “rebanhos constituídos por gente”.

[2] Verso ambíguo. Em grego pode também significar: “que a sua própria filha, infeliz e cheia de medo, diante do exército sacrificaram.”

[3] Hécate era originalmente uma divindade infernal, mas como divindade tutelar dos partos e protectora dos recém-nascidos era por vezes confundida com Ártemis.

[4] “O que cura”: epíteto de Apolo, cuja intervenção é aqui implorada também na condição de irmão de Ártemis.

[5] Expressão ambígua: ao mesmo tempo “que não teme homem algum” ou “que não respeita homem algum”, i.e., que desrespeita a vida humana, e “que não teme o marido”.

[6] Úrano.

[7] Cronos, filho de Úrano, que venceu e depôs o pai.

[8] A imagem reporta à luta do pancrácio, onde o lutador que por três vezes derrubasse o adversário vencia o combate. O vencedor é Zeus, filho de Cronos.

[9] Agamémnon.

[10] A expedição grega reuniu-se em Áulis, na costa da Beócia. Diante de Áulis, do outro lado do Euripo, ficava a cidade de Cálcis.

[11] Rio da Trácia.

[12] Ver nota 8. Talvez se trate de uma alusão à variante do mito segundo a qual Ifigénia foi convocada a Áulis sob o pretexto de ser desposada por Aquiles (como na Ifigénia em Áulis de Eurípides).

[13] O vestido tingido de açafrão simbolizava uma transição bem-sucedida da infância para a idade núbil; o facto de Ifigénia o usar pode ser uma outra alusão ao pretexto por meio do qual foi trazida até Áulis.

[14] A terceira libação dos banquetes era em honra de Zeus Sôtêr (Salvador), tratava-se de um ritual com o fim de afastar os males e atrair prosperidade.

[15] Em geral, o péan era um hino em louvor de um deus olímpico (normalmente Apolo).

Poesia e filosofia: Victor Gonçalves e Tatiana Faia em Conversa

Simone de beauvoir em Les deux magots (Robert doisneau, 1944)

No contexto do Café Filosófico organizado mensalmente por Victor Gonçalves e pela livraria Snob os nossos editores Victor Gonçalves e Tatiana Faia encontraram-se para conversar um pouco sobre os elos que aproximam e afastam a poesia e a filosofia.

De Eduardo Lourenço às cartas de amor de Simone de Beauvoir a Albert Camus, parando na edição recente, em tradução de Victor Gonçalves, de Para Uma Moral da Ambiguidade de Simone de Beauvoir. Como escrever poesia e filosofia, o que é um bom poema ou um bom texto filosófico, são algumas das perguntas que pontuam esta conversa onde se perde o fio à meada. Como viver talvez seja a pergunta que junta a filosofia e a poesia.

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