Ó meu deus de Vasconcelos

Mário Cesariny, Este é o meu testamento de Poeta, 1994

O primeiro livro de Mário Cesariny que comprei foi a primeira edição de Pena Capital, acabada de lançar pela Contraponto.  Passava-se isto em 1957 e eu estava em Lourenço Marques.

É um livro do qual nunca me separei. Uma voz reveladora, cheia de sedução e desafio. Um livro originalíssimo que marcou uma geração. E foi com esse livro na mão que, anos mais tarde, apresentado por Alberto de Lacerda, conheci Mário Cesariny em Londres.

O nome do autor na capa do livro ainda incluía o apelido Vasconcelos. Mas Mário Cesariny foi o nome com que assinou a breve dedicatória que lhe pedi e me fez. Data da assinatura 1964. Local da dedicatória, Lisboa. Ao reparar no engano, Mário disse: “Fica assim e faz de conta!”. E esse seu “faz de conta” fez sentido.

Lisboa, nessa altura, era para mim uma cidade perdida desde o começo da minha adolescência. A Londres que me acolhera constituía o meu mundo. Mas Mário tinha chegado de Lisboa e Lisboa está presente no seu livro. Uma Lisboa que me deixava saudoso e que Mário recuperava com imagens como a do eléctrico “amarelíssimo”, “a bela mancha diurna dos calceteiros na praça”, e a “gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro”. Aquele Lx. que Mário pôs na dedicatória deu-me uma aproximação à Lisboa de onde me tinham levado há tanto tempo.

Mário regressou a Londres para uma estadia mais longa e a certa altura hospedei-o em minha casa. Por coincidência e para meu prazer, foi lá que escreveu parte do livro Poemas de Londres.

Mas foi com essa primeira edição de Pena Capital que o mundo de Cesariny se me revelou. E creio poder dizer que essa primeira edição foi o livro que o lançou. Quem não se lembrará de versos comos os que abrem o poema A Antonin Artaud?

Haverá gente com nomes que lhes caiam bem.
Não assim eu.

E mais adiante:

Como assim Mário   como assim Cesariny   como assim
      ó meu deus de Vasconcelos?

E quem não se assarapantou com o extraordinário menu do pic-nic evocado na Homenagem a Cesário Verde?

depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas
cosidas

Quem não se deixou arrebatar com poemas como Corpo Visível e Autografia e Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos? Esses, e outros e sempre. Outro livros apareceram e outras edições revistas de Pena Capital foram surgindo. Nenhuma com a irreverência dessa primeira edição.

Ao celebrarmos o centenário do nascimento de Mário Cesariny proponho que a melhor homenagem a prestar-lhe seria o relançamento da versão original do livro excepcionalíssimo que é Pena Capital. E quanto ao nome do poeta, é melhor que fique inteiro: Mário Cesariny sim, mas certamente também de Vasconcelos.

Uma viagem pela Europa, hotéis (parte II)

A cabana de Martim Heidegger em Todtnauberg

Durante a nossa viagem pela Europa alugámos oito quartos de hotel. Preferimos os hotéis tradicionais a outras formas de alojamento locais, sobretudo quando pernoitar apenas uma ou duas vezes.

Habitar efemeramente um espaço diferente da nossa casa tem, para nós, uma dimensão predominantemente funcionalista, distanciamo-nos das funções classistas ou fetichistas. Um quarto de hotel deve responder ao objetivo para o qual foi alugado, no nosso caso para uma boa noite de sono e um pequeno-almoço decente.

Há uns anos, as reservas e alugueres eram difíceis e os resultados imprevisíveis. Fora do circuito das agências de viagens (e mesmo nestas havia muita aldrabice), era bastante complicado saber que hotéis tinham quartos disponíveis, a que preços e com que qualidade (daí, parece-me, a catalogação por estrelas e a importância do nome da cadeia). Muitas vezes, só no local, seguindo a sinalética de rua, se conseguia obter a informação devida. Era ainda necessário interpretar certos indícios para projetar a qualidade do quarto e do pequeno-almoço (aspecto da recepção, simpatia dos empregados, estilo dos hóspedes, características do edifício, localização…) ou visitar o alojamento, quando autorizavam. Havia também alguma informação de viajantes anteriores, mas o boca-a-boca tem riscos: raramente se diz mal das próprias férias, seria assumir o fracasso numa área que quase só combina com felicidade.

Hoje, é possível escolher os hotéis guiando-nos pelas avaliações de hóspedes anteriores e, claro, imagens e outras informações fornecidas pelos próprios. A plataforma que mais utilizamos, creio que domina o mercado, é bastante fiável, mesmo para neófitos. Avaliações de diferentes parâmetros (limpeza, simpatia, conforto, pequeno-almoço, localização…) de um a dez e uma geral na mesma escala. Uma comunidade de utentes que após um certo número de avaliações define a qualidade do hotel. Normalmente não escolhemos abaixo do oito (muito bom), mas as avaliações, como nas escolas e universidades, estão inflacionadas.

O pior de todos, em Brive, França. Tudo era mau e feio, excepto o estacionamento. Pintado de roxo e cinzento oficina de automóveis, o fundo das portas (saída e WC) apodrecidas, a carpete com manchas de inundações, a recepcionista que não falava inglês e me corrigiu, mal, o meu francês, um pequeno-almoço de caserna. Quando entramos no quarto senti um pequeno arrepio, parecia um cenário à Twin Peaks. Dir-me-ão que foi mal escolhido e barato. Estava um pouco abaixo do limiar dos oito pontos na avaliação, mas foi o hotel mais caro de todos. Explicação? Brive está longe de ser uma cidade turística, como disse na primeira parte deste relato de viagem, encontrámos vários restaurantes fechados num sábado à noite para descanso do pessoal. Não há uma economia da emulação e da competição turística que lhe dê um certo nível de competência. Também não há um gosto individual e colectivo pela hospitalidade, algo habitual, aliás, nos franceses.

Hotel de Turim

O melhor de todos, em Burgos, Espanha (Crisol Almirante Bonifaz). Tudo previsível, competente, profissional, limpo. Apesar de ficar numa rua central e movimentada, nem um pequeno ruído no quarto. WC com utensílios de higiene pessoal em bambu, uma nota personalizada de boas-vindas, alguns chocolates e duas garrafas de água (não de plástico) de oferta. O melhor pequeno-almoço de todos, normalmente não se cuida muito dos vegetarianos. Próximo deste, o de Pádua, centralíssimo, cheio de peregrinos (Hotel Casa Del Pellegrino), na recepção foram extremamente amáveis e prestáveis. No pequeno-almoço havia uma grande diversidade de compotas caseiras e vários tipos de leite. Tratam bem os vegetarianos. E foi o mais económico de todos, quase metade do preço do de Brive. Antes de Pádua, o Best Quality Hotel Dock Milano, impecáveis na recepção, com a maravilhosa sonoridade da língua italiana, a jovialidade de uma cultura há muito habituada a receber estrangeiros, um edifício dos meados do século xx com um chão magnífico de calçada fina romana, a dois passos, sempre debaixo de arcadas, do centro. Tem, além disso, muito perto uma geladaria com um extraordinário gelado de pistáchio (este fruto é já referido no À la recherche du temps perdu, Du côté de chez Swann, de Proust como o suprassumo dos sabores em gelados), melhor e mais barato do que o da Avenida de Roma em Lisboa.

Mas o mais sedutor foi o Hotel Zum Schiff de Freiburg im Breisgau, na Alemanha. Martim Heidegger foi professor (e reitor durante pouco tempo, em plena ascensão do movimento nazi) nesta cidade e a sua famosa cabana (aldeia de Todtnauberg), na qual terá escrito uma parte importante da sua obra, fica a cerca de seis horas a pé (era assim que o filósofo, mais antissemita do que se pensou até há pouco, gostava de se deslocar, através da floresta negra). Não fizemos a romaria filosófica, estávamos sem fé metafísica. Quando chegámos à recepção pareceu-me ver um americano com ar de quem iria repetir os passos do autor de Sein und Zeit. As informações que pediu, as respostas que obteve, o ar de peregrinação filosófica (peregrinação extrema, colonizados pela filosofia analítica, os americanos que lêem Heidegger devem ser excêntricos no pensar e academicamente suicidas), o livro de 1000 páginas que não largava da mão esquerda, tudo remetia para um missionário pronto a resgatar o «pensar autêntico» das garras de técnica. Perceber a amabilidade da recepcionista com aquele hóspede surpreendeu-nos e, claro, descansou-nos. Confesso que não tínhamos associado a simpatia a Freiburg. E foi assim que desfizemos o preconceito, alimentado também pelas fotografias do hotel, quando reservámos, em cima da hora, o quarto (aparenta ser muito anos 80). Simpáticos, competentes, óptimo pequeno-almoço, edifício com alma, um quarto enorme, vista para a floresta (pela qual talvez caminhasse Heidegger), cama confortável, almofadas perfeitas (o critério das almofadas pode bastar para definir a qualidade de um hotel, não há hotéis bons com más almofadas, e o inverso também é verdade). Mais uma nota, a ficha de avaliação em papel colocada na mesa do quarto tinha os campos habituais, conforto, limpeza, simpatia, pequeno-almoço…, mas havia uma novidade: informative. Isto diz muito da cultura alemã (simplifico ao uniformizá-la). Foi assim, também contra Heidegger, que derrotaram uma metafísica bolorenta mais preocupada com o aprofundamento, quase delirante, da subjetividade do que com a descrição e a resolução dos problemas da vida colectiva. Às vezes penso que o nosso lirismo barroco e o falatório para-discursivo do futebolês deviam ser esmagados a golpes de martelo informative. Não para alimentar as máquinas do lucro, predadoras incansáveis, mas para tornar os humanos melhores (continuo aristotélico, apesar de Nietzsche).

Hotel de Pádua

Mais duas ou três notas. Primeira, sempre que nos instalámos num hotel verificamos as saídas de emergência, construímos um esquema de autoproteção. Segunda, quando pesquisámos os hotéis pusemos dois critérios fixos: estacionamento e pequeno-almoço. Mas só nos de Brive e de Freiburg é que não pagámos pelo parqueamento fornecido pelo hotel. Nos outros, ou despendemos cerca de 15% do preço da estadia para estacionar, ou, como em Burgos, Turim e Pádua, tivemos de estacionar na via pública, sem muitos problemas contudo. Finalmente, depois de reservar é bom tentar esclarecer por correio electrónico os aspectos menos claros, ficamos mais informados (regressa o informative) e mostramos que não nos podem comer por lorpas, mas cuidado o excesso de prudência costuma transformar-se em desconfiança («cinismo ingénuo», nos termos da psicologia) e isso é mau para a literatura e a vida.  

Homo Viator, uma viagem de carro pela Europa, parte I (estradas)

Percurso, ida e volta (acrescentei o vermelho e o amarelo)

Este artigo é composto por três partes: I introdução e estrada; II hotéis; III cidades.

Talvez sejamos, numa disposição que nos aproxima e afasta de muitos mamíferos, um Homo Viator. A Odisseia e Ulisses são a prova de que mal soubemos registar as histórias que mantêm um povo unido (mitos) escrevemos sobre viagens. Nelas, sejam as de Heródoto, Marco Polo, Petrarca, Rousseau, Goethe, Nietzsche ou, entre outros, Thoreau, há sempre encontros com a alteridade, exterior e interior, tal é, aliás, desejado pelo viajante: encontrar o diferente fora e dentro para redefinir a sua visão do mundo e de si. E assim se distingue do turista, que mesmo quando esbarra com o excêntrico se mantém firme, passada a primeira surpresa, nas suas convicções identitárias. No máximo, regista a extravagância e o icónico (normalidades hipertrofiadas) para compor o estatuto social e alimentar a economia da vanglória.

Nos últimos anos, talvez quatro, não saí fisicamente de Portugal. Parecia satisfeito por ler o The Guardian, The New York Times, El País e Le Monde. Isto, a par dos livros estrangeiros e de alguma televisão (a magnífica ARTE), dava-me mundo suficiente para ser, como Immanuel Kant, um cosmopolita imóvel. Acresce a esta indisposição viajeira, a morte, há uns anos, de pessoas que conhecia num acidente de avião na ilha de São Jorge, Açores. Este infortúnio tornou mais tangível o risco, bem sei que sobrevalorizado (no medo, a percepção subjectiva vence estatística), de andar de avião, espoletando uma quase fobia por uma máquina que continuo, porém, a admirar.

Mas este ano senti que era imperativo sair por inteiro do «rectângulo», precisava de respirar outro ar, ver outras coisas, ouvir outras línguas. Precisava da diferença para afinar a identidade. Mas que diferença escolher? Uma que não fosse muito distante do que penso e sinto, que não criasse um deslumbramento estéril, de postal, ou fosse um passeio pelo abismo. Decidi-me pela Europa. A Europa de George Steiner (A Ideia de Europa!), exaltação da civilização (ou cultura) que constituiu mais anjos e demónios, que nunca perdeu, no meio das tensões agónicas e emulações admirativas, o culto ascético pela perfeição, assente na verdade, bem e belo.

E foi assim que fizemos 6500 quilómetros de carro e 75 a pé durante certa de 12 dias através da Europa meridional e central: Espanha, França, Itália, Áustria e Alemanha. Uma viagem que porventura acompanhou, sem premeditação, a geofilosofia moderna. Planeada, mas reservando uma margem significativa para o imprevisto, procurar possibilidades reais de vida noutros lugares, tudo se iniciou e organizou à volta da pergunta seguinte: «em que outra cidade gostaríamos e poderíamos viver?»

Fomos a Burgos, Madrid e Girona em Espanha; Brive e Lyon em França; Turim e Pádua em Itália; Viena na Áustria e Munique e Friburgo na Alemanha. Escolhemos algumas cidades como pontos intermédios para repousarmos depois de cerca de 700 km de carro: Burgos (que nos surpreendeu por aliar a jovialidade noctívaga da Espanha hedonista no centro histórico e ruas adjacentes aos espaços verdes refrescantes do rio Arlanzón que a atravessa, lugar adequado a leitores e escrevinhadores; tem, além disso, casas a preços comportáveis para os ordenados da, digamos, classe média portuguesa), Girona e Brive (na primeira, visitámos amigos e fomos epicuristas pela noite fora; na segunda, uma cidade de 100 mil almas que antecipa o «bonsoir» para as seis da tarde e fecha os restaurantes ao sábado para «descanso do pessoal»).

Escolhemos as outras cidades, como disse, para experimentarmos habitar nelas, estarão na parte III deste artigo.

ESTRADAS

Gilles Deleuze dizia que lhe interessava mais o meio do que o início ou o fim (Diferença e Repetição e Dialogues avec Claire Parnet). Numa viagem deste tipo, no meio está a estrada, muita estrada. Que entendo e não entendo como um «meio para». Parte dos países ou das regiões definem-se hoje pelas suas vias de comunicação. Que em geral acompanham a vontade, já pouco livre, de acelerar o viver. As vias digitais e analógicas devem levar-nos de uma experiência a outra no mais curto espaço de tempo, elas não valem por si. É também por isso que Marc Augé as classifica como «non-lieux» (Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade). Contudo, talvez sejam mais habitáveis do que parece. A viagem até Burgos foi impecável (Lisboa, Castelo Branco, Guarda, Vilar Formoso, Salamanca, Valladolid; cidades vislumbradas, só parámos em Ciudad Rodrigo, logo após a fronteira, exemplo da «Espanha Vazia», com apartamentos decentes a bem menos de 100 mil euros que quase ninguém quer). Do lado de Espanha, memorizei as terras cerealíferas de Castela e Leão, com uma geometria irrepreensível (o campo cultivado está mais geometrizado do que as cidades pré e pós modernas), a surpreendente cortesia dos automobilistas, o deslizar (uma categoria filosófica maior em Deleuze e Jean-Paul Sartre) do automóvel sem as entropias de um tráfego sobrecarregado, de curvas mais apertadas ou de entradas e saídas mal desenhadas. Foi uma viagem amiga da contemplação, mesmo como condutor. E ao ficar na memória, esta autovia acede à possibilidade de ser um lugar, o meu pensar e sentir compuseram algumas linhas de inteligibilidade a partir dela, inteligibilidade que perdura. Já as autovias, ou autopistas, de Burgos a São Sebastião, apesar dos Pirenéus, foram mais cansativas e insipidas, devido à orografia acidentada e a florestas monótonas. Comemos quilómetros, como se costuma dizer, à espera do fim. Além disso, no País Basco há portagens e são salgadas. Em França, as autoestradas são funcionais, mas muito caras. Até Bordéus, a viagem é tremendamente aborrecida (muitos pinheiros e poucas vinhas). Mas quando fizemos um desvio pela campagne para cortarmos em direção ao centro do país, revi as paisagens da Volta à França, de que gosto muito, pelo heroísmo desportivo e a beleza do percurso. Depois de cerca de 80 km, entrámos novamente numa autoestrada para acelerarmos em direção a Brive-la-Gaillarde, em pleno Limousin, que, vá lá saber-se porquê, deu inúmeros presidentes a França: George Pompidou, Valéry Giscard d’Estaing, Jacques Chirac e François Hollande. O verde da região não supera a aridez pujante da Espanha seca (e eu sofro de stress hídrico por simpatia). É sintomático que quase não se vejam aldeias, a ocupação humana ficou-se pelos mínimos.

Atravessar os Alpes para Itália foi uma semi-desilusão, montanhas imponentes, sobretudo do lado francês, certo, mas vários troços de autoestrada em obras e a dificuldade, natural, de aceder ao túnel de Fréjus (vai ser duplicado) tornaram os 650 km, 8h de condução, mais enfadonhos do que estava à espera. Mas chegados a Turim, o caos ordenado (uma ordem que não esmaga a espontaneidade e o improviso) compensou a desilusão anterior. No quarto dia fizemos uma das viagens mais curtas, 370 km, entre Turim e Pádua, mas numa das autoestradas mais movimentadas da Europa (linha Turim-Milão-Veneza, com saídas para a Áustria e os Balcãs, indústria e turismo intensos). Este aparente «não-lugar» exige perícia e coragem assinaláveis, a via da direita e central são quase exclusivamente ocupadas por camiões, conduzidos por italianos e, pior, polacos, croatas, bósnios, eslovenos e sérvios. Ninguém te faz um favor, é preciso ser temerário e quase arrogante. Dois ou três acidentes (é um milagre serem tão poucos) e um tráfego intenso como nunca vira aumentaram num terço o tempo de viagem previsto (3:30 horas). Isto marca. Tivemos, como nunca anteriormente, uma experiência de 4:30 horas de perigo de vida. Poderá ser isto um não-lugar (uma negatividade autofágica)?

Entre Pádua e Viena são 607 km, cerca de 250 em solo italiano, com muito trânsito até à saída para Veneza. Atravessámos novamente os Alpes, agora muito mais comodamente, túneis bem desenhados e duplicados. Quando chegámos à Áustria adquirimos uma vinheta para circular nas autoestradas, cerca de 10 euros para uma semana (incrivelmente barato, uma versão de mim, de que não gosto muito, imaginou vingar-se do nosso utilizador sobre-pagador e fazer milhares de quilómetros pelo preço de três cafés em França). A previsão de chuva concretizou-se, torrencial durante 3 horas, nunca estive tanto tempo sob tamanha chuvada. Mas apesar da visibilidade reduzida e de alguns mini-aquaplanings, senti-me mais seguro do que de Turim a Pádua, os automobilistas austríacos são exemplares. Guardo, então, a experiência de conduzir naquelas condições durante bastante tempo sem sentir os receios próprios destas situações.

Finalmente, as autoestradas alemãs, resquício dos Nacional Socialismo pela densidade e gratuitidade e, numa mistura contraditória, do postulado da liberdade individual como fundamento da moral (Kant), trouxeram-me a experiência de não haver limite de velocidade (nem sempre, contudo). Mas em cerca de 100 km, entre a fronteira austríaca e Munique (estranhamente, não existem autoestradas entre a parte mais ocidental austríaca e a Baviera, como se os austríacos se arrependessem do Anschluss de 1938) só cerca de uma dezena de carros nos ultrapassou a velocidades acima dos 130 km/h, muito menos do que acontece num trajeto idêntico na nossa A1.

Experimentámos também, de forma virtiginosa, engarrafamentos. Estava previsto para o dia 5 de Agosto um trânsito infernal, com as autoestradas francesas A7 e A9 (levam metade dos franceses, bastantes neerlandeses, alemães e belgas para o sul de França e de Espanha) à cabeça. Ora, foi nesse mesmo dia que fizemos a viagem de Lyon para Girona, utilizando aquelas duas autoestradas. Pensámos, erradamente, que saindo cedo, 9 horas, evitaríamos o grande fluxo de veraneantes vindo do Norte. Mesmo saindo algumas vezes da A7 para estradas secundárias seguindo o conselho, avisado, do GPS nativo do automóvel, demorámos 10 horas em vez de 6. Mas a experiência foi enriquecedora. Compreendi que os engarrafamentos podem dever-se exclusivamente à densidade de tráfego, não é preciso haver nenhuma barreira acidental ou estrutural (portagens, obras, acidentes…). Com o número elevadíssimo de viaturas, as paragens aconteciam quase sistematicamente de 5 em 5 km. Durante horas fazíamos 5 km à volta de 120 km/h, e depois ficávamos no pára-arranca cerca de 20 minutos (sistema acordeão). Experiência inolvidável, feita da apreensão empírica das leis da fluidez, da gestão da irritação por uma paciência neoestóica e da constatação da estupidez alargada e repetida de quem viaja nestes dias à espera, com a esperança ingénua dos apostadores medíocres, que os outros automobilistas, assaltados por um bom senso primário, evitem sair, deixando a autoestrada para os inexperientes e os intrépidos.

Em comparação com o que temos em Portugal, estradas, carros e condutores, gostámos mais de conduzir na Europa, mesmo em Itália (a condução é agressiva, mas há poucos e poucas incompetentes). Em geral, contrariando o que disse um político marialva há uns anos, as estradas lá fora têm melhor piso, estão mais limpas, são mais bem sinalizadas e desenhadas. A diferença acentua-se nas estradas secundárias, impecáveis na França e Áustria (os únicos países onde as utilizámos). Cá são uma lástima. Contrariando também um semi-marialva, amante de bravatas logo desde o pequeno-almoço, empreendedor político (um empreendedor político serve-se da cidade mais do que serve a cidade), os 30 km/h obrigatórios em todas as cidades pelas quais passámos não destroem a mobilidade. Voltar aos 50 km/h tugas foi uma experiência de regressão às culturas amigas dos acidentes (o fascínio pelo atropelamento, de preferência em passadeiras, ainda nos define como povo perigoso).

O sonho molhado maoísta ou: a gravidez da Barbie*

* contém (muitos) spoilers

Quando era pequena, raramente tive Barbies: os preços da boneca, do carro e da casa da Barbie eram altos para um pai e uma mãe de classe média. Talvez por isso, habituei-me a não gostar tanto de bonecas, e quando elas me chegavam às mãos eram de outras marcas mais baratas, quase sempre um pouco estranhas, quase sempre com defeito de fabrico.

As minhas bonecas eram todas a Barbie Esquisita: mesmo as poucas da Mattel, andavam semi-nuas ou com roupas de outras que não lhes serviam, pintava-lhes a cara com maquilhagem que hoje só seria própria no Boom Festival, cortava-lhes o cabelo tão curto quanto possível e… obrigava-as a fazer muitas espargatas - era importante perceber quanto conseguiriam abrir as pernas.

No entanto, a minha Barbie favorita era - não a que a Mattel descontinuou - mas uma semelhante, provavelmente comprada num supermercado qualquer, pouco antes de o meu irmão nascer: ainda grávida, a minha mãe ofereceu-me uma boneca grávida também. Estranho, sim. Mas ainda mais fascinante do que uma Barbie perfeita, era para mim por descobrir o que se passava dentro dessa aparente perfeição, agora transmutada: poder destacar uma barriga de uma boneca para ver o que trazia lá dentro foi, sem dúvida, fundamental para perceber como chegaria o meu irmão a casa - “gosto de ser uma decoração útil”, diz a Barbie algures no filme de Greta Gerwig.

Depois de assistir ao filme no cinema, discutia com amigos ao jantar o que tínhamos retirado do filme.

Houve quem elogiasse a representatividade da Barbie negra, da Barbie transexual, da Barbie gorda. Houve quem exaltasse a importância de “pôr o homem no seu lugar” (citando frase algures ouvida), como se por se ver de repente numa realidade paralela em que é subrepresentado, os Kens fora do ecrã de súbito percebessem como deviam tratar as mulheres que os rodeiam, e quão frágeis são as linhas da agressão quotidiana do patriarcado.

Entretanto, enquanto a semana de inauguração do filme é a mais lucrativa de sempre na realização de uma mulher, o CEO da Mattel, Ynon Kreiz, terá recentemente dito numa entrevista: “A nossa ambição é criar franchises [foco no plural] de filmes.” - e a Mattel Films, a principal produtora (uma da muitas) do mesmo filme, já anunciou 14 filmes que se seguem (um deles sobre o Uno, o que é simultaneamente bizarro e curioso e outro, que será potencialmente Lena Dunham a realizar, sobre… as Polly Pockets!).

Numa altura em que se começam a considerar (mais) seriamente conceitos como o body-positive movement, a discussão de temas relativos à saúde mental e à forma como esta está relacionada com a rigidez de estereótipos sobre o corpo, a identidade e orientação sexual, ou mesmo com o poder económico das mulheres, imaginei que esta imensa campanha cosmética (pun intended) da Mattel pudesse advir do declínio das vendas da Barbie nos últimos tempos - e, logo na primeira pesquisa, surge um artigo da BBC de Julho deste ano: “Barbie: Toy maker Mattel looks to more movies as sales fall”. Questiono-me então se as mães deixarão de comprar Barbies para as suas crianças, apesar (ou precisamente por causa) do sucesso que este filme tem feito.

Tido por muitos como o grito feminista de que precisavam as meninas-hoje-adultas que sempre quiseram ter a veneração pelas suas Barbies finalmente justificada, usa-se a ideia de subversão do poder hegemónico como retrato perfeito daquilo que deve ser feito para acertar contas numa sociedade.

Ken olhava de longe a Barbie, apaixonado porém ressentido por não receber dela igual interesse, enquanto, todas as noites, ela fazia as suas “noites de meninas”, com maquilhagem e lutas de almofada. Mais tarde, depois de um passeio pelo mundo real e de perceber como pôr em prática o vantajoso patriarcado, ele grita, impondo a sua nova ordem: [Agora], “Todas as noites são noites de rapazes.”

Dado interessante: Marx acreditava que a luta de classes conduziria a processos políticos, que levariam a consequentes revoluções, necessárias para que o processo histórico avance e se desenvolva. Mais: a forma de produção anterior deveria desaparecer para ser substituída por outra.

Face à revolta dos Kens, as Barbies não vêm outra opção se não a de “acordar” politicamente as suas companheiras de classe, vítimas de uma lavagem cerebral súbita pelos machos dominantes - “Num minuto eu era a presidente, no outro estava a cortar um bife para o Ken.”, diz uma delas, acordando, de novo, para a sua realidade de prémio Nobel ou Presidente da República ou jornalista conceituada, voltando às fatiotas impecavelmente pontuadas com jóias que não podiam, claro, deixar de incluir safiras cor de rosa.

Enquanto exército renovado, a Barbie, desta vez acordada para a fragilidade da sua sociedade, apenas aparentemente sólida sob um véu de empatia e conjuntos de saia-casaco, decide então renovar o guarda roupa: qual Reforma Agrária maoísta, surgem as Barbies com um ar vagamente militarizado (e o Allan, mas ninguém fala dele porque é a figura mais interessante do filme), determinadas a recuperar os seus direitos. Envergam, sem excepção, impecáveis macacões cor-de-rosa que, estranhamente, ali existem em todos os tamanhos e para todas as bolsas.

Simultaneamente, vêem-me à cabeça flashbacks da série “O Sexo e a Cidade”, em que se pode ser feminista, sim, em que se pode falar abertamente sobre sexo e sobre dinheiro e sobre poder, sim, mas apenas gastando a quantia certa de dinheiro em sapatos e almoços em sítios tão chiques que têm um banquinho ao lado de cada cadeira, para que as senhoras possam pousar as respectivas malas que valem mais de 3 salários mínimos (cada uma). Algures num compêndio das mais famosas frases da série, podemos encontrar: “When I first moved to New York and I was totally broke, sometimes I bought Vogue instead of dinner. I found it fed me more.”

Mas rapidamente o sonho molhado maoísta se esvanece nas mãos de um exército cor de rosa que cede ao compromisso de um encontro de necessidades, muito vincadamente binário, onde haverá sempre espaço para o rosa, mas também para o azul. E onde as personagens menos visíveis no mundo Barbie (a Barbie Grávida, a Barbie Esquisita (a mais humana, afinal de contas) e o Allan - que é “só o Allan”, como o mesmo se apresenta - continuam pouco visíveis, ainda que por um momento tenham sido úteis para alavancar este fugaz momento de revolução necessária.

A minha cabeça desce de novo à terra e ouço então o Daniel, talvez o Allan da minha infância, sujeito de cerca de 30 anos que, sob todos os aspectos, é o anti-Ken dos anti-Kens, que cresceu a brincar com dinossauros: “Não podes pôr representatividade numa caixa com um preço”, por mais emocionante que tenha sido o monólogo de Gloria (America Ferrara), a operária da Mattel que sonha com a revolução.

Ouço também a Gabriela, brasileira, negra, migrante em Portugal há precisamente seis anos e seis meses: “Esse filme é um lobo com pele de cordeiro”.

Ainda assim, firmo as palavras de Gloria: “É literalmente impossível ser uma mulher.” - sobretudo se a Barbie, no mundo real, acha possível ir bem disposta ao ginecologista.

Penso na minha Barbie Grávida, desmontável e barata, no marketing feminista-liberal e nas palavras de Paul Preciado: “Cavidade potencialmente gestacional, o útero não é um órgão privado, e sim um espaço biopolítico de excepção, ao qual não se aplicam as normas que regulam o resto das nossas cavidades anatómicas. Como espaço de excepção, o útero parece-se mais com um campo de refugiados ou uma prisão do que com o fígado ou o pulmão.” (in Um Apartamento em Urano).

Bebemos mais um copo e concordamos então que, em sítios com o dinheiro e os tentáculos de Hollywood, existe representatividade desde que financiada, quer isso signifique uma Barbie-Burnout, uma Barbie-Bissexual ou uma Barbie-Hitler.

Mas que, na vida real, o dinheiro não paga sapatos Manolo Blahnik ou conjuntos de saia-casaco Chanel, ou sequer a visibilidade dos invisíveis: esses continuam a gastar dois terços do salário na renda astronómica de um apartamento pequeno numa cidade gentrificada. E o que restar não poderá pagar uma Barbie da Mattel, com certeza.

Mas talvez compre um bilhete de cinema.

Canções de verão: duas antologias

OCaso algures no Dodecaneso, 2021

Uma antologia breve pode ser um pequeno catálogo de um momento. Mantenho há algum tempo uma antologia de poemas e versos de poemas que podiam ser sobre o verão, que revisito muitas vezes no inverno, um tempo impaciente para mim, que não tem grande coisa a ver com a minha natureza, muito embora ame o chiaroscuro das ruas da cidade onde vivo nessa estação, um tempo para torres cobertas de neve e noites longas, que começam a meio da tarde, e salas de pubs demasiado aquecidas, interrompidas amiúde por uma corrente de ar de uma porta deixada aberta, que alguém, irritado, constantemente se levanta para fechar. O inverno enquanto porta que se fecha e o verão enquanto uma que se abre. Lentamente, ao longo do inverno, chega a nostalgia do verão (cada um ama aquilo que não tem?). Certa vez, numas férias de verão, o amigo com quem tinha ido até à praia começou a acelerar loucamente no carro, porque um guia turístico que ele tinha lido garantia que o melhor pôr-do-sol podia ser visto numa praia a alguns quilómetros de onde estávamos. O meu amigo de repente teve pressa para ir ver o sol desaparecer, algo que não é suposto, reclamei eu, stressar uma pessoa quando ela está de férias. Mas a verdade é que valeu a pena a corrida. Um pôr-do-sol como uma orquestra, como uma aurora quase e não como um ocaso. Laranja até chegar ao púrpura e púrpura até chegar a um azul ardente, inexplicável sobre o mar. A minha antologia de versos sobre o verão inclui aquele que se pode ler em epígrafe este mês na Enfermaria (mas é discutível que esse verso de Sylvia Plath seja sobre o verão).

Alguma coisa do espírito que vai animando esta minha colecção deve ter animado Elena Medel, editora de La Bella Varsovia, por volta de Julho de 2022, quando esta casa editorial espanhola compilou e disponibilizou gratuitamente no seu site o pdf de La Canción del Verano: Algunos poemas para viajar leyendo. É uma pequena antologia que reúne doze poetas do catálogo da editora, de Andrés Neuman a Amalia Bautista, passando por Luna Miguel, Ismael Ramos e Berta García Faet, para nomear alguns. O subtítulo, que reenvia para Emily Dickinson, é um tema: nos poemas cruzam-se as efémeras viagens do verão, os seus momentos de estase e aceleração, ele é visto do ponto de vista do permanente e do efémero. Os poemas levam-nos de volta ao sal do mar e ao cloro das piscinas, a jardins que rodeiam praias e à letargia de estradas e cidades em dias de calor. Algo neste pequeno panfleto faz pensar, claro, nas canções de verão do título, mas também em filmes sobre o verão, remete para eles visualmente, algures no espectro de Call me by your name (Luna Miguel?) até Aftersun (Andrés Neuman?), ou talvez filmes mais recuados, Le rayon vert, La Piscine, L’Avventura.

La Canción del Verano acaba por ser também uma pequena amostra do catálogo desta editora. Não há nenhuma preocupação com qualquer nexo temático, as vozes são discrepantes, há poemas de uma concisão quase epigramática e outros predominantemente narrativos, a única coisa que os une é uma ideia (muito solta – difusa talvez como um tempo de férias) do verão, um pouco ao contrário de um projecto semelhante, mantido pela Poetry Foundation, a sua colecção Summer Poems, também ela uma amostra dos nomes que foram passando pela revista, mas esta organizada por secções (dias de verão, amores de verão, insectos, etc.).

Oxford, 6 de Agosto de 2023

(debaixo de chuva)