Preferir o Musgo

Templo do Pavilhão Dourado (Kinkaku-ji), QUioto, Novembro 2023, João Bosco da silva


Oito anos são tudo

e nada — 

nas escadas do templo.

 

Das escadas do templo

já sem folhas

a árvore do céu.

 

O cair das oferendas

preces silenciosas

com gosto metálico.

 

Quase silenciosas

as preces —

chuva metálica.

 

Sobre o crepúsculo

outonal

pagode escarlate.

 

Silencioso o verde buda

à sombra

dos olhos.

 

Solitário o buda

acumula verdete

e eternidade.

 

Acabaram as oferendas

por fim

silêncio no templo.

 

Com o cu bem lavado

escrevo um haiku

ao lado de um buda.

 

Duas vezes olhar

à volta

e não acreditar.

 

O sake aquece

não interessa

irei bebê-lo.

 

Enquanto se espera

a enguia

sake e haikus.

 

Parecem gatos

a cair

as mãos do cozinheiro.

 

Se elas gritassem tanto

quando eu entro

como nos restaurantes aqui.

 

Trinta e oito em Tóquio

estranha-se menos

que aos dezoito no Porto.

 

Conseguir estar só

rodeado de milhões

eis a poesia.

 

Na melhor companhia

até que torne

na pior.

 

Com as pombas

do parque Yokoamicho

pequeno-almoço sob um ginkgo.

 

Tóquio

 

Que crocitam os corvos

do castelo de Nijo —

serão ecos?

 

Sobre o Kinkakuji

voa

um corvo.

 

Tão breve

como o fim daquele desejo —

Kinkakuji.

 

Belo e breve

o toque

do desejo.

 

Tão grande o desejo

rapidamente

sucumbe à beleza.

 

Memórias douradas

ecoarão agora

na distância semeada.

 

Que sentirá o sol

que toca

aquelas paredes douradas?

 

Um breve abraço

àquele loiro desejo —

olhar Kinkakuji.

 

Aquele monge

cujo desejo

o queimou.

 

Incendiar o desejo

dourado

que te queima.

 

Olhar o templo

ver o desejo

em estado puro.

 

Neste verde autocarro

ecoa ainda

o reflexo dourado.

 

Quase em silêncio

o rio Kamo

minha testemunha.

 

Iluminado pelo sol

o ancião

no velho comboio.

 

Que fome espelhará

a garça

no rio Kamo?

 

Seu nome

no sorriso —

Sakura.

 

Quem prepara o chá

é o florescer

da cerejeira.

 

Futon duro

sono leve —

chove em Quioto.

 

O grou espelha-se

no rio

não deve ter fome.

 

Há na beleza

uma certa

violência.

 

No comboio

as rápidas montanhas

parecem musgo.

 

Esta chuva estrangeira

traz-me de volta

à primeira casa.

 

Por todo lado

corvos e preces —

Santuário de Inari.

 

De um santuário

a um templo

contrastes silenciosos.

 

A saturação xintoísta

lavada

pelo budismo Zen.

 

À saída do jardim Zen

apanhar do chão

uma folha púrpura.

 

Ah a frescura

do musgo

do Ginkaku-ji.

 

Como uma verde geada

a frescura do musgo

em Ginkaku-ji.

 

Na cara gelada

a frescura

do musgo de Ginkaku-ji.

 

Há gostos

que não foram feitos

à medida.

 

A mão do homem

suavemente

em harmonia.

 

À sombra dos bambus

três vezes

sacudo a gaita.

 

Entre ouro

ou prata

escolho o musgo.

 

Duas bolas de cotão

do umbigo —

tenho vivido.

 

No ar outonal

de Arashiyama

castanhas assadas.

 

Soba e sake

o almoço

do caminhante.

 

De joelhos sobre a esteira

um gesto familiar

e longínquo.

 

Um dia de sol

tem a beleza da despedida —

cores de outono.

 

As montanhas em Arashiyama

vestem

a minha camisa de Outono.

 

Não é Carnaval

na pandemia endémica

tudo ainda mascarado.

 

Zen é aquele

jacto quente

no meu cu.

 

Deslumbrado ou perdido

o homem que come

gelado de macha.

 

A plenitude —

o estômago cheio

após longa caminhada.

 

Sol e cerveja em Novembro

num bar jamaicano

em Arashiyama.

 

Domingo ao sol de Arashiyama —

imaginar

o som da floresta de bambu.

 

Ao sol de Novembro

ler Bashô

em Arashiyama.

 

Na boca dos adolescentes

reconheço uma palavra —

Namban.

 

Pequenas folhas secas

que sem vento

se movem.

 

Apesar do sol

sobre o lago do palácio

cai granizo.

 

Esta lua de Quioto

irei levá-la

para casa.

 

Em Okochi Sanso

esqueces-te

da cidade.

 

O mais belo vermelho

sem lábios —

Outono em Okochi Sanso.

 

Em viagem

sinto-me

mais em casa.

 

À beira do rio

um grou —

chove.

 

Chamem-me viajante —

sonhar e caminhar

viver.

 

Não chores o verão

que acabou

tem mais cor o outono.

 

Tem mais cor o outono

que a primavera —

envelhecer.

 

Ao vivo

Quioto é mais belo

do que em sonhos.

 

Parece interminável

o varrer das folhas

até que o Inverno chega.

 

Parecem vassouros de giesta

com que varrem

as folhas em Quioto.

 

Chuva ao Sol

o cheiro da manhã

em Quioto.

 

Quem chegará primeiro

eu

ou o postal?

 

A caminho de bicicleta

a tenor

vai aquecendo a voz.

 

De joelhos sobre a esteira

reproduzo

três poemas de ontem.

 

Esperando o comboio

aproveito

o último sol de Quioto.

 

Uma nuvem desvia-se

para deixar o sol

iluminar o poema.

 

Só na hora de partir

a solidão

se pronuncia.

 

Duas meninas sozinhas

no comboio regional —

manhã de segunda-feira.

 

Por trás da nua arvorezinha

esconde-se

o imponente templo.

 

À distância

toda a memória

é uma só coisa.

 

Quito despede-se com Sol

contudo

parto como uma sombra.

 

Uma janela aberta

café e bolos de arroz

uma pessoa sentada.

 

Como o menino

também o velho poeta

contempla o comboio-bala.

 

Como um camelo

viajo carregado

e sedento.

 

Quioto

 

Quio

To.

 

No horizonte só Fuji

se vestiu

para o Inverno.

 

Nas montanhas

o arroz

torna-se chá.

 

Campos dourados

de arroz

em Novembro.

 

Vazia a caixa bento

agora dormita

no dedo uma promessa.

 

Quito-Tóquio

 

Regressa-se sempre

pela primeira vez —

ilusão da memória.

 

O lugar que levamos

é tão somente

nosso.

 

Depois de Quioto

Tóquio sente-se

como plástico.

 

Hoje não chove

no Santuário de Meiji —

ainda verdes as folhas.

 

Vê-se melhor

quando chove —

Santuário de Meiji.

 

Há oito anos chovia

e as folhas

já douradas caíam.

 

Mais uma vez

a memória pinta

o verde com dourado.

 

Olhando a Skytree

bebo sake

no terraço do hotel.

 

Quem diria

este silêncio

numa megacidade.

 

Acompanharam-me

seus jovens olhos

até ao último gole de vinho.

 

Lado a lado

ao sol

um pato e uma tartaruga.

 

Quase uma rocha

ao sol

tartaruga molhada.

 

Regressa a tartaruga

que ainda há pouco

mergulhou.

 

Como se Dezembro

não tardasse

chilreiam os pássaros.

 

Patos deitados

ao sol —

ninguém se senta.

 

Quando regressar

não serei mais

eu só.

 

Também uma garça

se veio juntar

à festa na ilha.

 

Tóquio

 

Novembro 2023 (Tóquio-Quioto-Tóquio)


Pavilhão Prateado (Ginkakuji), Quioto, Novembro 2023, João Bosco da Silva

Juni Ba, Monkey Meat

Uma colecção de cinco contos que têm lugar num mundo onde uma companhia de macacos (i.e., cujos administradores e trabalhadores são macacos) produz todo o tipo de derivados de carne de macaco. O género oscila de conto para conto entre a aventura, a paródia às histórias de superheróis ou à manga à la Naruto, e a narrativa sentimental.  

Crítica a um hipercapitalismo autofágico, capaz até de corromper deus? Sim, claro. Mas ativismo social e arquitectura narrativa são secundários – boas intenções são úteis, mas a obra pode bem viver sem elas. O que define esta novela gráfica é um sentido de jogo: uma energia pueril, caótica, fecunda, provocadora que diz sim a tudo, que não sabe quando parar, que se compraz em chocar, combinada com virtuosismo técnico. Está em tudo: no traço, no uso de cor, nos vastos painéis a transbordar de um pormenor desnecessário para avançar a narrativa, mas a história que realmente conta é a da alegria da criação. Está no humor infantil, grotesco, visceral, irrealisticamente violento. Como exemplo deixo algumas páginas de Monkey Meat, são mais ilucidativas e interessantes do que a minha prosa. Digo apenas que esta é uma novela gráfica que me impressionou como já não sucedia há algum tempo e que recomendo vivamente. 

Juni Ba, Monkey Meat, Image Comics, 2022

Declínio do possível, café filosófico

Gilles Deleuze, antes de 1956, por michel tournier

No dia 18 de novembro houve mais um café filosófico na livraria Snob, em Lisboa. Deixo aqui o texto de apresentação e o áudio.

«No próximo Café Filosófico, mistura sustentável de conceitos e de postulados do quotidiano, falaremos sobre o possível, ou melhor, as categorias, filosóficas e não filosóficas, do possível. Se quisermos traduzir este último sintagma numa linguagem mais militante, talvez possamos escrever a seguinte pergunta: terá o mundo, agora totalmente fabricado por nós (Antropoceno), esgotado os possíveis, como quem esgota um qualquer recurso natural?

Evocaremos, e invocaremos, Gilles Deleuze, um filósofo do possível, porque trabalhou este conceito perspetivicamente, analisando-o, e usando-o, a partir de vários ângulos, acompanhado por Kierkegaard, Bergson, Nietzsche e, entre outros, Tournier. Inscrevendo-o na arte e na filosofia, mas também, sem gritar, na política. Daremos conta do filósofo do futuro nietzschiano, cuja obrigação é construir possíveis que intensifiquem a vida, o viver; bem como da intuição do autor, originada em parte na filologia, sobre como a vingança anula os possíveis que propõem um futuro sem ressentimento. Michel Foucault, num livro editado há pouco tempo em França, Le discours philosphique, também defende, ele que se interessou mais pelos sistemas das ideias e dos pensamentos, que a filosofia serve essencialmente para inaugurar o futuro.

Discutiremos igualmente as modalidades éticas que exigem uma responsabilidade pelo futuro, e com isso uma prudência na inauguração de possibilidades que, como na hybris grega (essa embriaguez desmedida, que autoriza, ou força, as maiores transgressões, como a de Édipo), seriam desafios demasiado pesados, ou simplesmente sopros estéreis, para as futuras gerações. Tanto mais difícil quanto a inflação narcísica atual (vivemos também no egoceno) forjou o quase conceito de síndroma de hybris, uma patologia que infeta cada vez mais pessoas, com muito ou pouco poder, bastando-lhes acreditar que, num determinado momento, são todo-poderosos.

Terminaremos com o estado da arte da utopia, desses não lugares onde cabem todos os possíveis.»

Notas sobre Cult of the Lamb, Stardew Valley e algumas generalidades inócuas sobre videojogos

Cult of the Lamb, 2022

Para o João Coles,
que ando a tentar convencer a jogar
Stardew Valley

Um adorável cordeiro atravessa labirintos e combate monstros para libertar criaturas igualmente adoráveis. Trá-los para o seu acampamento, constrói tendas, cozinha para eles. E rezam juntos. E de vez em quando o cordeirinho sacrifica um dos amigos em rituais de sangue. Já tinha dito que o cordeiro é o líder de um culto satânico?

*

Os verbos ficam claramente definidos desde o início: combater para recolher recursos (as demais criaturas são também recursos), gerir esses recursos, e com eles adquirir mais e melhores ferramentas de combate, que permitem enfrentar um maior número de inimigos, e mais fortes. Quem jogou roguelikes como The Binding of Isaac reconhecerá os elementos do combate. Quem jogou jogos como Animal Crossing reconhecerá a fase de gestão. A dinâmica é construída em torno de estes dois sistemas interdependentes, criando ciclos que se alimentam e introduzem variedade. A referência arquitectural óbvia é Stardew Valley.

*

Stardew Valley, 2016-2023. Imagem da minha Vila Tatiana.

Stardew Valley é um jogo de profundidade. A simplicidade, quase rudeza, da superfície esconde uma complexidade de sistemas que nos ancoram ao espaço e à narrativa do jogo. Um mundo que se expande constantemente, desdobra, aprofunda, oferece novas formas de interagir com o espaço, ao mesmo tempo que os pixeis toscos que dão forma aos habitantes do vale adquirem identidade, investimos neles sentido e sentimentos. Criamos raízes. Stardew é um jogo a que inevitavelmente regressamos como quem regressa a um lugar onde foi feliz.

Cult of the Lamb, por outro lado, é um jogo de superfícies. Gráficos estilizados como cartoons, tem algo do humor físico, visceral e anárquico, de Ren & Stimpy. Ciclos acelerados, saltamos de um modo para o outro sem necessidade de aprofundar a nossa perícia ou estabelecermos relações significativas. Este não é um espaço que habitamos. Apenas um lugar por onde passamos, fazemos o que temos a fazer, seguimos com a nossa vida.

*

A pergunta natural é "vale a pena jogar Cult of the Lamb?" Não tenho uma resposta. Assim como não tenho uma resposta à pergunta "vale a pena jogar jogos?". Tive experiências profundas e significativas a jogar alguns jogos – Stardew Valley está nessa categoria. Mas admito que há algo derivativo e até pernicioso em muitas dos jogos que joguei. Junk food para a alma. Belo, bem executados, mas, ao fim do dia, superficiais, esquecíveis.

Mas talvez a este pensamento subjaza uma falácia, ao considerarmos criticamente jogos como objectos culturais. Por vezes esquecemo-nos que jogos são, bem, jogos. Que são objectos lúdicos, que cumprem funções extra-culturais.

*

A série de jogos Diablo é notável por ter os seus níveis de estupidez no máximo. E com isto não tenciono insultar esta vetusta e respeitada série: são jogos excepcionalmente bem executados, desenvolvidos durante anos por um dos melhores estúdios, e que consistem em alegremente aviar largas turbas de monstros, uns atrás dos outros. São repetitivos, violentos, viciantes. Contém linhas narrativas, mas são menos do que secundárias. Apenas pretextos para o combate.

A Lisa vive em Nova Iorque. Trabalhámos juntos alguns anos. As nossas reuniões de trabalho eram pontuadas por referências a jogos. Convenci-a a jogar Stardew Valley e ela concorda que é um dos melhores jogos alguma vez criados (a Lisa é uma mulher inteligente). Em Julho deste ano mudei de emprego. Tenho saudades das minhas conversas com a Lisa. Nas férias de Natal tencionamos ambos comprar Diablo IV e passar longas horas a esquartejar juntos horda atrás de horda de monstros.

Isto para dizer que jogos criam espaços de interacção humana. Que operam também como espaço mediador. Qualquer crítica tem de ter em atenção os aspectos funcionais com que potencializa as interacções humanas. Isto é, como o jogo funciona como jogo.

*

Seres humanos são viciados em esquecimento. Aquele estado em que perdemos noção de nós próprios, nos tornamos leves, e o tempo flui. Os jogos traficam em esquecimento. Quando exausto, depois de um dia de trabalho, tornam a viagem de comboio de regresso mais breve. Os jogos são uma das formas menos destrutivas que conheço de adquirir este dom. E esse é um dos maiores louvores de que sou capaz.

O mundo dentro

Ilustração de Yiannis Kotinopoulos

Tradução de Tatiana Faia

Ontem foi o dia
Em que me esqueci de regar as flores e deixei
Que a roupa suja imaginasse
Uma nova cor na minha fonte. 

Não posso dizer ao certo se foi
No princípio ou no fim da semana
Embora me tenham ensinado a diferença
Entre os dias e a importância
De te ligares cuidadosamente ao presente
Com fios impalpáveis. Mas deixei
O pão no forno e ainda não havia
Ninguém que eu conhecesse nas urgências
Não me bateram de súbito à porta, só ramos
Da árvore no quintal intrometendo-se pela janela
E um cheiro a queimado comestível para ninguém. 

Havia um mundo dentro da minha casa como um espinho
Cravado na pata da raposa
Ganindo, coçando-se, chorando, arranhando, e por
Causa do mundo esqueci-me de mim
E lambi o mundo na minha carne
Duramente com uma língua dura tentando
Não deixar o seu fluxo de xarope exalar-se.


The world within

Yesterday was the day
I forgot to water the pots and I let
The laundry clothes imagine
A new color in my fountain.

I can’t say for sure if it was
The beginning or the ending of the week
Though I have been taught the difference
Between days and how important it is
To attach yourself carefully to the present
With impalpable threads. But I left
The bread in the oven and still there was
No one I knew in the emergency room
No sudden knocks on my door, only branches
From the backyard tree intruding through the window
And a burnt smell nobody could eat.

There was a world inside my house like a thorn
That is stuck in the paw of the fox
Whining, itching, crying, scratching, and for
The world’s sake I forgot myself
And I licked the world in my flesh
Hard with a hard tongue trying
Never to let its syrupy flow exude.