Festival Eurovisão da Canção

Escrevo sobre o efeito narcótico de quem sempre esperou o pior do Festival Eurovisão da Canção, o que pode provocar elogios excessivos.

Salvador Sobral ganhou ontem (13 de Maio de 2017), data de milagres quase institucionalizados, o Festival Eurovisão da Canção. Fê-lo acima das habituais pobres possibilidades festivaleiras de Portugal (tínhamos conseguido no máximo um 6.º lugar) e acima (ou abaixo) também da sua consciência, moral e estética, de músico (a 1.ª vez que viu este encontro de música-fogo-de-artifício, como lhe chamou, foi o que venceu). Assim, numa rara imbricação de talento, submissão e revolução, o destino, esse acaso impuro, decidiu fazer uma jogada diferente.

Talento: o de Salvador e, há quem diga “sobretudo”, da Luísa, irmãos de sangue. O Amar Pelos Dois é uma canção talentosa, a música e a letra entram directamente no ouvido, não são necessárias muitas mediações estéticas, tudo parece perfeitamente claro, vibram as emoções que têm de vibrar, instando à convergência, à fusão. Além disso, o jogo corporal de Salvador, revelando no seu minimalismo uma entrega quase mística, está em sintonia integral com a canção. A simplicidade, de que tanto se fala, é uma arte sublime, tanto mais que a canção é harmonicamente muito rica.

Submissão: Salvador Sobral submeteu-se a uma parcela do mundo da música que, segundo ele, lhe é indiferente. Nunca tinha visto este festival, já o disse, e mesmo depois de ganhar, quando se baixam as guardas e se disparam panegíricos e agradecimentos a torto e a direito, manteve uma distância, quase higiénica, em relação à Eurovisão, acabando por dizer que o desejo de vitória que Caetano Veloso lhe tinha endereçado valia mais do que a vitória em si mesma. Certo. Mas foi lá, entrou num jogo que parece não ser o dele, numa constelação musical que lhe é, pelo menos, alheia e que agora marca um pouco aquilo que é. É verdade que se preocupou em descolar o mais depressa possível o rótulo de festivaleiro que lhe caiu em cima, mas ele fez por isso, não foi?

Revolução: “Sem a música a vida seria um erro” (Nietzsche), mas o que ele queria dizer era que “sem uma música adequada a vida era um erro”, prova-o as críticas que fez ao estilo decadente de Wagner. Traduzindo: “diz-me a música que ouves dir-te-ei o que vale a tua vida”. A Eurovisão estimula muitas vidas anódinas, à tradicional “música descartável”, como lhe chamou Salvador Sobral, correspondem com certeza vidas descartáveis. Mas era (é?) este o ADN do Festival: “música ligeira” para entreter as massas, conscientes porém da sua nacionalidade. Ora, Amar Pelos Dois revolucionou o modelo (mesmo não estando nos antípodas), ganhou a música, como referiu várias vezes o intérprete, mais do que a encenação espalhafatosa, ganhou a voz mais do que a beleza do cantante, ganhou a entrega sincera do cantor mais do que uma coreografia de cabaret. E isto é revolucionário, não sei se perdurará, mas por enquanto vale a pena saborear a inversão e, como queria Kant, dando aqui muitas voltas à relação linear, manter a esperança de que a Eurovisão tenha descoberto uma nova vocação, que seria, agora com Nietzsche, tornar-se aquilo que ela é, ou seja, um festival de música.

Para se saber um pouco mais sobre Salvador Sobral, um belo artigo no El País.