As meninas revolucionárias

Uma mecha de cabelo fora do véu e Mahsa Amini, que visitava Teerão com os pais, é abordada pela «polícia da moralidade» (zeladores dos «bons costumes», ditados por Maomé no recente século VII e reeditados ontem, 1979, pela revolução islâmica anti-iluminista da República — a sério? — Islâmica do Irão) no dia 13 de setembro, abordada e detida. Ao fim de três dias, foi levada em coma profundo para um hospital, morreu pouco depois.

O país, uma parte significativa dele, entrou, entretanto, em ebulição, efervescência combatida com mão de ferro pelos velhos sábios do autoritarismo islâmico, detentores do monopólio da violência legal (mistura de leis positivas e religiosas, com muita corrupção institucional à mistura). Apesar do controlo mortífero — atirar a matar contra as manifestantes, penas de prisão arbitrárias e massivas, prepotência da justiça institucional (cada vez mais ideológica) —, as manifestações continuam, pagas com cerca de 300 mortes e 15 000 detenções. Em geral, protagonizadas por jovens, sobretudo adolescentes, que querem, de acordo com o slogan, «Mulher. Vida. Liberdade.», um futuro com sentido, futuro imaginado sem o fanatismo patriarcal. No jornal online Jadaliyya.com, uma jovem iraniana refere que as manifestações são feitas arriscando a própria vida, inscrevem no corpo a possibilidade real de uma morte incrível e absurdamente prematura. Mas diz mais, as pessoas vão para a rua também com o corpo que desejam ter, com um imaginário próprio, incarnam o ato revolucionário com esta imaginação.

A luta, que parece influenciada por valores ocidentais (os mais compatíveis com uma vida humana digna, já agora), opõe-se à cartilha de «bons» costumes de um país que se transformou, depois da revolução de 1979, rapidamente numa ditadura militar, que responde às objeções com aquilo que conhece: violência e morte. É por isso que o politólogo Farhad Khosrokhavar fala de «tanatocracia», um regime que governa «pela morte e pelo medo da condenação à morte». Isto tem, é bem claro, o propósito de manter o país relativamente isolado, o ódio ao Ocidente, especialmente aos USA, é a forma de consolidar um statu quo que privilegia exponencialmente a classe dirigente: militares e religiosos. Khamenei necessita de se confrontar quase permanentemente com o Ocidente, é esse inimigo que facilita a narrativa do nacionalismo e do contínuo estado de exceção, esse inimigo é o seguro de vida da teocracia, ou tanatocracia iraniana (cujos modelos foram o fascismo e o estalinismo). A integração do Irão no mundo global, pela multiplicação de influências que quase de certeza conduziriam à reforma do atual regime, continuará a ser adiada enquanto prevalecer um poder patriarcal sustentado numa ditadura militar.

Era bom que regressássemos mais vezes a Pierre Bourdieu, La domination masculine (Paris, Seuil, 1998), para percebermos melhor por que razão, na sequência do que acabei de escrever, por trás da violência física, dos castigos sobre o corpo, vive uma violência simbólica que «constitui o essencial da dominação masculina». A obrigatoriedade do uso do véu pelo sexo feminino, instaurada pouco depois da revolução de 1979 (a tal que iria libertar os e as iranianas), é uma parte importante dessa violência, responsável por um apartheid de género, de facto e de jure. Ora, é contra esta primeira, e primordial, usurpação da liberdade feminina que hoje se levantam muitas mulheres iranianas (também alguns homens, é verdade). Sobretudo jovens, algumas ainda na primeira fase da adolescência. Com a audácia e a coragem que falta aos acomodados no «para mal já basta assim» (sim, porque só os alucinados ou os oportunistas do regime julgam viver bem no Irão). E que nos falta a nós também. Quem detém o monopólio do protesto em Portugal (partidos políticos e produtores de opinião) pouco fez, não houve qualquer gritaria e os artigos nos meios de comunicação social contaram-se pelos dedos de uma mão.

Mas se há uma revolução, larvar, que hoje importa, é a do Irão. Pela inteligência e a coragem (de me fazer corar de vergonha) que demonstram as meninas iranianas (é uma expressão de carinho com sociologia e demografia à mistura). Não vejo outra que contenha tanta esperança num mundo melhor, não vejo outra que contenha tão poucas forças revanchistas, tão pouca apetência para se metamorfosear em ditadura. Isto deve-se, tenho esta convicção profunda, à motivação feminina que informa os protestos, é contra a sacralização das descriminações e violências sexistas da ordem islâmica que o feminino lidera as manifestações, nas quais muitas tiram o véu, nas quais muitas arriscam a prisão ou a morte. Se vencerem, o Irão será mais justo, livre e igual, porque elas querem ser livres e iguais, não superiores, arrumadoras e castradoras.

Se pensarmos que o Irão é, na realidade, um estado «zombie» (conceito de Zygmunt Bauman), porque estamos enganados quando julgamos que o país tem uma burocracia funcional, com linhas vermelhas claras, que as elites inspiram, medo e confiança, que as instituições têm um real poder. Tudo, ou quase, está moribundo. Mesmo que dure ainda algum tempo (que será sempre tempo a mais), acabará por morrer, desaparecer, fará parte da história espúria do país. Em Homo Sacer, Giorgio Agamben usa a noção «resto» para designar uma parte do real que escapa ao poder. Será deste «resto», do que escapou à tentativa de monopolização das ideias, narrativas, imaginário… que, a partir da indignação justa, se fará o novo Irão.  Os «restos» são, hoje, mais vitais do que os sentidos que permitem a alguns dizer: «a República Islâmica do Irão é a nossa casa e vamos lutar por ela, tal como está, petrificada numa sagração pífia». Estes poucos que ainda dominam não percebem que são prisioneiros dessa mesma dominação, que o medo de abrirem as suas próprias celas os aliena e apodrece aquilo que julgam ser salvífico. Por isso, cairão. E as meninas sem véu serão professoras, médicas, políticas, mães, amantes, músicas, engenheiras... Livres, justas e inteligentes, com esse pleno de vida que por vezes nos cabe em sorte e que nelas será a conquista mais exemplar da história.